Meio Ambiente
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13 de outubro de 2022
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17:08

Após sucessivas perdas, área de vegetação nativa do Pampa se equivale à de agricultura

Por
Luciano Velleda
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A pecuária, que permite produzir e ao mesmo tempo conservar a natureza, tem sido substituída pela lavoura de soja, que extingue os campos nativos. Foto: Guilherme Santos/Sul21
A pecuária, que permite produzir e ao mesmo tempo conservar a natureza, tem sido substituída pela lavoura de soja, que extingue os campos nativos. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mas que pampa é essa que eu recebo agora
Com a missão de cultivar raízes
Se dessa pampa que me fala a história
Não me deixaram nem sequer matizes?

A primeira estrofe da música Herdeiro da Pampa Pobre, composta por Vaine Darde e musicada pelo Gaúcho da Fronteira, lançada em 1990, começa a contar a história de um indivíduo contrariado com a missão de levar adiante uma cultura que já se apresentava em decadência.

Se fosse escrita atualmente, a personagem da música provavelmente teria ainda mais dificuldade em manter o legado cultural do gaúcho tradicional. Afinal, o Pampa, o grande símbolo das longas planícies do Rio Grande do Sul ocupadas outrora por fazendeiros e produtores de gado, a cada ano que passa caminha para desaparecer.

Hoje, o Pampa tem mais áreas modificadas pela ação humana (antropizadas) do que de vegetação nativa. Em 1985, as áreas de vegetação nativa ocupavam 61,3% do Pampa e, em 2021, essa participação foi de 43,2% – quase o mesmo das áreas de agricultura, que já ocupam 41,6% do bioma. Entre 1985 e 2021, a perda de vegetação nativa foi de 29,5%, sendo acentuada nas últimas duas décadas. 

Os dados são do mais recente levantamento do MapBiomas sobre uso e ocupação do solo do Pampa cobrindo o período de 37 anos.

Formado por diferentes tipos de campos, o bioma teve um decréscimo de 3,4 milhões de hectares – o equivalente a 70 vezes a área do município de Porto Alegre. Simultaneamente, a agricultura avançou causando a perda das formações campestres, a vegetação nativa típica do bioma e tradicionalmente usada para a pecuária – a ocupação histórica que moldou a cultura gaúcha citada na música de Vaine Darde. Em 1985, as formações campestres ocupavam 48,6% do território. Em 2021, eram apenas 30,9%, uma perda de 36%. 

“O avanço exagerado da agricultura, especialmente da soja, sobre as áreas de vegetação campestre deve servir de alerta sobre qual será o futuro do bioma. Estamos deixando de lado a pecuária sustentável, que é a vocação natural do bioma e que permite produzir e ao mesmo tempo conservar a natureza, e apostando tudo em poucas commodities, como a soja e a silvicultura”, explica Heinrich Hasenack, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

“Uma economia pouco diversificada aumenta os riscos de prejuízos recorrentes com as perdas de safras, como vimos nos últimos anos, especialmente num cenário de mudanças climáticas”, enfatiza.

A silvicultura ocupa atualmente 3,8% do bioma, tendo crescido mais no período de 1985 a 2021, quando aumentou em 1.641%. Ainda que seja encontrada em todo o Pampa, a silvicultura ocorre de forma concentrada na região centro-leste do bioma. Os cinco municípios que mais tiveram avanço com a silvicultura nos últimos 37 anos foram Encruzilhada do Sul, Piratini, Canguçu, Dom Feliciano e Butiá.

O mapeamento do MapBiomas também revela a quantidade e a localização dos banhados, afloramentos rochosos, dunas e lagoas costeiras, ecossistemas naturais de grande importância ecológica e que integram o patrimônio natural do Pampa.

“As transformações no uso da terra do Pampa têm sido muito expressivas em uma única direção, o que preocupa muito já que não apontam para um caminho de sustentabilidade ambiental. Deveríamos implementar políticas públicas de promoção da pecuária, de diversificação da produção nas áreas rurais, de estímulo ao turismo rural e de cuidados com o patrimônio natural do Pampa, como a criação de novas unidades de conservação”, adverte Hasenack. 

Os resultados do mapeamento do bioma também mostram que 1 em cada 4 hectares de vegetação nativa no Pampa é vegetação secundária – aquela já foi suprimida pelo menos uma vez e acabou se regenerando. Entre 1985 e 2021, 2,2 milhões de hectares da vegetação nativa se tornaram vegetação secundária, o que equivale a mais de 45 vezes o município de Porto Alegre. Isso significa que dos 43,2% do bioma ainda é coberto por vegetação nativa, mais de 25% já é secundária. 

Em 1990, a segunda estrofe de Herdeiro da Pampa Pobre já refletia sobre o processo de decadência das estâncias pecuárias. Os autores da música não poderiam prever que a criação de gado, tão importante para manter a vegetação nativa, seria nas próximas décadas ocupadas pela soja.

Passam as mãos na minha geração
Heranças feitas de fortunas rotas
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