Internacional
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2 de setembro de 2023
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09:39

Chances de vitória da extrema-direita na Argentina são reais, apontam analistas

Por
Marco Weissheimer
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Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Foto: Facebook/Reprodução)
Javier Milei, novo presidente da Argentina. (Foto: Facebook/Reprodução)

O fenômeno de crescimento da extrema-direita, que vem se manifestando nos últimos anos em vários países, parece ter lançado raízes na Argentina também. O resultado das eleições Primárias Abertas Simultânea e Obrigatórias (PASO), dia 13 de agosto, concretizou em números a dimensão desse fenômeno. Apontado como um seguidor da “linhagem” de Donald Trump, Jair Bolsonaro e Marine Le Pen, o candidato Javier Milei (do partido La Libertad Avanza) conquistou mais de 30% dos votos, ficando em primeiro lugar na votação, seguido por Patricia Bullrich (Juntos por el Cambio), com 28,27%, e Sergio Massa, candidato governista, com 27,24%. Milei e Bullrich compartilham um mesmo objetivo declarado: “acabar com o kirchnerismo”.

Com uma economia debilitada pela inflação, que corroeu o poder de compra da população, especialmente dos trabalhadores, uma base social histórica do kirchnerismo e do peronismo de modo mais amplo, as chances do governo Alberto Fernandéz eleger seu sucessor dependem da evolução da situação econômica nos próximos meses e de uma costura política que permita levar seu candidato ao segundo turno. O Sul21 ouviu dois analistas políticos argentinos, Héctor Bernardo, pesquisador da Universidad Nacional de La Plata (UNPL), e Gustavo Veiga, jornalista político do Página/12, sobre o atual cenário da campanha eleitoral argentina. Ambos concordam em afirmar que as chances de uma vitória da extrema direita são reais.

A possibilidade de um triunfo da extrema-direita nas eleições presidenciais argentinas é muito alta, avalia Héctor Bernardo, professor universitário, analista político e diretor do Observatório Latinoamericano de Comunicação e Processos Políticos da Faculdade de Jornalismo e Comunicação Social da Universidad Nacional de La Plata (UNLP). “O partido A Liberdade Avança (La Libertad Avanza), de Javier Milei, obteve um apoio muito grande nas eleições Primárias Abertas Simultânea e Obrigatórias (PASO), com 30,04% dos votos, e a candidata de Juntos pela Mudança (Juntos por el Cambio), Patricia Bullrich, que ficou em segundo lugar com 28,27% dos votos, compartilham um discurso autoritário no qual afirmam que seu projeto é “terminar com o kirchnerismo” e que não hesitarão em utilizar as forças repressivas para aplicar profundas reformas no país (reformas trabalhistas, diminuição do tamanho do Estado e demissões massivas, entre outras)”. A partir desses números, acrescenta Bernardo, poderia se interpretar que cerca de 60% do eleitorado argentino está caminhando na direção da extrema-direita e dos discursos de ódio.

Javier Milei, observa ainda Héctor Bernardo, é um líder messiânico que se mostra como um “outsider” da política, embora não o seja, pois, entre outras coisas, foi assessor da campanha de Daniel Scioli em 2015. A candidatura dele, contudo, vem impactando fortemente os setores da população que se encontram decepcionados, desiludidos ou enojados das estruturas políticas tradicionais. “Milei é um líder neoliberal que possui fortes vínculos com a embaixada de Israel e com a dos Estados Unidos e é parte de um fenômeno mundial que envolve o ressurgimento de discursos autoritários que muitos denominam neofascistas e que se dedicam a demonizar todos os avanços sociais das últimas décadas, utilizando um discurso de comum de qualificar os líderes políticos desse período como “comunistas””. Para o analista político argentino, não há dúvida de que Milei segue a linha de Donald Trump, Jair Bolsonaro, Juan Antonio Katz (Chile) e mesmo de fenômenos europeus como o do Vox, na Espanha, e o de Marine Le Pen, na França.

Neste cenário, as chances eleitorais do atual governo estão diretamente ligadas à situação da economia no país. A inflação, que está rondando a casa de 120%/ano, é o grande problema, resume Bernardo. “O peso da economia será chave para as eleições. A Argentina recuperou os níveis de emprego (hoje o desemprego está apenas um pouco acima de 6%), mas a inflação destruiu o poder aquisitivo dos trabalhadores, setor que sempre foi uma base forte do partido do atual governo, mas que hoje vê se esse apoio se esvaindo em grande parte”, explica.

Por outro lado, o analista acredita que há espaço para mudanças de cenário até as eleições de outubro, uma vez que as principais candidaturas ficaram com uma diferença inferior a 3% nas primárias  (Avanza libertad 30,04 – Juntos por el Cambio 28,24  – Unión por la Patria 27,24) e a participação foi baixa (69%). A expectativa é que essa participação aumente para o primeiro turno presidencial, o que pode trazer mudanças de cenário e colocar qualquer uma dessas três forças no segundo turno.

Para Gustavo Veiga, jornalista do Página/12, as chances de vitória da extrema-direita nas eleições de outubro são reais, como mostraram os resultados das primárias do dia 13 de agosto. Esses resultados, assinala, expressam o cansaço, a insatisfação e a revolta com dois governos sucessivos de diferentes posições que fracassaram e não cumpriram quase nada do que haviam prometido. O governo Macri (2015-2019), resume Gustavo Veiga, endividou criminosamente o país, banalizou o país e atacou direitos humanos fundamentais, colocando em xeque a própria subsistência das pessoas com aumentos colossais dos preços de serviços básicos como água, luz e gás. E o governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, acrescenta, não tomou as decisões exigidas pela época na Argentina, em meio à pandemia e, depois, com a guerra na Ucrânia. “Não teve coragem de enfrentar problemas e fatores de poder. Ele cedeu, cedeu e cedeu. A negociação com o FMI é prova de sua submissão ao órgão que administra as contas da Argentina”, diz o jornalista.

 

Alberto Fernández cedeu demais, avalia jornalista. (Foto: Luiza Casto/Sul21)

Veiga define o economista Javier Milei, o candidato da extrema-direita, como uma mistura de Donald Trump e Jair Bolsonaro, mas ressalta que ele não é um outsider na política, como alguns o definem. “Ele foi assessor do Parlamento, trabalhou em fundações liberais, é deputado e faz parte das estruturas do Estado que diz combater. Sua pregação avança com anúncios de retirada de direitos que custam caro para votar e são fruto das lutas do movimento feminista, como as leis de Interrupção Voluntária da Gravidez e ESI (Educação Sexual Integral)”. De Donald Trump, observa ainda o jornalista, ele carrega a liturgia e a estética política e do ex-presidente brasileiro o uso das redes sociais e sua oratória incendiária, embora não se assemelhe, pelo menos por enquanto, na aproximação com as igrejas evangélicas. Milei é aconselhada por um rabino e não descarta se converter ao judaísmo (ele é católico). Ele se define como um anarquista libertário e seria o primeiro economista a chegar à presidência em muitos anos, caso consiga.

Ainda na avaliação do jornalista do Página/12, as chances do candidato da Unión por la Patria, força que está no governo hoje, se reeleger estão muito diminuídas. Sergio Massa, observa Gustavo Veiga, é um candidato situado à direita da coligação que terá de enfrentar uma política econômica deficitária e em crise, daqui até o final do mandato de Alberto Fernández. “Há um problema duplo difícil de resolver. Tão difícil quanto baixar a inflação, o principal flagelo que a Argentina sofre com o dólar que subiu mais de 20% depois da última desvalorização após a eleição”.

A crise econômica cumpre um papel decisivo na campanha eleitoral e o governo Fernández não suporta seu peso. “Porque aceitou pagar, sem questionar, a dívida ilegítima com o FMI que Macri contraiu, porque embora o nível de emprego tenha subido, a maioria dos postos de trabalho são pouco qualificados, o emprego no setor informal continua muito alto e as negociações de paridade não são suficientes para amarrá-lo à inflação. “Os números da pobreza são assustadores, há cada vez mais pessoas vivendo nas ruas e os alimentos, roupas e serviços estão ficando mais caros”, aponta. A evolução desse cenário nos próximos dois meses será decisivo para saber se a Argentina seguirá um caminho que o Brasil abandonou no final de 2022.


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