Meio Ambiente
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26 de junho de 2024
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17:10

Projeto criticado por afrouxar a proteção das águas avança na Assembleia do RS

Por
Luciano Velleda
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O uso dos recursos hídricos tem sido um dos principais focos de tensão desde as recentes estiagens no RS. Foto: Guilherme Santos/Sul21
O uso dos recursos hídricos tem sido um dos principais focos de tensão desde as recentes estiagens no RS. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em manifestação conjunta, os comitês das bacias hidrográficas dos rios Sinos, Caí, Gravatahy, Mampituba e Tramandaí repudiaram a decisão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembleia Legislativa que aprovou, na última segunda-feira (24), o projeto de lei que dispensa de outorga atividades produtivas agrossilvipastoris e isenta de cobrança pelo uso da água as propriedades da agricultura familiar. A outorga é uma espécie de autorização de uso concedida pelo poder público.

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O PL 97/2018, de autoria do deputado Elton Weber (PSB), introduz modificação na Lei nº 10.350, de 30 de dezembro de 1994, que institui o Sistema Estadual de Recursos Hídricos, regulamentando o artigo 171 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Após ser aprovado na CCJ por 9 votos favoráveis e 3 contrários, o projeto de lei será agora analisado em outras comissões temáticas.

Segundo os comitês das bacias hidrográficas, o projeto representa um retrocesso e vai contra os princípios da Política Nacional de Recursos Hídricos. O grupo alerta que a dispensa de outorga para captação de águas pode agravar a crise hídrica, além de comprometer a sustentabilidade dos recursos hídricos do Rio Grande do Sul.

“Em relação à dispensa de outorga para acumulação de águas pluviais e captação de águas subterrâneas destinadas às atividades produtivas agrossilvipastoris, bem como aos poços comunitários (via modificação no Art. 31 da Lei n. 10.350/94 proposta pelo PL n. 97/2018), destacamos que em razão da vazão hídrica significativa de tais atividades o proposto gera potencial prejuízo às bacias”, afirma a manifestação conjunta.

O grupo destaca que a Lei Federal 9.433/1997 determina que os comitês das bacias hidrográficas definam o mecanismo e os valores para cobrança, cabendo a cada comitê elaborar uma proposta compatível com a situação econômica, social e ambiental da sua região. O Comitesinos, por exemplo, aprovou os Mecanismos e Valores para Bacia Hidrográfica do Rio dos Sinos com fórmula para definição de valores para captação com a subtração de R$ 500,00, retirando os pequenos produtores do pagamento, em definição realizada em um grupo de trabalho com a participação dos usuários. Os comitês Gravatahy e Caí também possuem grupos de trabalho, definidos em plenária, igualmente com participação de usuários, dedicados à cobrança, sendo que no primeiro, da mesma forma, já foram definidos os mecanismos dessa cobrança e, no segundo, seguem-se as tramitações nesse sentido.

Os cinco comitês signatários do manifesto afirmam que a utilização dos recursos hídricos subterrâneos, quando sem controle técnico por meio da outorga pelo governo estadual conforme as diretrizes dos comitês de bacia, pode trazer sérios riscos aos aquíferos e causar descontrole no acesso às águas subterrâneas. O grupo avalia que até mesmo os acordos internacionais sobre a preservação do Aquífero Guarani com Uruguai, Argentina e Paraguai podem ser cancelados caso o projeto de lei avance na Assembleia.

Por outro lado, o deputado autor da proposta diz que a cobrança da outorga é “injustiça” com o agricultor familiar. “Tem algo muito errado quando o agricultor tem que pagar para produzir alimentos”, afirma Weber.

Já para os comitês das bacias hidrográficas dos rios Sinos, Caí, Gravatahy, Mampituba e Tramandaí, os valores são insuficientes para manutenção financeira da estrutura técnica mínima no Departamento de Recursos Hídricos e Saneamento e não oneram em demasia os usuários. “A outorga é a garantia técnica dada pelo Estado de que eles têm autorização para utilizar, por exemplo, determinado volume de água subterrânea por meio de um poço e possam fazer seu planejamento de investimento”, explica o manifesto.

Avanço do projeto ocorre em meio a perspectiva de secas mais frequentes no RS. Foto: Corbari

Como exemplo, o grupo cita que a Aegea/Corsan tem mais de 900 poços tubulares nos 317 municípios em que atua, utilizados para abastecimento humano, e que a desregulamentação proposta pode levar à execução de novos poços por outros setores econômicos, inviabilizando o abastecimento humano. Os cinco comitês de bacia afirmam que sem o instrumento da outorga não será possível a gestão do aquífero utilizado.

“A execução de um poço tubular é uma obra de engenharia geológica e, como tal, deve ser precedida de responsabilidade técnica conforme determina a legislação. A outorga é também a garantia ao acesso pelo consumidor final (urbano ou rural) à água subterrânea, independente da sua finalidade econômica, de que em sua captação foram utilizadas todas as técnicas necessárias para garantir segurança ao investimento – que pode variar entre 40 mil a 3 milhões de reais”, explica o manifesto. “A retirada da outorga como instrumento de gestão pode ser comparada, no Sistema de Meio Ambiente, a se fossem extinguidos os licenciamentos ambientais, permitindo que se instaurasse o ‘caos’ na proteção ambiental no Rio Grande do Sul.”

Os comitês das bacias hidrográficas dos rios Sinos, Caí, Gravatahy, Mampituba e Tramandaí ainda enfatizam a previsão de novo período de estiagem e eventual seca no RS. Neste cenário, a água subterrânea tem sido a salvação de muitas atividades urbanas e rurais, e eliminar a outorga seria estimular a disputa pela água subterrânea, antecipando a “guerra pela água no Rio Grande do Sul”, além de contribuir para novos eventos climáticos extremos.

Cabe a cada Bacia Hidrográfica, através de seus colegiados – os Comitês de Bacias -, gerenciar o uso das suas águas superficiais e subterrâneas, respeitando as características geológicas e ambientais locais e o conhecimento hidrogeológico, permitindo assim que todos os usos múltiplos sejam assegurados. Não é possível gestão com vistas à garantia de se assegurar tais usos múltiplos e se sanar conflitos pelos usos da água sem um adequado balanço hídrico em cada bacia. Este balaço hídrico, entretanto, somente pode ser realizado se todos os usuários que fazem usos significativos de água (seja superficial, seja subterrânea) nas bacias continuem sujeitos à outorga.

 

Reunião da Comissão de Constituição e Justiça em que projeto foi aprovado por 9 votos a 3. Foto: Marcelo Oliveira / ALRS.

O projeto de lei também motivou a manifestação, no começo da semana, da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan). A entidade que há 53 anos atua em defesa do meio ambiente no Rio Grande do Sul avalia que a proposta, embora coloque a previsão para dispensa de outorga para a poços comunitários destinados ao abastecimento público, tem como real objetivo retirar a obrigatoriedade da outorga para água “destinada às atividades produtivas agrossilvipastoris”.

“O PL 97/2018 propõe que as atividades agrossilvipastoris desenvolvidas nas pequenas propriedades rurais estariam dispensadas de cobrança pelo uso da água. Ou seja, a produção agrícola, que mais usa água, ficaria dispensada da outorga e a maioria das propriedades rurais, independentes do que produzem e da quantidade de água utilizada, não pagariam”, critica a Agapan.

De acordo com a entidade, o projeto de lei usa a satisfação individual e as pequenas comunidades rurais para justificar a alteração da Lei nº 10.350/1994 (que este ano completa 30 anos), mas quer mesmo “abrir a porteira para a retirada de controle público”.

“É preciso esclarecer que a lei estadual e a federal têm previsão de dispensa para a satisfação individual de água. Em relação à outorga, no Art. 31 da Lei nº 10.350/1994 tem uma exceção, tornando dispensável da outorga casos de usos individuais para satisfação das necessidades básicas da vida. No Rio Grande do Sul, a Resolução CRH n°91/2011 estabelece os critérios para a dispensa da outorga de direito do uso dos recursos hídricos. A normativa fixa parâmetros para a dispensa para água superficiais e subterrâneas para uso individual e para uso em atividades produtivas e econômicas de qualquer natureza. A norma estabelece exceções para algumas bacias que estão com a demanda próxima da disponibilidade”, afirma.

A Agapan defende que haja uma estratégia de enfrentamento às estiagens associada a ampliação da proteção ambiental com as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e outras áreas de uso especial, a ampliação das unidades de conservação que contribuem com serviços ecossistêmicos, a qualificação da gestão dos recursos hídricos e prioridades no uso da água nas atividades agrícolas com controle público.

A entidade ainda ressalta a importância do governo estadual investir na revitalização das bacias hidrográficas. “É necessário fazer a restauração de amplas áreas naturais com vegetação nativa, proteger os biomas e incentivar sistemas agrícolas ecológicos que conservem água nos solos e no sistema produtivo. Em cada bacia, a partir do plano e de acordo com a disponibilidade de água de cada bacia, atender prioritariamente à produção de alimentos para o abastecimento da população”, diz a nota da Agapan.


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