Política
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13 de novembro de 2021
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10:06

‘Improvisado e provisório’, Auxílio Brasil começa a ser pago dia 17; entenda o que muda

Por
Luís Gomes
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Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Criado pelo governo Bolsonaro para substituir o Bolsa Família, o novo Auxílio Brasil começa a ser pago na próxima quarta-feira (17). Nesta reportagem, explicamos como o programa irá funcionar e conversamos com especialistas no tema da renda básica e do enfrentamento das desigualdades sobre o que esperar da transição do Bolsa Família para o Auxílio Brasil.

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O Auxílio Brasil foi criado por meio da Medida Provisória nº 1.061, assinada pelo presidente Jair Bolsonaro em 9 de agosto. Todos os beneficiários atuais do Bolsa Família receberão o Auxílio Brasil em outubro, mas poderão ser excluídas futuramente caso não se enquadrem nas regras do novo programa. Segundo o Ministério da Cidadania, cerca de 17 milhões de famílias serão beneficiadas e receberão um tíquete médio de R$ 217,18.

A MP estabelece três modalidades de transferência de renda para famílias em situação de pobreza e extrema pobreza no âmbito do Auxílio Brasil:

Benefício Primeira Infância: destinado às famílias com crianças com idade entre zero e trinta e seis meses incompletos, pago por integrante.

Benefício Composição Familiar: destinado às famílias com gestantes ou pessoas com idade entre três e vinte e um anos incompletos, pago por integrante.

Benefício de Superação da Extrema Pobreza: valor mínimo calculado por integrante e pago por família beneficiária do Programa Auxílio Brasil, cuja renda familiar mensal per capita, calculada após o acréscimo dos benefícios financeiros anteriores, for igual ou inferior ao valor da linha de extrema pobreza.

Além disso, cria outros seis benefícios:

Auxílio Esporte Escolar: será concedido aos estudantes, integrantes das famílias beneficiários do Auxílio Brasil, que se destacarem em competições oficiais do sistema de jogos escolares brasileiros.

Bolsa de Iniciação Científica Júnior: será concedida a estudantes, integrantes das famílias beneficiários do Auxílio Brasil, que se destacarem em competições acadêmicas e científicas, de abrangência nacional, vinculadas a temas da educação básica.

Auxílio Criança Cidadã: será concedido, para acesso da criança, em tempo integral ou parcial, a creches, regulamentadas ou autorizadas, que ofertem educação infantil.

Auxílio Inclusão Produtiva Rural: será concedido para incentivo à produção, doação e consumo de alimentos saudáveis pelos agricultores familiares, beneficiários do Auxílio Brasil, para consumo de famílias.

Auxílio Inclusão Produtiva Urbana: será concedido àqueles que recebam os benefícios do Auxílio Brasil e que comprovarem vínculo de emprego formal.

Benefício Compensatório de Transição: será concedido às famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família que tiverem redução no valor financeiro total dos benefícios recebidos conforme enquadramento das regras do Auxílio Brasil.

A MP, contudo, não trazia os valores de cada benefício, nem os patamares de referência que usaria para o enquadramento das famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Essas informações acabaram sendo publicadas em dois decretos posteriores.

O primeiro, publicado em 5 de novembro, atualizou, ainda no âmbito do Bolsa Família, os valores de referência para a classificação das famílias em situação de extrema pobreza (renda familiar per capita até R$ 100) e pobreza (renda familiar per capita até R$ 200).

Um segundo decreto, publicado em 8 de novembro, dia da extinção do Bolsa Família, estabeleceu os valores a serem pagos pelos benefícios do Auxílio Brasil, que ficaram definidos em:

Benefício Primeira Infância: R$ 130 por pessoa.

Benefício Composição Familiar: R$ 65 por integrante.

Benefício de Superação da Extrema Pobreza: será calculado por integrante e pago no limite de um benefício por família. Se após receber os benefícios anteriores, a renda mensal per capita da família não superar a linha da extrema pobreza, ela terá direito a um apoio financeiro sem limitações relacionadas ao número de integrantes do núcleo familiar. Esse valor será o resultado da diferença entre o valor da linha de extrema pobreza (R$ 100), acrescido de R$ 0,01 (um centavo), e a renda mensal per capita, multiplicado pela quantidade de membros da família, arredondado ao múltiplo de R$ 2 imediatamente superior, e respeitado o valor mínimo de R$ 25 por integrante da família.

Auxílio Esporte Escolar: R$ 100, referentes a cada uma das doze parcelas mensais do benefício e R$ 1 mil, referentes à parcela única, por família.

Bolsa de Iniciação Científica Júnior: R$ 100, referentes a cada uma das doze parcelas mensais do benefício e R$ 1 mil, referentes à parcela única, por família.

Auxílio Criança Cidadã: R$ 200 para as famílias que tenham crianças matriculadas em turno parcial e R$ 300 para as famílias que tenham crianças matriculadas em turno integral.

Auxílio Inclusão Produtiva Rural: pago em parcelas mensais de R$ 200, por até 36 meses aos agricultores familiares inscritos no Cadastro Único. Esse benefício é limitado a um por pessoa e por família.

Auxílio Inclusão Produtiva Urbana: pago em parcelas mensais de R$ 200, a partir do mês seguinte à comprovação do vínculo de emprego formal, para quem estiver na folha de pagamento do Auxílio Brasil e comprovar vínculo empregatício. Esse benefício também é limitado a um por pessoa e por família.

Presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, Leandro Ferreira avalia que mudanças e atualizações no Bolsa Família eram necessárias, uma vez que um dos problemas já identificados no programa criado em 2003 era de que a cobertura populacional e os valores pagos já não eram adequados à situação que o Brasil se encontra, especialmente com o aumento da fome e do número de famílias em situação de extrema pobreza. Contudo, ele pondera que o governo Bolsonaro desconsiderou o acúmulo de conhecimento gerado pelo Bolsa Família ao criar o seu programa.

“O Bolsa Família não foi uma coisa que surgiu do nada, ele foi desenhado baseado em experiências anteriores de estados e municípios e do próprio governo federal, que já desenvolvia programas de transferência de renda. A chamada racionalização desses programas em torno do Bolsa Família permitiu que ele fosse melhor coordenado para poder expandir e alcançar as mais de 14 milhões de famílias que hoje são contempladas por ele”, diz Ferreira. “O que o Auxílio Brasil faz é, em vez de representar um passo à frente nessa história das transferências de renda, ele desconsidera essa história e, em alguns casos, regride em termos de conceito a respeito do que deve ser a transferência de renda”.

Um dos problemas que ele vê no Auxílio Brasil é justamente o fato de que ele cria nove benefícios diferentes. “O Bolsa Família é voltado à proteção dos mais pobres e não carrega junto coisas como mérito escolar ou mérito esportivo. Até seria importante o incentivo ao esporte e o incentivo ao desenvolvimento científico desde os mais jovens, mas misturar proteção social e uma política nesses objetivos é inadequado por diversas razões. Até porque os mais vulneráveis não vão ter condições de acessar esses benefícios porque eles não estão numa precariedade apenas de renda, mas também em uma precariedade de condições para a prática de esportes, para estudar, para conseguir emprego e assim por diante”, diz.

Um segundo, e talvez principal problema apontado por Ferreira é o fato de o Auxílio Brasil ser uma solução “improvisada” para substituir o programa criado pelo governo Lula. Isso se refletiria, por exemplo, na promessa de que o governo irá pagar benefícios de até R$ 400 — o que ainda depende de aprovação da PEC dos Precatórios ou de outra fonte de financiamento –, mas apenas até o final de 2022.

“Quem é que disse que as famílias terão superado sua condição de vulnerabilidade até o final de 2022. Ou que a inflação terá diminuído até o final de 2022. Uma solução provisória, como essa, não faz sentido se o que você deseja é a estabilidade da proteção social. Então, da mesma forma como Auxílio Emergencial teve diversas etapas e isso criou insegurança, já tem aí uma etapa até o final de 2022 que também vai gerar insegurança, também vai gerar desproteção social, quando for retirada”, diz.

Além disso, destaca que a Medida Provisória que criou o Auxílio Brasil não trouxe os valores de referência, ao contrário da lei que criou o Bolsa Família originalmente e mesmo das Medidas Provisórias que, ao longo do tempo, alteraram o programa. “O Bolsa Família está desatualizado, tem um problema de não ter uma atualização constante, mas isso hoje está na lei. Isso denota que o governo não sabe qual é o orçamento que vai disponibilizar para o programa ainda. Isso passa por um improviso de ficar buscando fontes de recursos por aí”, afirma Ferreira.

Jefferson Nascimento, coordenador da área de Justiça Social e Econômica da Oxfam Brasil, ONG que atua no enfrentamento das desigualdades sociais, também aponta como problemática a falta de informações na MP que criou o Auxílio Brasil. “Por ora, a gente tem muito poucas informações. Muito se fala na imprensa da questão dos R$ 400, da ampliação da cobertura que a gente tem hoje, mas o fato concreto é que a própria MP traz poucas informações. As informações que a gente tem hoje é que o Auxílio Brasil é um guarda-chuva que congrega uma série de benefícios, nove, que têm naturezas muitos diferentes, inclusive dificulta o próprio monitoramento dessas políticas públicas, propósitos diferentes também, e não há nem definição ao certo desse valor na MP [o que acabou vindo nos decretos posteriores]”, diz.

Para Nascimento, a falta de informações presentes na Medida Provisória, que precisará ser aprovada pelo Congresso Nacional em até 120 dias após sua publicação — portanto, em 7 de dezembro — para suas regras entrarem em vigor, foi uma tentativa do governo de emplacar um “cheque em branco”.

“Ela foi formatada de tal maneira que várias definições a respeito do programa não foram feitas. Então, abre margem para que vários desses aspectos fiquem na mão do Poder Executivo para regulamentar via decreto. Então, a gente não tem definição de valor, não temos uma definição clara dos beneficiários, não temos uma definição clara do repositório de informações que darão ensejo a quem vão ser esses beneficiados. Tudo isso vai ser regulamentado via decreto. De certa forma, é um cheque em branco para que o governo defina esses contornos e isso é algo bastante preocupante, ainda mais num governo que já demonstrou em outros momentos ser contrário ao que o Bolsa Família representava”, diz.

O presidente da Rede Brasileira de Renda Básica ainda critica o fato de o novo programa seguir os moldes do Auxílio Emergencial e passar a cadastrar os beneficiários por meio de um aplicativo do governo federal, não mais relacionando o acesso ao benefício ao Cadastro Único, que era a porta de entrada para o Bolsa Família. Ferreira aponta que isso traz dois problemas, o primeiro é com relação ao próprio uso de um aplicativo, que, segundo ele, foi uma experiência com uma série de problemas de acesso no caso do Auxílio Emergencial. O segundo é que separa o Bolsa Família de outras políticas de assistência social para as quais os beneficiários eram encaminhados por meio do Cadastro Único, o que seria motivado pelo “desprezo” do governo pela atual rede de proteção social do País.

“O Cadastro Único identifica que a família é elegível para o Bolsa Família, mas também identifica que ela é elegível para uma série de outras políticas. Quando você elimina essa intermediação entre a rede de proteção social e a rede existente, por um lado, você pode ganhar um número de pessoas entrando no programa, porque também tem gente que não é alcançada pela rede e eventualmente pode ser pelo aplicativo, mas o risco é muito grande. Porque a Auxílio Emergencial mostrou que a história do aplicativo mais complica do que facilita o acesso das pessoas à política social. Muita gente sofreu com o aplicativo. Então, se você eliminar o Cadastro Único e a rede de proteção social que existe hoje, você não vai identificar que essa família é elegível para outras políticas além da transferência de renda”, diz Leandro Ferreira.

O coordenador da Oxfam Brasil avalia que, na prática, o Auxílio Brasil vai muito além de uma simples mudança de nome em relação ao Bolsa Família. “Não é só uma mudança de nome. Inclusive, se fosse uma mudança de nome, aumentando a cobertura e o valor, mantendo o mesmo programa, acho que seria menos preocupante do que o que acontece agora. É um novo programa, que na verdade se trata de um compilado, uma junção de coisas muito desconexas”, diz Jefferson Nascimento.

Ele também avalia que, além do caráter claramente eleitoreiro de prometer um reforço provisório nos valores que valerá, a princípio, apenas para 2022, o programa não traz nenhuma garantia de que terá uma cobertura adequada para as necessidades atuais da população. “A gente não tem nem a garantia do período de 2022. Ah, tem um caráter eleitoreiro, mas nem desse período eleitoral a gente tem definição, que dirá o posterior. E acho que uma coisa importante de dizer é que, das poucas informações que se tem, é que a cobertura do programa não vai ser substancialmente ampliada considerando o que a gente tinha com o Bolsa Família”, diz.

O governo estima que o Auxílio Brasil terá 17 milhões de beneficiários, 2 milhões a mais do que as atualmente cadastradas no Bolsa Família, mas mais de 20 milhões a menos do que o número de pessoas que receberam o Auxílio Emergencial nos últimos meses.

“Tem um desafio já implícito de que o Auxílio Brasil foi casado no próprio discurso do governo como o que vai suceder o Auxílio Emergencial. O Auxílio Emergencial terminou em outubro, tem algumas parcelas que serão pagas ainda em novembro, mas ele não será renovado. Então, a ideia é que o Auxílio Brasil seja um Bolsa Família fortalecido para o momento seguinte do Auxílio Emergencial. Só que a cobertura é diferente. O Auxílio Emergencial, hoje, que já é uma cobertura menor do que no ano passado, quando a gente tinha mais de 60 milhões de pessoas atendidas, ele foi reduzido para cerca de 30 milhões de pessoas e vai ser reduzido mais ainda. Então, o novo Auxílio Brasil não vai lidar com o desafio dessa diferença de cobertura. São questões que já eram dadas, independente do programa que o governo anunciasse ou não, quando o Auxílio Emergencial terminasse, as pessoas iriam voltar para o Bolsa Família. Como que vai se dar essa diferença de cobertura? Isso não foi lidado com esse novo programa”.

Por fim, Nascimento critica o fato de que parte dos recursos para financiar o programa sequer foram aprovados, seja a PEC dos Precatórios — aprovada na Câmara na semana que passou, mas ainda a ser discutida pelo Senado — ou a reforma do Imposto de Renda. “A gente tem hoje concretamente um cenário em que a reforma do Imposto de Renda está parada no Senado e o relator dessa proposta no Senado tem dito que vai propor uma nova versão que retira a taxação de lucros e dividendos, que era o que seria usado para financiar o Auxílio Brasil. Então, mesmo o mecanismo que o governo diz que vai ser uma forma de manter o Auxílio Brasil com um valor maior do que a gente tem no Bolsa Família, ele não está garantido, porque a reforma do Imposto de Renda como a gente tem hoje está parada no Senado”, finaliza.


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