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5 de fevereiro de 2024
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19:54

Porto Alegre: Conselho barra preservação do prédio da Smov e ignora análise de arquitetos

Por
Luís Gomes
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Prédio da Smov, na Avenida Borges de Medeiros, tem a preservação defendida por entidades de Arquitetura e Urbanismo | Foto: Luiza Castro/Sul21
Prédio da Smov, na Avenida Borges de Medeiros, tem a preservação defendida por entidades de Arquitetura e Urbanismo | Foto: Luiza Castro/Sul21

O Conselho do Patrimônio Histórico e Cultural (Compahc) decidiu na tarde desta segunda-feira (5) que o prédio da antiga sede da Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov), localizado na avenida Borges de Medeiros, não reúne as condições necessárias para ser inventariado pelo Município de Porto Alegre. Na prática, isso significa que o prédio não precisa ser preservado e, no entendimento da Prefeitura, abre as portas para a retomada do leilão do imóvel. No entanto, entidades que atuam na área da Arquitetura e do Urbanismo e do patrimônio criticam a forma como o processo foi conduzido no âmbito da Prefeitura e apontam que o histórico do imóvel e seu papel pioneiro como parte do bairro planejado da Praia de Belas não foi analisado de forma técnica pelo Município.

Inaugurado em 1970, o prédio teve projeto assinado pelos arquitetos Moacyr Moojen Marques, João José Vallandro e Léo Ferreira da Silva. Atual Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi), a pasta funcionou no local até março de 2022, quando migrou para o novo Centro Administrativo da Prefeitura, na João Manoel, nº 157.

A Câmara de Vereadores começou a discutir no final de setembro o projeto de lei em que o Executivo pedia autorização para a venda do imóvel — com lance mínimo de R$ 48,1 milhões –, com a previsão de que os recursos sejam utilizados na construção de 254 unidades dos residenciais Barcelona 1 e 2. A matéria foi aprovada em 2 de outubro e sancionada pelo prefeito Sebastião Melo em 2 de novembro. No dia 14 daquele mês, Melo apresentou os detalhes do leilão do imóvel, cujo terreno tem cerca de 4,9 mil metros quadrados, com área construída de aproximadamente 9,9 mil metros quadrados. Ainda no dia 26 de novembro, na véspera da data prevista para realização do leilão, a Justiça suspendeu a realização do leilão a pedido do Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), que foi provocado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS) sob o argumento de que o imóvel é um exemplar da arquitetura modernista na Capital que reúne os critérios técnicos para ser preservado.

Em nota publicada nesta segunda após a realização da reunião do Compahc que decidiu não aprovar o inventariamento do imóvel, a Prefeitura disse que espera poder retomar o leilão do prédio.

Apesar de todo o trâmite entre início da análise pelos vereadores até a data prevista para o leilão percorrer um tempo de pouco mais de dois meses, a discussão sobre a preservação do imóvel é bem mais antiga. Um pedido de tombamento ou inventário do imóvel, feito pelo Sindicato dos Arquitetos do RS (Saergs), foi aberto junto à Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (Epahc), da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), em dezembro de 2018. O processo tramitou lentamente na Epahc e só foi respondido oficialmente , de forma negativa, em 10 de novembro de 2023, depois do projeto da Prefeitura já ter sido sancionado.

Conforme consta na legislação municipal, para ser incluído no Inventário municipal, o imóvel precisa se adequar a três de cinco critérios: ter um valor histórico ou simbólico para a cidade; ter um valor morfológico do ponto de vista da representatividade arquitetônica; ter um valor técnico do ponto de vista do seu processo construtivo; ter um valor paisagístico; e ter um valor como parte de um conjunto de três ou mais edificações que se adequem aos critérios da lei.

No parecer assinado pela chefe da equipe, Débora Regina Magalhães da Costa, a Epahc afirma que o imóvel não se adequa à instância histórica ou simbólica por não ser representativo aos cidadãos da cidade e por não estar identificado com fatos históricos; não se adequa à instância paisagística por não apresentar características que qualifiquem o ambiente; e não se adequa à instância de conjunto por estar isolado entre um estacionamento e uma subestação de energia.

Em carta (ver ao final) enviada à Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, a comunidade acadêmica da Faculdade de Arquitetura da UFRGS, que tem expertise reconhecida pela própria Prefeitura para discussões a respeito do patrimônio histórico da cidade, defendeu que a SMOV deve ser preservada através de tombamento ou inventariação, em caráter irrevogável, e “que sejam criadas as condições técnicas necessárias para que novo estudo contemplando o período do Arquitetura Moderna da qual a Smov é representativa seja realizado, ampliando o período temporal do atual inventario de Arquitetura Moderna em Porto Alegre”. Subscrevem a manifestação o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) e do Rio Grande do Sul (CAU/RS), o Instituto de Arquitetos do Brasil Direção Nacional (IAB DN) e Departamento do Rio Grande do Sul (IAB RS), o Sindicato de Arquitetos do Rio Grande do Sul (SAERGS), o DOCOMOMO Brasil, o DOCOMOMO Núcleo RS, a Associação Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Arquitetura (ANPARQ), o Conselho de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (FAU/PUCRS), a Associação dos Técnicos de Nível Superior da Prefeitura Municipal de Porto Alegre (ASTEC) e o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural Brasileiro/Rio Grande do Sul.

Um dos professores que assina a manifestação e coordenador do DOCOMOMO Sul Núcleo RS — Comitê Internacional para a Documentação e preservação de edifícios, sítios e unidades de vizinhanças do Movimento Moderno –, Sergio Marques avalia que a análise feita pela Epahc não condiz com a realidade do imóvel. Ele afirma que, do ponto de vista histórico, a sede Smov é o ponto de culminância de uma tradição em relação ao movimento da arquitetura modernista que marcou o desenvolvimento da cidade de Porto Alegre e influenciou os primeiros instrumentos de planejamento urbano da cidade.

“Porto Alegre não foi uma cidade pioneira em termos de arquitetura moderna, em termos de edificações, se a gente comparar com o Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio de Janeiro foi capital federal, São Paulo é capital econômica, então isso gera condições, construção de ministérios, de palácios, sedes de empresas, etc, que são distintas. O sul do País foi ocupado tardiamente, tem uma história mais recente. No entanto, nós aqui, principalmente pela proximidade com o Uruguai, que foi uma referência em termos de urbanismo moderno entre os anos de 1930 e 50, acabamos sendo uma das capitais ou a capital brasileira que teve o maior pioneirismo no campo do urbanismo moderno. Nós tivemos aqui o primeiro curso de pós-graduação de Urbanismo do País, e foi organizado junto com o meio acadêmico uruguaio, os professores vieram aqui, os nossos professores fizeram a sua formação lá no Uruguai e isso é um fato histórico reconhecido. Isso ocasionou os primeiros planos diretores brasileiros filiados ao movimento moderno, desde o plano Moreira Maciel lá no início do século 20, mas principalmente o plano Paiva, que começou a ser elaborado na década de 1930 e culminou na década de 1950. É um dos planos diretores vinculados ao movimento moderno mais importante e pioneiro no País”, afirma.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Marques destaca que a primeira estrutura de planejamento urbano da cidade, criada sob a liderança de Edvaldo Pereira Paiva, surgiu neste contexto e foi marcada pela contratação dos primeiros arquitetos e urbanistas da cidade. O plano diretor conhecido como Plano Paiva, de 1959, previa a criação do bairro planejado Praia de Belas a partir do aterramento do Guaíba, que tinha a expectativa de ser um bairro para 200 mil habitantes.

“Uma das últimas iniciativas do Paiva ainda como coordenador da Divisão de Urbanismo foi propor ao prefeito que se construísse uma sede para o planejamento urbano e para as secretarias que faziam a gestão técnica do município lá no aterro Praia de Belas. Porto Alegre passou a ter um edifício específico para a gestão técnica urbana da sua cidade, construída lá no aterro da Praia de Belas dentro do plano Paiva. Ali no aterro tem vários edifícios públicos das esferas federal, estadual e municipal. É a única cidade brasileira que eu tenho um conhecimento que tem um edifício projetado por arquitetos dentro do bairro moderno planejado para isso, para abrigar as funções de planejamento urbano. Então, é um prédio extremamente emblemático do ponto de vista histórico”, afirma o professor.

Do ponto de vista urbanístico, ele destaca que o imóvel está justamente inserido dentro do planejamento previsto pelo Plano Paiva, que acabou por ser executado em grande parte, com os devidos ajustes e modificações ao longos dos anos, como a orla pública do Guaíba, que levaria décadas para ser finalizada. “Tu imagina Porto Alegre hoje sem a orla pública? A orla faz parte desse projeto de bairro moderno que foi executado lá na Praia de Belas. O Parque Marinha do Brasil é outro equipamento muito importante que poderia ter sido um loteamento, a presença da área administrativa, tudo isso junto com o Largo dos Açorianos, a própria Av. Borges de Medeiros, formam um conjunto muito importante. A Smov, junto com o IPE e com o DAER, tem essa imagem de cidade moderna, própria dos anos 60 e 70”, avalia o professor.

Por fim, sob o ponto de vista arquitetônico, Marques avalia que o edifício faz parte do movimento denominado genericamente de brutalista, que usa a estrutura do edifício e o concreto à vista como elemento expressivo. “Se tu observar a Smov, toda a estrutura importante do edifício vem para fora, vem para as fachadas, isso se chama exoesqueleto. Internamente, o edifício foi um dos primeiros a ter planta livre, que é levar todos os pilares para fora do edifício e deixar só um núcleo rígido lá no meio, de forma que a área onde tu usa, onde estão as salas e as atividades propriamente ditas, não tem estrutura, é um salão. Isso dá uma flexibilidade, que foi o que aconteceu. Não tinham paredes, eram só divisórias móveis, o que permitia trocar o layout e os compartimentos de posição a qualquer momento, o que é muito útil para uma repartição pública, que tem mudanças, etc, e isso foi pioneiro em Porto Alegre, o que torna o edifício fácil para o reaproveitamento, porque a parte de uso não tem parede. Ou seja, tu pode facilmente adaptar para uma empresa para uma instituição”, afirma.

O professor destaca ainda que o movimento em prol da preservação não está defendendo que o imóvel volte a ser um edifício público e, inclusive, está de acordo com a venda, mas defende que ele seja incluído no inventário para que seja preservado. Ele afirma ainda que um estudo feito sobre o imóvel indica que, pela legislação municipal aprovada na atual gestão, regras de preservação permitiriam até mesmo um aproveitamento maior do terreno, em termos de área total, caso o prédio seja preservado.

“Pelas regras atuais de estímulo à preservação criadas pela administração atual, se manter a Smov e construir um edifício novo onde está o estacionamento, a área total fica maior do que se não preservar. A pergunta é: por que não preservar? Se há conveniência econômica, o edifício permite a adaptação de usos sem problema nenhum e tem razões históricas, urbanísticas e arquitetônicas, tudo nesse caso leva a crer que a saída que traz melhor resultados para todos é preservar”, afirma.

Ex-presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann avalia que a demora para o retorno do Epach, além de ser tardio, não foi adequado, respondendo o parecer apresentado por técnicos da UFRGS em apenas duas páginas e encaminhado para a análise do Compahc, que tem o papel de ser a instância decisiva e recursal em questões de patrimônio, após a sanção da lei. “A questão do tombamento vai ao município, que não dá retorno, nem que sim, nem que não. Com certeza, intencionalmente, não se tem uma resposta formal. E a resposta, quando vem, é inadequada do ponto de vista técnico e jurídico. Porque uma solicitação de tombamento fundamentada, tem que ter uma análise fundamentada para a sua aceitação ou não, e não houve esse estudo e essa análise. A Epahc, órgão de patrimônio do município, não fez o seu trabalho, não fez a sua análise, e encaminhou diretamente para o Compahc sem a análise adequada para o município”, diz.

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Conselheiro do Compahc pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS), José Daniel Craidy Simões destaca que o município foi chamado a dar seguimento ao processo administrativo em 2022, cerca de três anos após o início da tramitação, quando ela passou a ser considerado matéria de Inventário e não de tombamento por sugestão da Epahc, o que impõe efeitos jurídicos mais brandos e menos restrições referentes ao uso do imóvel.

Durante a tramitação no Compahc, o IHGRGS pediu vista e relatou em voto que a Epahc ao negar a instância histórica ou simbólica sobre a Smov, pediu vistas e fez um parecer alegando que a Epahc, ao negar a instância histórica ou simbólica sobre a SMOV, desconsiderou fatos identificados na história oficial e fatos históricos ou simbólicos de natureza material ou imaterial vinculados à edificação, como à vinculação ao processo de expansão urbana da cidade. Este parecer também destaca que a Prefeitura, em nenhuma de suas esferas, explicou o que será feito com os acervos de mapas a mapas, levantamentos aerofotogramétrico, planialtimétrico, memórias de projeto, projetos, bem como a biblioteca da Smov, o que representaria uma documentação fundamental para a história da cidade e fonte primária de conhecimento histórico para gerações futuras.

Além da resposta da Epahc ser considerada insuficiente, a Prefeitura também se valeu de várias manobras para acelerar a tramitação do processo no Compahc. Essas manobras incluiriam a troca de conselheiros indicados pela Prefeitura e mesmo a troca no representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS). Como a titular da vaga não comparecia às reuniões do conselho, a cadeira da OAB estava sendo ocupada pela suplente, a advogada Jaqueline Custódio, especialista em preservação do patrimônio. Ela recentemente pediu vista ao processo e elaborou um parecer favorável à inclusão do imóvel no Inventário da cidade. Jaqueline concluiu o parecer no dia 22 de janeiro, mas, no dia 23, a OAB trocou o seu representante titular no conselho. Com a substituição, o parecer foi ignorado e excluído do processo.

Em reunião do Compahc no dia 25, a Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente do MP-RS, representada pelo promotor Felipe Teixeira Neto, explicou que a ação judicial tem o objetivo de discutir a observância do rito do pedido de inventário e concordou com a posição de que fosse respeitada a decisão do conselho, órgão que tem o caráter de controle social, mas composto em sua maioria por indicados da Prefeitura.

Para José Daniel, a tramitação no Compahc, contudo, evidencia um atropelo com que o processo foi tratado após ficar parado por anos. “A gente está falando de atropelos até chegar numa instância que seria de recursos, só que recursos sobre um posicionamento que não é explicado, sem justificativa”, diz.

Ele ainda ainda avalia que o valor de largada previsto para o leilão pode ser considerado uma “pechincha” em comparação com o valor de empreendimentos imobiliários em desenvolvimento na cidade atualmente.

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