Meio Ambiente
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20 de março de 2024
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17:16

Comissão da Câmara aprova projeto que pode revogar a Lei da Mata Atlântica

Por
Luciano Velleda
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Lei da Mata Atlântica tem regras mais protetivas para a área do bioma. Foto: Adriano Gambarini/WWF
Lei da Mata Atlântica tem regras mais protetivas para a área do bioma. Foto: Adriano Gambarini/WWF

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, nesta quarta-feira (20), o texto substitutivo ao Projeto de Lei nº 364 de 2019, que retira a proteção adicional a todo o bioma Mata Atlântica. De autoria do deputado federal e relator Lucas Redecker (PSDB-RS), o texto substitui o projeto original do também deputado federal gaúcho Alceu Moreira (PMDB).

Nota técnica e jurídica da entidade SOS Mata Atlântica afirma que o texto aprovado, além de retirar proteções específicas da Lei da Mata Atlântica, pode desproteger cerca de 48 milhões de hectares de campos nativos em todo o Brasil, o que significa desproteger 50% do Pantanal (7,4 milhões de hectares), 32% do Pampa (6,3 milhões de hectares) e 7% do Cerrado (13,9 milhões de hectares), assim como quase 15 milhões de hectares na Amazônia, deixando estes territórios expostos a uma conversão agrícola “descontrolada e ilimitada”.

Conforme a entidade ambientalista, o texto aprovado na CCJ da Câmara é desproporcional, na medida em que retira ou diminui significativamente a proteção dos campos nativos de todos os biomas brasileiros para supostamente resolver problemas pontuais que afetam algumas centenas de produtores rurais situados nos Campos de Cima da Serra do Rio Grande do Sul.

É possível resolver os problemas desses produtores – e inclusive permitir a expansão de florestas plantadas na região – sem ameaçar a Mata Atlântica, o Pantanal e os demais biomas. Basta retomar o texto negociado entre representantes de produtores rurais e de organizações ambientalistas constante de versões anteriores do relatório do deputado Lucas Redecker, o qual reconhece a existência dos “campos antrópicos” e os qualifica como área de uso alternativo do solo (uso consolidado)”, defende a SOS Mata Atlântica.

Levantamento realizado pelo MapBiomas identificou mais de 183 mil hectares (área equivalente à do Parque Nacional de Iguaçu) de vegetação nativa irregularmente desmatada em Área de Preservação Permanente (APP)  entre a edição do Decreto Federal 750 de 1993 e julho de 2008, marco temporal adotado pelo Código Florestal para autorizar a consolidação de áreas ilegalmente desmatadas nos espaços especialmente protegidos, como APP e Reserva Legal. Se as regras da Mata Atlântica forem aplicadas, toda essa área deve ser recomposta. Se as regras do Código Florestal de 2012 forem aplicadas, toda essa área será mantida desmatada.

Ao defender a aprovação do projeto, Redecker refutou o entendimento de que ele irá interferir na proteção da Mata Atlântica. “Esse projeto passou pela Comissão de Meio Ambiente, pela Comissão de Agricultura, foi amplamente debatido no seu mérito. Não tem nada a ver do que estão falando sobre Lei da Mata Atlântica, que a gente destrói a mata, ao contrário, o projeto dá condições de não invadir a Mata Atlântica. As áreas de preservação ambientais estão preservadas, estamos tratando de campos consolidados, campos que têm a criação de gado há mais de 100 anos, que já está com o manejo humano através da criação de animais ou outras coisas e que o produtor rural simplesmente não pode converter e plantar milho, soja ou qualquer cultura porque a legislação não permite, principalmente nos campos de altitude”, argumentou o deputado.

O texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça ( CCJ) da Câmara dos Deputados começou a tramitar em 2019, quando o deputado federal Alceu Moreira (MDB/RS) apresentou o PL 364/19, motivado pela ocorrência de ações de fiscalização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em alguns municípios dos Campos de Cima da Serra no RS, como São Francisco de Paula, Vacaria, São José dos Ausentes, entre outros, levando a autuação de diversos produtores rurais por suposta conversão de campos nativos para atividades agrícolas sem a devida autorização. O intuito declarado do projeto era “retirar os Campos de Altitude da incidência da Lei da Mata Atlântica”.

O projeto, no entanto, mantinha a proteção já existente pela Lei Federal 12.651 de 2012,  chamada de Código Florestal, que exige autorização para conversão da vegetação nativa a outro uso do solo e a manutenção de pelo menos 20% a título de Reserva Legal. Assim, o projeto original mirava apenas a alteração do status de proteção dos campos de altitude – ecossistema que cobre menos de 5% da área total do bioma Mata Atlântica – e ainda criava novas regras de proteção.

Porém, quando o projeto foi analisado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a partir de um texto substitutivo apresentado pelo deputado federal José Mário Schreiner (MDB-GO), tudo mudou. O substitutivo aprovado altera a legislação ambiental brasileira para transformar todas as áreas de campos nativos existentes no País em “áreas rurais consolidadas”, caso tenham sido “utilizadas” para pastoreio.

“Com isso, na prática, todas as áreas de campo nativo do País deixam de ter proteção legal, na medida em que juridicamente são equiparadas às áreas de uso agrícola e, portanto, não precisam mais de autorização para conversão, pois, aos olhos da lei, já teriam sido convertidas”, explica a entidade ambientalista.

 

Projeto teve origem para beneficiar agricultores e criadores de animais nos Campos de Cima da Terra do RS. Foto: CNA/Wenderson Araujo/Trilux

Ainda assim, em agosto de 2023, um novo texto chegou a ser acordado entre ambientalistas e representantes dos produtores rurais. A pedido da Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul, o texto sofreu ligeiras modificações, o que redundou numa sequência de novos substitutivos, igualmente acordados entre as partes. Em setembro do ano passado, quando a matéria estava pronta para votação, foi então retirada de pauta a pedido do próprio relator, o deputado federal Lucas Redecker (PSDB/RS). O parlamentar foi pressionado pelas associações de plantadores de florestas dos estados sulistas, que alegavam não terem participado das negociações e que, supostamente, o texto a ser votado não contemplava suas necessidades.

Até que, em dezembro de 2023, Redecker apresentou um novo parecer, completamente diferente do que havia apresentado anteriormente. Nesse novo texto, ele retomou na íntegra o conteúdo do parecer anteriormente aprovado na Comissão de Meio Ambiente e incluiu dispositivo no Código Florestal que, alegam ambientalistas, revoga a Lei da Mata Atlântica.

“Ao retomar o texto da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, retira toda a proteção legal aos campos nativos de todos os biomas do país, permitindo que eles possam ser livremente convertidos para uso alternativo do solo (agricultura, pastagens plantadas, mineração, urbanização etc.) sem qualquer tipo de limitação ou autorização administrativa. Para tanto, basta que o proprietário da área alegue que a área de campo foi, em algum momento do passado, utilizada para pastoreio. Como a imensa maioria das áreas de campo do país foram, em algum momento, usadas para pastoreio extensivo, todas elas seriam consideradas ‘consolidadas’. Mesmo as poucas que nunca tenham sido pastejadas também perderão, na prática, a proteção hoje existente, pois será impossível aos órgãos de controle comprovar que nunca a área foi usada para pecuária extensiva”, afirma a SOS Mata Atlântica.

De acordo com a entidade, ao dizer que “as disposições relativas à regularização ambiental de imóveis rurais previstas nesta Lei se aplicam a todo o território nacional” e que elas “podem abranger fatos pretéritos à edição desta Lei, inclusive no que se refere à utilização produtiva de áreas rurais consolidadas, às Áreas de Preservação Permanente, à Reserva Legal”, afastando “disposições conflitantes contidas em legislações esparsas, inclusive aquelas que se refiram apenas à parcela do território nacional”, o texto, na prática, revoga a Lei da Mata Atlântica, que justamente estabelece regras mais protetivas para a área de domínio da Mata Atlântica.

Para o deputado Lucas Redecker (PSDB), o projeto não irá afetar a preservação da Mata Atlântica e apenas dará liberdade ao produtor rural para usar a terra sem ser multado. “Produtores rurais são multados em áreas pequenas, com milhões de reais, que eles nunca vão tirar aquele recurso mesmo que quiserem produzir naquela área, com altas multas em áreas que estão há mais de 200 anos ocupadas com exploração de criação e manejo de gado ou outro tipo de animal. O que queremos é dar condições de liberdade para que, respeitando a lei da Mata Atlântica, respeitando as áreas de preservação ambiental, o produtor rural possa converter o campo e colocar lavoura ou qualquer outra cultura”, afirmou.

O Código Florestal permite que toda a vegetação nativa situada em um imóvel rural possa ser convertida ao uso alternativo do solo, desde que sejam mantidas (ou recuperadas) as Áreas de Preservação Permanente (APPs), a Reserva Legal e seja comprovado o uso produtivo das áreas já convertidas.

Por sua vez, a Lei da Mata Atlântica estabelece uma camada adicional de proteção à vegetação nativa do bioma, limitando a conversão de remanescentes de acordo com seu grau de importância ecológica, o que, na prática, protege da conversão agropecuária a maior parte dos remanescentes nativos hoje existentes, mesmo que fora de APP ou excedentes à Reserva Legal. Entre ambientalistas há o entendimento de que foi justamente essa proteção, existente desde o Decreto Federal nº 750 de 1993, que permitiu ao bioma atingir níveis baixos de desmatamento, o qual chegou próximo a zero em alguns estados nos anos anteriores ao governo Bolsonaro, como induziu ao aumento líquido das áreas cobertas com remanescentes.


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