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19 de julho de 2024
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15:30

Assassinato de morador pela BM evidencia estigma em torno do condomínio Princesa Isabel

Por
Bettina Gehm
bettinagehm@sul21.com.br
Moradores do condomínio onde Vladimir morava estenderam faixa pedindo justiça pela vítima de violência policial. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Moradores do condomínio onde Vladimir morava estenderam faixa pedindo justiça pela vítima de violência policial. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Moradores do condomínio Princesa Isabel, em Porto Alegre, estenderam uma faixa em frente ao conjunto habitacional nesta sexta-feira (19), pedindo justiça. O ato marca dois meses que o morador Vladimir Abreu de Oliveira, 41 anos, foi encontrado morto com sinais de tortura. Ele foi abordado pela Brigada Militar (BM) no dia 17 de maio, dentro do condomínio, e colocado no carro da polícia. A família não teve mais notícias de Vladimir até o corpo ser encontrado, dois dias depois, no bairro Ponta Grossa, a cerca de 10 km do local da abordagem.

Vitória Sant’Anna, que preside a associação de moradores do condomínio, relata que Vladimir tinha uma boa relação com os demais moradores: “Toda a família dele mora no condomínio. Ele teve, sim, conflito com a lei. Resolveu as questões com a justiça e, nos últimos anos, vivenciava uma dependência química. Para nós, moradores, essa trajetória dele nunca impactou na convivência”.

Mas o passado de Vladimir importava para a polícia. Vitória relembra que, naquele dia 17, a Brigada Militar ingressou no condomínio sem nenhum mandado e fora do contexto de operação. “Existe um registro de que ele foi identificado. O fato de ele ser um homem negro, ter tido passagem pela polícia e fazer uso de drogas, traz um estigma muito grande pra que as pessoas achem que se justificaria tamanha violência e brutalidade”, afirma a representante dos moradores. 

A guarnição teria jogado o corpo de Vladimir da Ponte do Guaíba após passarem cerca de 40 minutos o agredindo. Conforme o inquérito da Polícia Militar, enquanto apanhava, ele era perguntado sobre localização de armas e drogas no condomínio. 

A abordagem não terminou naquela terça-feira. Cerca de mil pessoas moram nos 236 apartamentos do Princesa Isabel e foram submetidas a constantes revistas por parte da BM durante quase dez dias após a ação que resultou na morte de Vladimir. “Todos ficaram completamente sitiados pela Brigada. Para entrar e sair do condomínio, os moradores eram revistados de forma intensa. Todas as compras, lixo, mochila de criança, carros passavam por revista”, relata Vitória.

Dentro do conjunto habitacional, funciona uma escola de educação infantil onde trabalham professoras que não moram no local – até estas profissionais eram revistadas, segundo Vitória, de maneira vexatória, em plena avenida João Pessoa. 

As abordagens só cessaram após uma reunião da associação de moradores com a Secretaria de Segurança Pública (SSP).

“Isso não é combate ao tráfico. É outra coisa”, afirma o sociólogo e professor Marcos Rolim, consultor em segurança pública, sobre o ocorrido com Vladimir e os demais moradores do condomínio onde ele vivia. “Se estabeleceu, em torno do condomínio, uma visão estigmatizada. Evidente que pode haver tráfico, como pode haver em todos os lugares, inclusive em condomínios de luxo. Quando se define um local pela venda de drogas, se envolve todos os moradores nesse negócio ilícito. Se o tráfico ocorre ali, envolve um grupo minoritário de pessoas diante do número de moradores”.

Para Rolim, é notável que a própria corregedoria da BM tenha chegado aos culpados da morte de Vladimir. “O caso foi tão revoltante que a investigação da Brigada chegou às provas necessárias para a condenação dos culpados. Isso é elogiável. Sempre há o risco de uma situação como essa ser interpretada como uma exceção à regra, mas há uma quantidade enorme de situações cotidianas que jamais serão investigadas. Muito disso virá à tona a partir do momento em que os policiais atuarem com câmeras corporais que não podem ser desligadas no momento em que eles quiserem”, explica.

Em abril deste ano, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) finalizou a fase de testes técnicos para a aquisição das primeiras câmeras corporais destinadas à Polícia Civil e à Brigada Militar do RS. Os equipamentos devem ser implantados ainda em 2024, mas a pasta não respondeu ao Sul21 quando questionada se as câmeras têm a opção de desligamento por parte do profissional que as estiver utilizando.

Rolim acredita que o resultado da investigação da morte de Vladimir pode contribuir para a redução de casos como este. “O policial violento percebe quando seus comandantes lhe dão apoio. Se há um sinal claro de que essas atitudes não são toleradas – a investigação passa esse sinal – é algo positivo para a redução da violência”, afirma. 

O condomínio Princesa Isabel já foi palco de uma sucessão de ações policiais truculentas por ser apontado como ponto de tráfico de drogas. Portanto, a morte de Vladimir não foi a primeira: em 2018, um jovem foi morto pela BM dentro do complexo habitacional. Com o passar dos anos, moradores continuaram denunciando abusos da polícia no condomínio.

“Grande parte das ações da Brigada não têm nenhum tipo de protocolo ou mandado para acessar os apartamentos”, diz Vitória. “Exatamente um ano atrás, eu denunciei que a BM, sem nenhuma justificativa, entrou no apartamento de uma moradora e ficou ameaçando, coagindo”.

O episódio ao qual Vitória se refere ocorreu em julho de 2023. Na época, ela escreveu em suas redes sociais que o apartamento onde a polícia entrou tinha quatro mulheres e duas crianças, que foram retiradas “pois a comunidade implorou”. “Essa é a segurança pública paga por todos nós, que está circulando pelo condomínio praticamente o dia inteiro ameaçando quem ousa exercer o seu direito”, publicou.

 

Colocação da faixa que pede justiça por Vladimir. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Apesar das numerosas denúncias à Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa e à Defensoria Pública, os abusos seguem acontecendo no condomínio Princesa Isabel. “Vivemos sob suspeição generalizada”, resume Vitória. 

Conforme Rolim, a classe social dos moradores é usada como pretexto para a repressão da polícia. “Quando a PM é chamada para atender uma ocorrência num bairro onde moram pessoas com mais recursos, a tendência é que essa guarnição atue respeitando a legislação e, muitas vezes, até de maneira bastante cordial. Entretanto, quando esses policiais são chamados para atender uma ocorrência na periferia, o padrão de abordagem muda”, explica.

“Há um estigma da sociedade voltado a um conjunto habitacional popular, que venceu a luta por higienização social no centro da cidade”, afirma a representante dos moradores. O condomínio que fica no bairro Santana foi construído através do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), durante a gestão do prefeito João Verle (PT), em 2004. A mobilização da comunidade da extinta Vila Cabo Rocha, que na década de 1990 teve sua moradia ameaçada, resultou na criação do complexo de apartamentos.

Vitória fala da luta da associação de moradores para que o local seja visto como um espaço de habitação, e não de tráfico. “Nossa rotina é muito parecida com a de qualquer outro conjunto habitacional onde moram pessoas trabalhadoras, que lutam cotidianamente para construir suas vidas”. Para ela, a dificuldade em cessar a repressão policial existe porque essa é a realidade em toda a Capital. “Não estamos numa bolha. O que vivemos ali é muito parecido com o que acontece em toda Porto Alegre: violências e abusos policiais”.

Rolim afirma que essa é a manifestação de um padrão de policiamento que remonta ao tempo em que a polícia servia, oficialmente, aos mais poderosos. “A violência policial é, basicamente, falta de profissionalismo. Um bom profissional de polícia nunca é violento, porque sabe que uma postura dessa natureza compromete a confiança da população na instituição”.

Ainda segundo o consultor em segurança pública, a violência policial está estritamente ligada à corrupção, que por sua vez encontra brecha na deficiência de controle externo das polícias. “O Ministério Público é responsável por isso quando se trata de Polícia Civil. Mas o órgão não tem essa vocação, então, a rigor, esse controle não existe. É um controle mais formal, mas não há providência do Ministério, no sentido de acompanhamento das atividades da polícia ou de sanção”, afirma.

Para as polícias militares, existe uma comissão nacional ligada às forças armadas que faria o controle da corporação. “Evidentemente, isso também não funciona. É um cenário propício para violações de toda ordem porque nossas polícias atuam sem controle externo. Como regra, o abuso ‘não dá nada’”, conclui Rolim.

Vladimir entrou para uma estatística que já era alarmante. Em 2023, Porto Alegre registrou 52 mortes decorrentes de intervenção policial. Em todo o estado, foram 149 mortes, das quais 13 foram causadas por policiais militares fora de serviço. 

O Rio Grande do Sul teve um aumento de 40,6% na taxa de mortes decorrentes de intervenções de policiais civis e militares, em relação a 2022, sendo o estado com a 6ª maior elevação no índice. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que alerta: o Brasil pouco avançou na responsabilização de agentes estatais envolvidos em ações letais.

“Se for comparar com São Paulo e Rio de Janeiro, a tradição das polícias gaúchas é de bem menor letalidade”, afirma Rolim. “Mas, nesses locais, as polícias chegaram a ser as que mais matam no mundo por esse mecanismo de falta de controle, de não haver prestação de contas. Por isso, principalmente no Rio, houve a formação das milícias, que são a principal ameaça para a segurança pública no Brasil hoje”.

Conforme o especialista, o Rio Grande do Sul não está livre de uma realidade parecida com a das capitais do Sudeste: se não houver medidas de controle da polícia, pode evoluir um processo de formação de milícias no Estado.


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