Internacional
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8 de março de 2022
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16:34

‘A recepção e o tratamento humano não devem olhar nacionalidade, cor ou raça’

Por
Luciano Velleda
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Refugiados da Ucrânia cruzam a fronteira e chegam na cidade de Medyka, na Polônia. Foto: UNHCR/Chris Melzer
Refugiados da Ucrânia cruzam a fronteira e chegam na cidade de Medyka, na Polônia. Foto: UNHCR/Chris Melzer

Entre as tantas cenas chocantes de bombardeios, destruição e mortes da guerra na Ucrânia, as imagens da população civil tentando desesperadamente fugir da zona conflagrada em direção aos países vizinhos têm revelado uma das faces mais cruéis do conflito. Homens, mulheres, crianças e idosos, pessoas inocentes forçadas a deixar suas casas e a vida que existia até 15 dias atrás para tentar sobreviver e conseguir abrigo em outro país.

Quando a invasão russa na Ucrânia entrou no décimo dia de combates, a Organização das Nações Unidas (ONU) contabilizou cerca de 1,5 milhão de refugiados, a maioria tendo como destino a vizinha Polônia, assim como a Hungria, Eslováquia, Romênia e Moldávia. O alto número de pessoas fugindo da guerra em tão pouco tempo já é um dos maiores fluxos de refugiados em solo europeu das últimas décadas.

Em meio à dificuldade em conseguir chegar aos países vizinhos, o êxodo da população civil tem mostrado ao mundo comoventes cenas de solidariedade principalmente no outro lado da fronteira. Voluntários oferecem roupas de frio, bebidas quentes, alimentação, comida e transporte pra quem chega. Por outro lado, o movimento dos refugiados também tem revelado ao mundo cenas de racismo e discriminação. Principalmente africanos e indianos que vivem na Ucrânia sofrem ainda mais para conseguir uma vaga nos lotados trens que partem das cidades ucranianas em direção à promessa de segurança em outro país.

“O uso de armas explosivas com tanto impacto em regiões bem povoadas pode afetar desproporcionalmente a população. Então o uso de artilharias pesadas, foguetes, mísseis e essas bombas de fragmentação, pelo seu potencial de impacto na população civil, causa um absoluto desespero de fuga”, analisa Maria Laura Canineu, diretora no Brasil da Human Right Watch, organização internacional de Direitos Humanos.

Nessa entrevista ao Sul21, a advogada e mestre em Direito Internacional avalia a tragédia humanitária da guerra e exorta as partes envolvidas no conflito à protegerem a população civil. Maria Laura faz ainda ponderações sobre a atuação do Governo Federal no conflito e na proteção dos cidadãos brasileiros e de países latino-americanos.

“Era esperado do Brasil, até pela importância de um país como o Brasil, de ter sido pró-ativo, desde o início, pra resgatar não só os brasileiros, mas também cidadãos latino-americanos, e compor com a União Europeia e os outros Estados, um plano de evacuação e recepção”, afirma.

 

Leia a seguir a entrevista completa:

Sul21: O que pode explicar a velocidade dessa onda de refugiados?

Maria Laura Canineu: O que a gente tem visto cada vez mais é a utilização de artefatos de guerra que são muito agressivos e podem ter um impacto enorme na população civil. E isso, por si só, já assusta, já gera uma necessidade de fuga imediata. Esse fluxo enorme de pessoas pode ser um pouco explicado por isso. A natureza bélica, forte, pesada e agressiva da Rússia, explica um pouco esse contexto das pessoas fugirem de uma guerra que pode ser cada vez mais letal pra população civil.

No contexto de guerra, existem normas a serem cumpridas e uma delas, a principal do Direito Humanitário, é a proteção dos civis. As partes devem fazer todo o possível pra diferenciar civis e combatentes, e civis de objetivos militares. Quando a Rússia usa artefatos de guerra como bombas de fragmentação, que são por sua natureza já indiscriminadas e podem ter um impacto generalizado e profundo, do ponto de vista inclusive territorial, você explica a necessidade das pessoas saírem. A gente tem documentado o uso dessas munições clusters que  já resultou na fatalidade de civis. Elas equivalem a minas terrestre, porque tem munições que não explodem imediatamente e podem explodir a longo prazo.

Também a gente tem visto a Rússia usar outros ciclos de artefato que também são muito complicados em contexto de áreas extremamente populosas, como em Kiev e outra cidade que está cercada. O uso de armas explosivas com tanto impacto em regiões bem povoadas pode afetar desproporcionalmente a população. Então o uso de artilharias pesadas, foguetes, mísseis e essas bombas de fragmentação, pelo seu potencial de impacto na população civil, causa um absoluto desespero de fuga.

Sul21: Vimos uma tentativa frustrada de criação de corredor humanitário. Existe regra pra esse tipo de ação no Direito Internacional?

Maria Laura Canineu: Houve a notícia de um acordo sobre corredores humanitários, mas não necessariamente eles têm sido cumpridos. Essa questão dos corredores humanitários também é interessante porque isso não é uma obrigação do Direito Internacional Humanitário, é um acordo entre as partes e por isso a sua dificuldade de fiscalizar o seu cumprimento. A gente não sabe quem pode fiscalizar ou o que vai acontecer. Me parece que esse acordo de mandar as pessoas só pra Rússia, sendo que a Rússia é quem tem causado esse fluxo de pessoas, me parece um tanto quanto triste e dramático. Mas também o estabelecimento de corredores humanitários não implica que as partes não devem considerar o Direito Internacional Humanitário da proteção dos civis. Então, o grau bélico, agressivo e a utilização desse tipo de artefato de guerra, tem contribuído pra esse fluxo enorme na fronteira.

Sul21: Qual sua avaliação do apoio que está sendo dado para os refugiados nos países vizinhos?

Maria Laura Canineu: Acho a indicação muito positiva da União Europeia, com uma disposição muito imediata de que aplicaria instrumentos de proteção temporária, que eles podem ficar em solo europeu por pelo menos três anos e não serem mandados embora. A princípio a gente estava preocupado com a sinalização de que eles apartariam apenas ucranianos, sendo que têm muitos  cidadãos de outros países tentando fugir, inclusive brasileiros. Então a gente ficou preocupado com essa sinalização, mas parece que a decisão final se aplica a todos os ucranianos e também aos não ucranianos que tenham residência por algum tempo na Ucrânia. Então isso é muito positivo. Acho que essa sinalização positiva e a cooperação dos países da fronteira também podem ser fatores que explicam esse êxodo mais rápido.

Sul21: A Rússia propôs um corredor humanitário para tirar os civis da Ucrânia e levar para a própria Rússia. Qual sua análise dessa proposta?

Maria Laura Canineu: O problema desses corredores é que eles são tão eficazes quanto às partes que negociaram, permitirem. As próprias partes precisam facilitar  o estabelecimento desses corredores, as áreas, a evacuação segura, e garantir inclusive os trabalhadores pra ajudar na evacuação. Então eles podem ser eficientes, mas também têm riscos como esses, de uma parte estabelecer uma  condição que parece absurda. Porque as pessoas têm que ir pro lugar que iniciou o conflito? Sem isso (a guerra), elas estariam lá vivendo perfeitamente a vida de antes. Então me parece absurdo, sim, por isso que é importante existir corredores pra evacuar civis, mas reforço que isso não isenta as partes de um conflito da obrigação do Direito Internacional Humanitário de evitar vítimas civis, além da ajuda pra aqueles que permanecem, porque também ninguém é obrigado a sair.

Sul21: Como vê a posição do governo federal de socorrer os brasileiros que estão na Ucrânia? O governo demorou pra agir?

Maria Laura Canineu: O Brasil, dada sua importância, inclusive regional, tinha que assumir a responsabilidade, o preceito constitucional de ter na prioridade das suas relações exteriores os direitos humanos, deveria ter sido muito mais pró-ativo desde o início pra ajudar na saída não só dos brasileiros, mas também de cidadãos de outros países latino-americanos. Nós temos documentado, infelizmente, um tratamento desigual entre ucranianos e não ucranianos nas fronteiras, inclusive de estudantes da Índia, países como o Marrocos, que têm muitos estudantes na Ucrânia, mas também de países latino-americanos, como Equador. Então, o papel do Brasil deveria ter sido mais pró-ativo.

É lógico que tem toda uma questão de segurança que você tem que observar, até pra trabalhar dentro da embaixada. Tem uma série de coisas, mas eu creio que era esperado do Brasil, até pela importância de um país como o Brasil, de ter sido pró-ativo, desde o início, pra resgatar não só os brasileiros, mas também cidadãos  latino-americanos, e compor com a União Europeia e os outros Estados, esse plano de evacuação e recepção. Agora o que se espera do Brasil é que não só abra as fronteiras pra cidadãos refugiados ucranianos, como tenha de fato um plano de integração que não se fez em relação a outros cidadãos, como os afegão e outras tantas nacionalidades.

Sul21: Há uma outra tragédia dentro da tragédia da guerra, que é a discriminação dos refugiados. O que pode ser feito pra enfrentar essa situação?

Maria Laura Canineu: É uma tragédia dentro da tragédia mesmo. Temos documentado por nossas equipes que estão nas fronteiras e também dentro da Ucrânia que há sim tratamento desigual de não ucranianos nas estações de trem, nas fronteiras. Temos entrevistado marroquinos, nigerianos, indianos, tem uma média de 80 mil estudantes estrangeiros na Ucrânia. Inclusive cerca de 20 mil indianos que estão sendo proibidos de subir no trem, muitas vezes são parados na fronteira, tem o embarque atrasado pra priorizar mulheres e crianças, o que parece até óbvio, mas mesmo para estrangeiras mulheres com crianças tem sido impostos obstáculos pra essa travessia. Então isso é muito assustador. A recepção e o tratamento humano não devem olhar nacionalidade, cor, raça, esse é o princípio básico dos direitos humanos.

O que pode ser feito, inclusive o Brasil pode fazer isso, mas os países europeus que estão ali mais perto, é que mandem sinais muito claros para os países de fronteira, Polônia, Hungria, que eles vão receber todos e não só os ucranianos, e que eles devem ter uma passagem segura, digna. É uma tragédia dentro da tragédia, como você disse. A assistência humanitária é urgentemente necessária independente da nacionalidade daquele que precisa sair.


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