Opinião
|
22 de maio de 2024
|
08:06

Carta do coletivo de voluntários que atuou no resgate de pessoas e animais no Viaduto José Eduardo Utzig

Imagem aérea mostra áreas alagadas de Porto Alegre região dos bairros Sarandi, Humaitá e Ilhas | Foto: Giulian Serafim/PMPA
Imagem aérea mostra áreas alagadas de Porto Alegre região dos bairros Sarandi, Humaitá e Ilhas | Foto: Giulian Serafim/PMPA

Nós, trabalhadores e trabalhadoras voluntários que atuamos no ponto de resgate e acolhimento no viaduto José Eduardo Utzig, nas esquinas das avenidas Benjamin Constant e Cairú, vimos por meio desta carta, comunicar à população o encerramento das nossas atividades no dia 19 de maio de 2024.

Desde o dia 2 de maio de 2024, cerca de seis mil pessoas e três mil animais foram resgatados dos bairros Anchieta, Centro Histórico, Farrapos, Floresta, Humaitá, Navegantes, Santa Maria Goretti, São Geraldo e São João. Para receber os deslocados, construímos um circuito de acolhimento com tendas estruturadas e uma série de atividades de auxílio e assistência para as pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas em razão das enchentes. Um aprendizado coletivo e orgânico construído por pessoas que, em grande maioria, não se conheciam e não tinham experiência em situações emergenciais.

Juntaram-se a nós voluntários de Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Goiás, Maranhão e Acre. Foram 18 dias de auto-organização e logística estruturada por voluntários, onde acolhemos milhares de moradores da zona norte da capital, região historicamente desassistida pelo poder público, praticamente sem apoio governamental. As doações vieram em grande parte de “anônimos”, pessoas ou empresas que contribuíram com materiais, equipamentos ou dinheiro de forma espontânea. Para dar conta de atender todas as pessoas, muitos voluntários dormiram a maior parte dos dias no chão, embaixo do viaduto. Na última semana foram disponibilizados, com a ajuda de diferentes fontes, quartos em hotéis a baixo custo para os voluntários. Durante esse período, ao menos cem voluntários trabalharam de forma fixa, e centenas prestaram ajuda de maneira esporádica.

Município, Estado e União prestaram serviço de segurança pela Brigada Militar,Comando de Polícia Choque que fizeram escolta armada em água, Polícia  Civil, e Exército. A Força Nacional e o Corpo de Bombeiros do RS se fizeram presentes na última semana. O Ministério Público Estadual realizou doações e auxílio no recebimento de doações, como cobertores, roupas, toalhas, materiais de higiene e alimentos. Porém, a organização do processo de resgate e acolhimento se deu pela base de trabalhadoras e trabalhadores voluntários.

Essa estrutura contou com os seguintes setores:

Embarcações, combustível e mecânica;
Resgate de pessoas e animais;
Elétrica, montagem e desmontagem da estrutura;
Assistência médica imediata;
Farmácia;
Acolhimento e assistência psicológica;
Alimentação;
Roupas e produtos de higiene básica;
Assistência emergencial médica veterinária;
Alimentação, suporte e encaminhamento dos animais resgatados para lares temporários;
Divulgação e suporte ao reencontro dos Pets resgatados com suas famílias;
Acolhimento e encaminhamento para abrigos ou casas de familiares e/ou amigos;
Carona solidária para resgatados (pessoas e animais);
Embarcações, combustível e mecânica

Cerca de 55 embarcações foram utilizadas no fluxo e logística dos resgates. As equipes contaram com 144 pessoas voluntárias, sendo que destas, ao menos 63 vieram de fora do Rio Grande do Sul.

O setor de combustível funcionou 24 horas por dia e recebeu, na forma de doação, aproximadamente 30.000 litros de combustível para abastecer as embarcações de voluntários e, em alguns momentos, as embarcações do Estado que fizeram a escolta na região alagada.

A oficina contou com a presença de dois mecânicos chefe, que tiveram o apoio de mais de 15 mecânicos, todos voluntários. Abastecida com doação de peças de barcos e ferramentas, atuou gratuitamente. Foram realizados 298 consertos em embarcações, principalmente em motores, hélices e casco, dentro da estrutura da oficina e, em torno de 50 reparos em água. A oficina também funcionava durante 24 horas e o montante de embarcações precisou de mais de um reparo. Barqueiros e mecânicos receberam EPIS (Equipamento de proteção individual), botas de borracha estilo jardineira e mais de 10 wetsuits (estilo long), fruto de doação.

Resgates

Os resgates foram feitos em sua quase totalidade por voluntários que se colocaram em perigos constantes ao entrar todos os dias nas águas contaminadas e ao usarem embarcações que não foram feitas para esse tipo de situação. Pequenos botes, jet skis, barcos a remo, por exemplo, tiveram que ser adaptados para conseguir suprir as necessidades dos resgates, além da dificuldade de mobilidade dentro das ruas alagadas que chegavam a ter águas com mais de cinco metros de profundidade contendo diversos obstáculos não visíveis (carros, muretas, pilares, móveis, lixo, materiais de construção, etc). O acesso aos locais eram complicados, como as entradas nos portões das casas ou nas ruas estreitas, fazendo com que dificultasse a diretriz de retirar o mais rápido possível as pessoas de casa quando pediam resgate.

A equipe se estruturou para receber e registrar à mão os pedidos de resgate, organizar os endereços e encaminhar aos barqueiros. Os voluntários também eram responsáveis por informar, via telefone aos familiares e amigos, se o resgate havia sido concluído ou não.

Os pedidos de resgates chegavam para a equipe de voluntários a partir da solicitação de parentes, amigos e tutores, presencialmente no viaduto José Eduardo Utzig ou por Whatsapp, e então registrados em cadernos. Diante da complexidade de alguns casos de resgate, equipes especializadas eram formadas para acompanhar os barqueiros e atender as demandas médicas, psiquiátricas, psicológicas ou veterinárias em água.

Elétrica, montagem e desmontagem da estrutura

Ao menos oito pessoas atuaram na elétrica, todas voluntárias, que se revezaram em turnos. Nos primeiros dias, apenas três lâmpadas refletoras ligadas em um carro gerador deram conta de iluminar o local. Com o tempo, vieram mais doações de materiais e pessoas se voluntariaram para ajudar. A arrecadação de mais de mil reais entre a equipe, permitiu a compra de um suporte de quatro refletores. Um gerador fornecido pela Brigada Militar, ajudou a equipe da elétrica a se manter até o final, mesmo após a chegada da CEEE (Equatorial) para manutenção de alguns cabos de luz em alguns postes da via pública.

Assistência médica imediata

As equipes de saúde foram organizadas de maneira multiprofissional e realizaram atendimento humanizado no posto de resgate e diretamente nos locais atingidos. Médicos(as), enfermeiros(as), técnicos(as), fisioterapeutas e psicólogos(as) entravam nas águas da enchente, arriscando suas próprias vidas, para atender chamados de emergência em locais de difícil acesso, manejando situações graves de saúde.

Recebemos uma grande quantidade de doações de medicações e insumos os quais foram devidamente distribuídos para população necessitada. Foram montadas escalas de plantão médico para o posto em terra seca, garantindo que sempre teriam pelo menos dois médicos para atender os resgatados e os resgatistas que precisavam de atendimento.

Farmácia

A equipe de farmácia foi originalmente formada pelos técnicos de enfermagem que estavam no local como voluntários, no dia 6 de maio. Contaram com a colaboração de farmacêuticas voluntárias e trabalhadores de outras áreas também voluntários, que se organizaram para trabalhar conforme a demanda dos resgates, para que quem chegasse ao setor tivesse o atendimento e orientações necessários.

Todos medicamentos, os materiais de curativo e de assepsia, as mesas, estantes, cadeiras e materiais de organização do local foram doados pela população da região ou de quem estava atuando como voluntário e ofereceu ajuda para melhorar cada vez mais o atendimento ofertado.

Ressaltamos que a equipe da farmácia, apesar de multiprofissional e extremamente capacitada, foi montada somente com trabalhadores voluntários, sem o intermédio de qualquer órgão ou do município. O apoio e abastecimento foi fornecido pela população do Rio Grande do Sul e por diversos Estados que enviaram doações para que o atendimento pudesse ser continuado.

Todos os medicamentos e insumos médicos doados, que sobraram após o encerramento dos resgates, foram distribuídos entre o bairro Lami e Quilombo dos Machado em Porto Alegre, e alguns pontos dos municípios de Roca Sales e Canoas.

Vacinação

Em uma ação conjunta entre voluntários, Vigilância em Saúde e Assistência em Saúde do município, também foram aplicadas vacinas contra influenza, tétano e antirrábica, a partir do dia 9 de maio, das 14h às 20h.

Acolhimento e assistência psicológica

O trabalho psicológico no viaduto José Eduardo Utzig se deu em duas frentes principais: primeiro socorro psicológico a quem foi resgatado, e a escuta e o acompanhamento dos voluntários(as) que trabalharam nos resgates. Assim que a categoria foi convocada para atuar neste espaço, contamos com no mínimo uma dezena de voluntários que se revezaram e construíram escalas para manter, pelo menos, dois profissionais da psicologia durante todos os dias da semana.

Alguns de nós participaram de resgates em água, principalmente depois da primeira semana de inundação. Em todo este trabalho, ficou nítida a importância do alinhamento profissional, com diretrizes éticas que priorizaram a escuta, o cuidado frente ao trauma coletivo, e a assistência frente a necessidades básicas (alimentação, roupa, abrigo). Entendemos que o trabalho voluntário teve grande importância, mas também muitos limites, devendo a Rede de Atenção Psicossocial ter mais protagonismo e força, com mais profissionais contratados para atuar por meio do Sistema Único de Saúde e do Sistema Único de Assistência Social.

Alimentação

Toda a alimentação servida para a população resgatada, voluntários que estavam atuando no local e moradores de arredores vieram através de doações de trabalhadores e cozinhas solidárias, sendo alimentos prontos, lanches e bebidas, bem como alimentos não perecíveis. Esses alimentos não perecíveis foram distribuídos para resgatados e moradores necessitados das comunidades.

A tenda da alimentação também serviu como ponto de entrega, coleta e distribuição de alimentos e bebidas para abrigos e demais locais de acolhimento em Porto Alegre. A equipe da alimentação também forneceu mantimentos aos moradores que permaneceram em suas casas nos bairros Anchieta, Centro Histórico, Farrapos, Floresta, Humaitá, Navegantes, Santa Maria Goretti, São Geraldo e São João, e também aos moradores ilhados na vila Dique.

Além disso, as equipes de segurança que estavam atuando no local (Brigada Militar, Força Nacional, Corpo de Bombeiros e demais órgãos), também foram beneficiadas por tais doações, em forma de alimentação e bebidas. Não houve mobilização por parte da intendência das forças armadas e nenhuma unidade de logística alimentar foi designada para ajudar. Toda doação que sobrou está sendo distribuída para os locais e pessoas necessitadas.

Roupas e produtos de higiene

Uma tenda com roupas, calçados, toalhas, roupas de cama e cobertores foi estruturada para fornecer roupas secas aos resgatados assim que chegavam no viaduto José Eduardo Utzig. Um ônibus emprestado pela Sopal (Sociedade de Ônibus Porto Alegrense) também ajudou a manter as roupas secas nos dias de chuva. A cada leva de recebimento, as equipes de voluntários(as) faziam a triagem das doações, separando o infantil, feminino e masculino. Tudo organizado por tamanhos para que as equipes tivessem o melhor controle possível em meio ao cenário que estávamos enfrentando na linha de frente. A demanda para atender as pessoas molhadas, tanto para os resgatistas quanto para os resgatados, era de 24 horas por dia.

Roupas de festa, saltos de bico finos e outros artigos que não eram necessários para aquele momento, enviamos para abrigos e pedimos uma troca por artigos mais úteis no momento, como tênis, chinelos, meias, peças íntimas e outros.

Fomos incansáveis dia após dia, pedindo doações para todos os locais, de igrejas, a “anônimos”, pois a falta de roupas de tamanhos G, GG, EG e Plus Size era grande e fizemos de tudo para conseguir atender a todos, no local e também fornecer um kit básico para ir para o abrigo ou casa de familiar, incluindo cobertores, toalhas e lençóis.

Com o fim das atividades de resgate naquele ponto, o ônibus foi devolvido à empresa Sopal e as roupas, cobertas e artigos de higiene que restaram foram destinados a um novo centro de distribuição no Bairro Partenon e outras peças foram enviadas para abrigos nas cidades de Alvorada e Canoas que ainda sofrem com a grande demanda e escassez destes mesmos produtos.

Veterinária

Frente à necessidade de resgate e assistência aos animais de Porto Alegre e região metropolitana neste momento emergencial, a categoria dos trabalhadores da veterinária uniram-se para atuar nos diversos focos de resgate e acolhimento da região, e no viaduto José Eduardo Utzig não foi diferente. Voluntários independentes, sem vínculos prévios, sem quaisquer fins lucrativos e com subsídio próprio, atuaram em conjunto em prol do atendimento emergencial, garantia da saúde, acolhimento e bem estar de todos os animais resgatados nas regiões alagadas próximas.

Nesses quase 20 dias, foram atendidos quase 3 mil cães e gatos, além de pelo menos 10 suínos, 5 equinos, e em torno de 10 aves e pets não convencionais, dentre eles, papagaios, coelhos e chinchilas. Isto só foi possível pela mobilização e apoio da comunidade, por meio de voluntariado no cuidado, organização e alocação dos animais recebidos, seja em lares temporários ou, quando possível, de volta a suas famílias, como também através de inúmeras doações de rações, água, caixas de areia e de transporte, potes, coleiras, guias, medicamentos e insumos médicos, como seringas, luvas, gazes, dentre outros. Infelizmente, muitos desses animais seguem em lares temporários, esperando voltar para suas famílias. Para isso, a continuidade das doações, principalmente de rações, e do trabalho voluntário é essencial.

Abrigos

Entre os dias 06 e 18 de maio (data da desmobilização das operações), foi possível contar com uma equipe de voluntários responsável pelo encaminhamento das pessoas resgatadas para abrigos. Como metodologia utilizada, ao chegar uma pessoa ou família à tenda em questão, os voluntários que prestavam acolhimento, em conjunto com psicólogos que estivessem à disposição, conduziam uma primeira conversa com as famílias para atendimento de suas necessidades básicas (alimentação, troca de roupa etc.). A partir desta conversa, ainda, anotava-se qual eram o(s) (a.) nome(s), (b.) bairro(s) de origem, (c.) número(s) de integrantes, (d.) o(s) número(s) de animais de cada família e se possuía contato próximo, para que fosse possível prosseguir com o encaminhamento de forma adequada. A partir disso, puderam ser identificados pelos voluntários, em linhas gerais, quatro perfis diferentes de pessoas/famílias atendidas e que, por consequência, demandaram encaminhamentos distintos:

i. Pessoas/famílias desabrigadas pelas enchentes. Nestes casos, verificava-se qual era o perfil da família desabrigada (atendimento de suas necessidades básicas/coleta dos dados acima indicados) e conduzia-se o primeiro contato com os abrigos para consulta acerca da quantidade de vagas ainda disponíveis e se possível o encaminhamento (a listagem dos abrigos foi montada de forma autônoma pelos voluntários– nome do abrigo, endereço, perfil de pessoas abrigadas etc.). Uma vez confirmada a disponibilidade, a família era encaminhada ao abrigo em questão por alguma carona solidária de voluntários que estivessem no local;

ii. Pessoas resgatadas com familiares que poderiam fazer o acolhimento em suas casas. Já para estas, o atendimento era distinto. Passava-se por triagem inicial (atendimento de suas necessidades básicas/coleta dos dados acima indicados) e, após telefonema ao parente em questão, confirmada a situação do local em que seriam deslocadas (se tinha água, luz, estrutura para receber a família etc.), era disponibilizada carona solidária no local para transporte da pessoa até o familiar. Caso o familiar viesse buscá-lo(a), aguardava-se em conjunto à família a chegada do parente;

iii. Pessoas/famílias com alguma situação particular ou complexa que demandava atendimento individualizado para que o encaminhamento fosse feito com segurança tanto à família em questão, quanto às já abrigadas. Para alguns casos específicos, em que o grupo identificava que havia alguma singularidade que não seria recomendado o encaminhamento imediato para o abrigo (tal qual: algum indício de dependência química; situações familiares complexas (violência doméstica); membros de famílias que buscavam encontro de outros familiares já abrigados e não havia sido possível o contato até então; moradores de rua, etc.), eram encaminhadas para o Grêmio Geraldo Santana, no bairro Santo Antônio, para passarem pela triagem estendida e acolhimento da Prefeitura de Porto Alegre;

iv. Pessoas em situação de rua. Em decorrência de toda operação montada (alimentação, água, roupas etc.), muitas pessoas em situação de rua passaram a transitar no local e buscar atendimento. Nestes casos, quando solicitado atendimento, às pessoas em situação de rua também foram acolhidas. Contudo, a falta de um assistente social ligado aos órgãos públicos, e a ausência da própria FASC (Fundação de Assistência Social e Cidadania) tornou o trabalho ainda mais desafiador. Nesse sentido, quando verificado que a pessoa que buscava atendimento se tratava de morador de rua, buscava-se contato da FASC para que se deslocassem até o local para que fosse prestado o atendimento. Contudo, caso não fosse possível o contato com FASC, encaminhávamos o morador de rua à triagem municipal (Clube Geraldo Santana), para que a assistência fosse prestada no local.

Importante ressaltar que a Prefeitura de Porto Alegre disponibilizou transporte municipal– ônibus– apenas para os casos encaminhados ao Clube Geraldo Santana, de modo que, para os demais casos acima, o transporte das famílias resgatadas e dos animais era feito integralmente através dos voluntários por caronas solidárias.

Ademais, outro ponto importante a se destacar é que toda a coleta de dados foi feita por voluntários, a despeito das inúmeras solicitações feitas ao poder público para que fosse realizado o mapeamento da população atingida, inclusive para fins estatísticos. Nesse sentido, a partir do trabalho realizado nestes últimos dias, foi possível o desenvolvimento de site para registro dos atendimentos e encaminhamentos realizados. Acesso via https://www.resgateshumaita.com.br/. Como se pode-se observar, não foram poucos os desafios da equipe de voluntários para encaminhamento adequado destas pessoas/famílias para abrigos. Especialmente porque, ao longo do período, não houve qualquer contato de autoridade municipal ou estadual para que fossem prestadas orientações aos voluntários ou combinado como seriam feitos os encaminhamentos destas famílias. É dizer, a metodologia foi sendo desenvolvida por exercício de tentativa e erro ao longo dos dias de trabalho dos voluntários– que, com muita boa vontade e recursos limitados, buscavam a constante melhora dos processos para que todas as famílias fossem atendidas de forma digna e adequada.

Dentre estes desafios, pela importância, cumpre destacar que o atendimento às crianças desacompanhadas, mulheres em situação de violência doméstica, dentre outros casos complexos indicados no item “iii.” Acima, foram realizados exclusivamente por voluntários. Nestes casos, como não havia qualquer representante municipal ou estadual fixos no ponto de resgate do viaduto José Eduardo Utzig, incumbiu aos voluntários envolvidos o acompanhamento individual e estendido destes casos, por meio de contatos autônomos (por exemplo, que as crianças estavam sob a responsabilidade dos voluntários para que então um conselheiro tutelar pudesse acolhê-las). Acreditamos que se as equipes tivessem tido apoio municipal ou estadual nessas circunstâncias, poderíamos ter acolhido essas pessoas de maneira mais humana e civilizada dentro daquilo que são seus direitos.

Inobstante tudo isso, o que podemos afirmar é que, mesmo diante de todas estas limitações, foi possível acolher todas as pessoas e famílias que cruzaram o local com o máximo de respeito, carinho e afeto possível, fazendo com que se sentissem minimamente seguras apesar de todo o contexto. Guardamos com carinho inúmeros relatos destas pessoas e famílias atendidas que fizeram contato para agradecer a maneira como foram acolhidas pelos voluntários. Algumas, inclusive, ainda seguem em contato direto com os voluntários e, após o primeiro atendimento, ainda têm solicitado auxílio para, por exemplo, envio de suprimentos; realocação para novos abrigos; caronas para novos deslocamentos que se fizeram necessários– ex.: alagamento de casa de familiar onde estavam etc. A situação é complexa e demanda intervenção urgente das autoridades necessárias.

Carona Solidária

O projeto começou como carona solidária, de forma totalmente orgânica, a fim de atender a demanda de transporte dos desabrigados, para que ao serem resgatados pudessem receber o mínimo de conforto e dignidade antes de encontrarem seus familiares. Com o passar do tempo, alcançamos o número de 80 motoristas voluntários, atuando de forma coordenada e estratégica, a fim de otimizar cada atendimento e o tempo de deslocamento dentro de Porto Alegre e região metropolitana, aumentando, assim, o número de pessoas beneficiadas pelo nosso trabalho, incluindo transporte de voluntários e pets resgatados. Após o 10° dia de trabalho, com a redução do número de pessoas resgatadas, o grupo se voltou também à coleta e transporte de doações, dando continuidade ao atendimento daqueles que foram resgatados, mas, também, de famílias desassistidas que, de alguma forma, foram impactadas pelos efeitos da calamidade.

Encerramento

Tendo conhecimento sobre os desmontes das políticas de proteção ambiental, de saúde e de assistência em âmbito municipal, estadual e federal, considerando os estudos científicos que apontam sobre as mudanças climáticas e o avanço das águas em áreas urbanas ocupadas por falta de planejamento urbano nos municípios, entendemos o desastre natural que afetou o Rio Grande do Sul nas últimas duas semanas, ganhou tamanha magnitude por negligência do poder público sobre os diversos estudos e projetos ignorados ao longo dos anos.

Depois de duas semanas ininterruptas de muito trabalho, os voluntários estão exaustos física e psicologicamente e precisam “retomar” suas vidas e seus respectivos trabalhos. Entendemos que desde o início a responsabilidade de todo o processo de evacuação, resgate e acolhimento deveria ter sido do poder público e das instâncias que o compõem. Nesse sentido, reforçamos que existe um dever e uma necessidade deste assumir a responsabilidade do cuidado com as pessoas e animais que estão em abrigos, casas de familiares/amigos ou ainda desabrigados dando um encaminhamento justo e digno para os mesmos.

É imperativo que o poder público se mobilize para o acompanhamento das pessoas afetadas dentro dos parâmetros preconizados nas políticas de saúde mental, reforma psiquiátrica, no sistema único de assistência social e alinhado com as melhores evidências disponíveis para as intervenções relacionadas a emergências e desastres.

Assim como precisamos respeitar as evidências sobre a situação climática, também precisamos oferecer atendimento pautado na mesma perspectiva. As crianças atingidas precisam voltar às aulas apenas quando estiverem seguras, as pessoas atingidas precisam voltar ao trabalho apenas quando estiverem seguras, e para que isso ocorra, as pessoas precisam e merecem voltar às suas vidas, com moradias dignas, trabalhos estáveis com garantia dos direitos trabalhistas, acesso à saúde e a assistência públicas e de qualidade.

Agradecemos a todos e todas por tudo que já conseguimos juntos e juntas nessa rede de solidariedade deste coletivo que se formou e pedimos que sigamos fortes e unidos, para cuidarmos dessas tantas vidas que a nós chegaram e de nós seguem precisando! Assinam esse documento: os voluntários que atuaram no resgate de pessoas e animais no viaduto José Eduardo Utzig, na zona norte de Porto Alegre


Leia também