Meio Ambiente
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16 de fevereiro de 2022
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09:13

Com Bolsonaro, garimpo vira ‘mineração artesanal’ e expõe povos indígenas à destruição ainda maior

Por
Marco Weissheimer
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Invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, em maio de 2020 (Foto: Chico Batata/Greenpeace)
Invasão de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami, em maio de 2020 (Foto: Chico Batata/Greenpeace)

O garimpo, no governo Bolsonaro, ganhou um novo nome: “mineração artesanal em pequena escala”. No dia 14 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro editou o decreto 10.966/2022 instituindo o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Pró-Mape), com o objetivo de criar uma “nova perspectiva de políticas públicas sobre a atividade garimpeira no Brasil”. O mesmo decreto também criou a Comissão Interministerial para o Desenvolvimento da Mineração Artesanal e em Pequena Escala (Comape), da qual participarão o Ministério de Minas e Energia, a Casa Civil e os ministérios da Cidadania, Justiça, Segurança Pública, Meio Ambiente e Saúde.

O novo programa de apoio ao garimpo pretende “estimular as melhores práticas, a formalização da atividade e a promoção da saúde, da assistência e da dignidade das pessoas envolvidas com a mineração artesanal e em pequena escala”, que passa a ser definida como “extração de substâncias mineráveis garimpáveis”. Já a nova Comissão terá a tarefa de “definir diretrizes para a atividade garimpeira e coordenar ações que fortaleçam o Pró-Mape”, devendo atuar principalmente na região da Amazônia Legal. 

Segundo levantamento do InfoAmazoniaBrasil, site jornalístico que cobre a situação dos nove países que têm um pedaço da Amazônia em seus territórios, as terras indígenas da Amazônia são alvo, hoje, de 2.480 requerimentos para exploração mineral. A Constituição brasileira, lembra o site, proíbe qualquer exploração nessas áreas sem autorização expressa do Congresso e consulta aos povos afetados. Nada que constranja, é claro, o governo Bolsonaro e seus aliados a querer avançar sobre essas áreas para promover a “mineração artesanal”. Além disso, segundo o mesmo levantamento, há 1.226 requerimentos para exploração mineral em unidades de conservação na Amazônia.

Entidades indigenistas, lideranças indígenas e pesquisadores criticaram o teor do decreto, logo após sua publicação. Na avaliação de Roberto Liebgott, da Regional Sul do Conselho Indigenista Missionário (Cimi Sul), “o governo Bolsonaro age, em seus últimos meses de mandato, para atender aos setores econômicos criminosos que exploram os recursos ambientais e minerais, especialmente na Amazônia”. 

Para ele, os Decretos 10.966 e 10.965 de 2022 são espécies de  contratos avalizadores  dessa perspectiva, porque alteram as legislações de regulação e exploração mineral,  flexibilizando-as nas formas de concessão, controle e fiscalização das empresas. “Os decretos servem de estímulo à saga devastadora de mineradoras e garimpeiros e legitimam às violências, como àquelas praticadas  nos territórios Yanomami e Munduruku, onde milhares de garimpeiros arrasam a terra, os mananciais hídricos e as vidas humanas”, afirma Roberto Liebgott. Além disso, acrescenta, “contaminam o ambiente,  matam as pessoas e, parece ser este o sentido da antipolítica de Bolsonaro para as comunidades indígenas, quilombolas e meio ambiente: a morte brutal do outro – homens, mulheres, jovens, idosos e crianças – e dos seres para satisfazer a ganância e o ódio do explorador”.

Beto Marubo, indígena Marubo, membro da Organização Indígena UNIVAJA que luta pela proteção de 16 grupos isolados no Vale do Javari, Amazonas, classificou o decreto como uma “aberração” que tem o objetivo central de incentivar ainda mais o garimpo na região da Amazônia Legal. “É mais um incentivo à destruição dos rios, das florestas, da vida nas nossas comunidades”, disse Beto em sua conta no Twitter. 

Para a antropóloga Luísa Molina, que pesquisa o impacto do garimpo predatório em terras indígenas, o novo decreto do governo Bolsonaro tem duas especificidades que vale a pena observar. A primeira é a maneira como ele facilita a obtenção de permissão de lavra garimpeira. “É uma coisa assustadora. Nós já estamos diante de uma facilidade administrativa intensa para a obtenção dessas permissões, que facilita tanto a mineração de pequena escala, garimpo, em torno de áreas protegidas onde essas atividades são ilegais, como também processos de lavagem de dinheiro, que a gente chama de esquentamento do ouro, por conta de se tratar de uma atividade totalmente sem regulação”.

Isso tudo converge, acrescenta a pesquisadora, para uma fragilidade intensa das áreas protegidas e das comunidades que as habitam. “A gente vê isso nitidamente, em períodos em que há uma maior procura pela exploração de jazidas, que se expressam em uma intensificação de problemas como desmatamento, incidência de doenças infecto-contagiosas e maior pressão sobre as comunidades em termos de aliciamento de pessoas para essas atividades predatórias e de rompimento de vínculos importantes de parentesco e de compadrio. O rompimento desses vínculos sociais vai desintegrando muitas comunidades. É muito devastador”.

Outro problema ocasionado por esse cenário, aponta Luísa Molina, é a violência armada dentro de comunidades. “É muito impressionante como a gente tem visto a intensificação desse quadro nos últimos anos. Isso já vinha acontecendo na Amazônia, cada vez mais intensamente de 2014 pra cá. De 2018 para 2021, temos um salto escandaloso que se expressa, por exemplo, nos números do desmatamento subindo vertiginosamente”. 

Ao facilitar ainda mais a obtenção de permissão de lavra garimpeira, diz ainda a antropóloga, o governo federal está expondo essas comunidades a mais destruição, pois vai facilitar muito a exploração no entorno de terras protegidas. “A incidência disso na ponta, onde não se lê a letra da lei, é imensa. Estamos falando de uma atividade que cresce completamente na ilegalidade. Estamos falando da facilitação de algo que já é problemático. Soluções deveriam estar sendo adotadas no sentido contrário, para um controle maior da concessão dessas lavras e para uma proteção mais efetiva das terras indígenas, das unidades de conservação e de seu entorno”.

O garimpo, hoje, assinala Luísa Molina, não é atividade artesanal. Muito pelo contrário. “O poder de destruição dessa atividade é muito intenso e expressivo, exigindo um processo de licenciamento muito mais complexo. O que o governo está fazendo vai no sentido oposto disso. É muito preocupante mesmo”, conclui.

Um efeito imediato da publicação do decreto é o aumento da pressão, por parte de representantes do garimpo e da mineração na região da Amazônia contra a fiscalização dos órgãos responsáveis pela proteção das unidades de conservação e dos territórios indígenas. Na noite desta terça-feira, garimpeiros cercaram o prédio do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), em Itaituba (PA), no Vale do Tapajós, e iniciaram uma mobilização pelas redes sociais para “fechar tudo”, em protesto contra a ação da fiscalização que destruiu máquinas do garimpo que estavam operando dentro da Floresta Nacional do Crepori, área de conservação ambiental federal. A destruição, com fogo, do maquinário pesado que estava operando ilegalmente dentro da Floresta Nacional, viralizou nas redes sociais.

O “fechar tudo” incluiu, durante essa madrugada, barreiras com fogo em pontes da região para evitar a ação da fiscalização. Ainda na tarde desta terça, o deputado federal José Priante (PA) esteve em Brasília, juntamente com o prefeito de Itaituba, para uma audiência com o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, para protestar contra o que chamou de “política de destruição de ativos e cenas cinematográficas” na região. Segundo o deputado, Ciro Nogueira disse que iria comunicar imediatamente o presidente Jair Bolsonaro do ocorrido para evitar que essas cenas (da ação da fiscalização) se repetissem).


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