Internacional
|
22 de outubro de 2023
|
10:07

Argentinos vão às urnas para decidir se sua moeda continuará existindo

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

Julio Adamor
Do Brasil de Fato

Em meio à crise mais profunda desde 2001 – aquela que derrubou o então presidente Fernando de la Rúa numa época em que os argentinos mal podiam sacar livremente seu dinheiro do banco, por causa do chamado corralito –, chegou a hora de escolher um(a) novo(a) líder para assumir a missão de erguer uma economia combalida, recuperar uma moeda profundamente desvalorizada e propiciar condições para que a população tenha mais empregos e viva com mais dignidade.

Os eleitores argentinos vão às urnas neste domingo (22) para decidir se querem ter um segundo mandato peronista consecutivo (com Sergio Massa, da coalizão União pela Pátria), se querem voltar a ter uma gestão conservadora de direita (com Patricia Bullrich, Juntos pela Mudança) ou se vão partir para uma diretriz ultraliberal e anti-establishment de extrema direita (com Javier Milei, A Liberdade Avança). Os demais candidatos são figurantes, ao que tudo indica.

Nas eleições primárias de agosto, os três candidatos tiveram praticamente a mesma votação, em torno de 30%, com ligeira vantagem de Milei sobre os concorrentes. Revelou-se ali um padrão de preferência novo no eleitorado, que alterou a configuração de forças no tabuleiro político do país. Se até então as disputas eleitorais se restringiam a kirchneristas e macristas, que concentravam mais de 90% dos votos, agora o que se vê é uma batalha de terços, com três grupos políticos competitivos.

Segundo as pesquisas divulgadas desde então, o resultado das primárias continua refletindo a intenção de voto do eleitorado, com Milei um pouco à frente, mas com variações que permitem antever que, em tese, os três têm chance e que haverá segundo turno.

Porém, é preciso lembrar que as pesquisas erraram às vésperas das primárias, quando não captaram o crescimento de Milei e apontaram que ele teria 20% dos votos, ou seja, 10 pontos a menos do que as urnas revelaram. “É possível que Milei esteja sendo subestimado de novo”, diz o jornalista Mario Santucho, editor da revista Crisis, ao Brasil de Fato.

Se algum candidato receber 45% dos votos válidos, ou 40% com pelo menos 10 pontos percentuais de vantagem sobre o segundo colocado, será eleito no primeiro turno. Caso contrário, haverá segundo turno em 19 de novembro. O próximo mandato presidencial começa em 10 de dezembro.

Sergio Massa tem a difícil missão de representar um governo que é tão mal avaliado que o atual presidente, Alberto Fernández, sequer vai disputar a reeleição. Massa é o atual ministro da Economia, já que na Argentina não é preciso se licenciar para disputar eleição. Assumiu o cargo há pouco mais de um ano, para tentar debelar a crise que já era significativa, mas não conseguiu. A crise piorou e virou combustível para os adversários.

Patricia Bullrich o tachou de pior ministro da Economia da história. Javier Milei incentivou a população a trocar seus pesos por dólares, potencializando uma corrida cambial que já estava em curso e provocou uma desvalorização aguda da moeda argentina – o dólar chegou a valer mais de mil pesos na semana passada no mercado paralelo, enquanto a média dessa cotação costumava ser de 700 pesos e o câmbio oficial é de 350.

Milei defende a dolarização da economia, ou seja, que o peso seja extinto e moeda estadunidense, já muito presente no cotidiano dos argentinos, seja adotada em definitivo. O candidato, que comparou a moeda argentina a um “excremento”, ganhou a simpatia de boa parte do eleitorado com frases de efeito, propostas polêmicas – liberar venda de armas e de órgãos são duas das mais notórias – e também algumas ofensas pessoais, como chamar Bullrich de “assassina” por causa da época em que a candidata integrou o grupo conhecido como montoneros, braço do peronismo que praticava luta armada na década de 1970, tempos de ditadura militar. Para veicular suas ideias, a campanha do candidato priorizou as redes sociais, um meio de comunicação que tem se mostrado eficaz para candidatos que se dizem libertários e alheios ao sistema político tradicional.

Bullrich, que disputa com Milei uma parte do eleitorado de centro-direita, procura se diferenciar dele posicionando-se como uma candidata que pretende sanar a economia também com remédios liberais, porém de forma mais consistente, por meio de uma mudança responsável e previsível. Ela propõe um esquema econômico bimonetário, pelo qual seria legalizada a circulação do dólar em paridade com o peso e os argentinos poderiam realizar contratos com qualquer uma das moedas. O objetivo seria aumentar o fluxo de investimentos, mantendo a existência e a autonomia do Banco Central, e não sua extinção, como gostaria Milei.

Enquanto os dois liberais da disputa afiavam a língua para fustigar o governo e se criticarem mutuamente, Sergio Massa procurou se apresentar como o candidato que vai promover um governo de união nacional, que possa acalmar os ânimos e encontrar uma saída para a crise. A seu favor, conta a fama de bom negociador, que sabe conversar com atores políticos e econômicos de esferas diversas. Embora seja hoje o principal nome do peronismo, seus primórdios na política foram na direita liberal.

Em 1991, o governo neoliberal de Carlos Menem (1989-1999) implantou a convertibilidade, pela qual cada peso valia um dólar, naquela que foi a penúltima grande mudança de modelo macroeconômico do país, na avaliação de Mario Santucho. Foi uma forma eficaz de estabilização da economia. Mas, dez anos depois, o nível de pobreza era tão grande que resultou nos protestos massivos que derrubaram De la Rúa (1999-2001). Na esteira dessa crise, veio o modelo kirchnerista, que hoje está em crise.

“Estamos diante da possibilidade de uma nova quebra de sistema macroeconômico, num esquema parecido ao dos anos 1990, só que mais radical”, analisa o jornalista. “Boa parte da população sente que este regime atual não dá mais e é preciso mudar. Milei se apoia nisso, é um economista ultraliberal”.

Carlos Vidigal, professor da UnB e especialista em Argentina, vê essa questão sob uma ótica diferente. Para ele, não houve quebra alguma de sistema macroeconômico desde o início do neoliberalismo, nos anos 1980. Nesse sentido, uma eventual vitória de Milei seria apenas um aprofundamento do neoliberalismo. “Desde a primeira onda neoliberal, governos mais à esquerda não conseguiram abandonar a essência do neoliberalismo, que se mantém como principal força da economia mundial”. O acadêmico aponta como exceções, no âmbito latino-americano, experiências como as de Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia, Rafael Correa no Equador. Mas nos casos de Argentina e Brasil, por exemplo, ele acha que a macroeconomia persiste sendo essencialmente neoliberal.

Sobre uma eventual dolarização da economia, Santucho considera uma “loucura”. “Vai empobrecer os salários, o nível de vida geral, porque os planos neoliberais sempre pretendem baixar salários para gerar maior produtividade da economia e aumentar a competitividade no plano internacional. Me parece regressivo, reacionário, porque vai contribuir com isso. E do ponto de vista geopolítico, tem uma questão de soberania, que é depender totalmente do que acontece nos EUA”.

Na última quinta (19), o dólar “blue” (paralelo) ficou sem preço na Argentina. Grande parte do mercado paralelo da moeda estadunidense paralisou a venda pela incerteza do que vai acontecer na eleição e também por causa das medidas impostas por Sergio Massa, na condição de ministro – tentou deter a corrida cambial com novas restrições de compra de dólar e com operações policiais em locais de câmbio ilegal.

Naquele dia, o “blue” terminou o dia cotado a 900 pesos, mas nas ruas, o preço real variava entre 990 e 1.065. Essa tarifa, proibida em tese, rege os preços no país e portanto influencia a inflação. Segundo o economista e consultor Franco Jular disse à Folha de S.Paulo, o dólar é “um dispositivo político na Argentina”. Resta ver como ele vai se comportar depois que o dispositivo das urnas for acionado neste domingo.

Além dos assuntos de cunho econômico, Massa promete defender os direitos dos trabalhadores acima de tudo, como convém a um peronista, pois esta é a palavra de ordem desse agrupamento político desde que Juan Domingo Perón foi eleito presidente pela primeira vez, em 1946. Bullrich promete ser linha-dura na segurança pública, área na qual tem experiência, inclusive como ministra de Mauricio Macri (2015-2019). Milei fala em mudar tudo, em fazer tudo diferente do que a “casta” política, como ele se refere pejorativamente, tem feito ao longo do tempo. Contudo, terá que dialogar com algumas alas desse establishment para dar concretude às suas ideias, pois seu grupo político libertário tem baixa representação no poder Legislativo.

“Qualquer que seja sua votação, ele não terá um terço de base parlamentar em nenhuma das Casas (Câmara e Senado), então sua estabilidade no cargo dependerá das alianças que fizer com a casta”, afirma o cientista político argentino Andrés Malamud. Ter uma base de apoio de pelo menos um terço do Legislativo funciona como um escudo que serve para proteger, por exemplo, de uma tentativa de impeachment.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora