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15 de julho de 2023
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12:24

Extinção de fundos municipais pode acabar com participação popular em áreas como reciclagem

Por
Luís Gomes
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Unidade de Triagem da Vila Pinto | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Unidade de Triagem da Vila Pinto | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em sessão extraordinária realizada na tarde desta sexta-feira (14), a Câmara de Vereadores de Porto Alegre não colocou para votação o Projeto de Lei Complementar (PLC) que cria o Fundo Municipal de Segurança Pública, Proteção e Defesa Civil (FUMSPDEC) e, por outro lado, extingue, de uma só vez, outros dez fundos municipais, incluindo os de apoio à implantação do sistema cicloviário, de incentivo à reciclagem e do patrimônio histórico. Com o início do recesso parlamentar nesta segunda-feira (17), o projeto só poderá ser votado em agosto, o que traz expectativas de mudanças no texto para movimentos sociais e entidades de áreas ligadas aos fundos.

O PLC nº 015/2022 prevê a extinção dos seguintes fundos municipais:

I – o Fundo para Implementação do Programa de Redução Gradativa do Número de Veículos de Tração Animal e de Veículos de Tração Humana (FRGV);
II – o Fundo Municipal de Apoio à Implantação do Sistema Cicloviário (FMASC);
III – o Fundo do Conselho Municipal sobre Drogas (Fundo do Comad);
IV – o Fundo Municipal de Incentivo à Reciclagem e à Inserção Produtiva de Catadores (FMRIC);
V – o Fundo Municipal de Fomento ao Turismo;
VI – o Fundo de Reaparelhamento e Aperfeiçoamento Previdenciário (FRAP);
VII – o Fundo Municipal de Inovação e Tecnologia de Porto Alegre (FIT/POA);
VIII – o Fundo Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (FUMPAHC);
IX – o Fundo Municipal de Segurança Pública (FUMSEG); e
X – o Fundo Municipal de Defesa Civil (FUMDEC).

Com a fusão dos dois últimos, seria criado o FUMSPDEC, vinculado à Secretaria Municipal de Segurança (SMSeg), que terá, conforme o PLC, o objetivo de propiciar apoio financeiro a políticas de segurança pública da Capital, bem como a realização de pesquisas, treinamento, entre outras ações para a área. Além disso, buscará atender as diretrizes e objetivos da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC), bem como financiar o planejamento e promoção de ações, treinamento e educação em defesa civil e prevenção a desastres.

Os recursos atualmente existentes nos fundos de I a VII ficariam destinados para o Fundo de Reforma e Desenvolvimento Municipal, para aplicação em despesas compulsórias, como pagamento da dívida pública e despesas com obrigações patronais. Os recursos deixariam de ser carimbados para suas áreas originais, com as respectivas secretarias e órgãos podendo solicitar a utilização através de recurso do Tesouro Municipal.

Já os recursos do FUMPAHC seriam destinados ao Fundo Pró-Cultura do Município (Funcultura), devendo ser destinados exclusivamente na recuperação ou preservação do patrimônio histórico e cultural da cidade.

Na justificativa do PLC, a Prefeitura argumenta que a maior parte do orçamento municipal disponível para investimentos hoje é destinada para fundos públicos, o que “engessa e burocratiza a realização de projetos do governo”. Segundo a Prefeitura, apenas 16% da arrecadação da cidade é de aplicação discricionária.

A justificativa destaca ainda que os fundos em extinção não apresentam movimentação financeira por três exercícios financeiros consecutivos, o que está previsto na Lei Complementar nº 869, de 2019, de autoria do governo de Nelson Marchezan Júnior, como justificativa para a extinção.

Em conversa com o Sul21, Gabriela Odorico Ceron, assessora técnica do Gabinete da Fazenda municipal, destaca que, atualmente, Porto Alegre tem 33 fundos, com os 10 extintos sendo os menores, uma vez que possuem, em caixa, montantes que variam entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão. Ela argumenta ainda que a Fazenda identifica que há dificuldades de execução orçamentária desses recursos.

“Nós, aqui na Fazenda, temos avaliado mudanças de fluxos internos para revisar essa parte burocrática existente e tornar o processo mais simples e mais ágil para realizar o serviço para a sociedade. Nós percebemos que a criação extrema de fundos engessa os recursos, trazendo problemas para aplicação deles no dia a dia. Por exemplo, a receita de alguns fundos não é utilizada ao longo do tempo e aquele recurso fica estancado ali, fica engessado, parado, por falta de projetos, por falta de reuniões dos conselhos, dos comitês. Então, nós entendemos que isso vai trazer uma maior agilidade nos fluxos internos da parte administrativa e financeira”, diz.

Gabriela argumenta que as ações das áreas atendidas pelos fundos não deixarão de ser realizadas e que os secretárias e gestores municipais poderão dar mais agilidade para a aplicação dos recursos. “Eu vou te dar um exemplo. Tem um fundo com R$ 100 mil e a secretaria fez um projeto, aprovado pelo conselho ou comitê do fundo no valor de R$ 50 mil. Os outros 50 mil não possuem projeto, mas outras áreas da secretaria, que não são do fundo, têm projetos parecidos que poderiam ser utilizados por ali e acabam não se conversando ou não obtendo aprovação pelo conselho, por alguma característica específica ou alguma negativa do conselho. Então, esse recurso vai poder ser utilizado por toda a secretaria sem tantas formalidades e aprovações de diversas pessoas diferentes ou pessoas que, às vezes, não se envolvem nos conselhos. Nós temos aí a informação de que as secretarias tentam realizar as reuniões, tentam chamar todos envolvidos e, às vezes, têm dificuldade de reunir a todos para aprovação dos projetos. Isso é mais uma burocracia que a gente está tentando finalizar e deixar o gestor da pasta para execução com mais fluidez. Torna mais discricionário e acreditamos que seja mais leve o processo, não tenha tanta tanta necessidade burocrática”, afirma.

Por outro lado, a oposição ao governo Melo na Câmara argumenta que o projeto tem o objetivo de reduzir a participação popular sobre a aplicação do orçamento da cidade. O vereador Aldacir Oliboni (PT) destaca que, apesar de os governos Marchezan e Melo terem mudado o caráter da maior parte dos conselhos e comitês gestores de fundos municipais de deliberativo para consultivo — isto é, tirando o poder de decisão –, os fundos do patrimônio histórico e da reciclagem ainda possuíam conselhos ativos que deliberavam sobre o destino dos recursos. “Realmente restringe, porque acaba com o fundo e o conselho parece que fica sem aquele aquele objeto principal de discutir. Ele tira esse poder do controle social”, diz.

Além disso, o vereador Marcelo Sgarbossa (sem partido) argumenta que Marchezan, autor do projeto que previu a extinção de fundos inativos, e Melo realizaram uma espécie de profecia autorrealizável com os fundos municipais nos últimos anos. Isto é, esvaziaram seus conselhos e comitês e mudaram as regras de destinação de recursos, o que fez com que pudessem ser enquadrados nas regras que preveem a extinção.

“Se tira a autonomia de um conselho decidir sobre a aplicação de recursos, esvazia a participação popular. É curioso que eles mesmo admitem uma aversão à participação social, porque os conselhos vão decidir daí sobre o quê?”, questiona.

Sgarbossa destaca que um dos fundos esvaziados foi o FMASC, que trata da implantação do sistema cicloviário. O vereador pontua que 20% da arrecadação com multas de trânsito aplicadas na cidade deveriam ser destinados ao fundo para construção de ciclovias e campanhas de educação de trânsito, como prevê a Lei nº 10.260, de 28 de setembro de 2007, mas que estes valores nunca foram repassados corretamente, o que motivou uma ação do Ministério Público contra a Prefeitura. O PLC propõe a revogação da previsão desse repasse ao FMASC.

Segundo levantamento do Matinal, a Prefeitura construiu apenas 2 km de ciclovia nos seis primeiros meses do ano, elevando a malha cicloviária da cidade para 79 km. Sgarbossa pontua que a execução destas obras está muito aquém do previsto pelo governo Melo, que tem a meta de construir 100 km até o final de sua gestão, o que o vereador já considera uma meta tímida diante da previsão de 495 km do Plano Diretor Cicloviário Integrado da Capital, aprovado ainda em 2009. “As ciclovias não dependem necessariamente de recursos vultuosos, porque elas são basicamente uma decisão política de priorização do espaço da cidade e de retirar vagas de estacionamento”, diz.

Oliboni e Sgarbossa ainda expressaram o temor da cidade perder o acesso a recursos do governo federal e de doações privadas que eram destinados aos fundos extintos. Contudo, segundo Gabriela Ceron, nenhum dos fundos extintos teria a característica de ser “fundo a fundo”, isto é, com a necessidade de existência para o recebimento de recursos federais. Segundo ela, áreas como saúde, educação e assistência, que tem essa obrigatoriedade para destinação de recursos, permanecem com seus fundos.

“Os que estão sendo extintos são fundos que têm pequenas receitas e pequenas despesas. E essas despesas acabam ficando, muitas vezes, congeladas, sem a utilização plena, por causa de demoras burocráticas que esses fundos precisam. Comissões, conselhos, comitês, planos de aplicação, gestores responsáveis pelos fundos, contas específicas, são diversas burocracias existentes para a construção de um fundo. E nós entendemos que não há necessidade para isso, que nós podemos executar essa demanda de forma mais livre”, afirma.

 

Fundo de apoio à implantação do sistema cicloviário tem a extinção prevista no PLC | Foto: Carol Freitas/Sul21

Entre os dez fundos a serem extintos, a decisão mais critica é em relação ao Fundo Municipal de Incentivo à Reciclagem e à Inserção Produtiva de Catadores. A oposição apresentou emendas para tentar retirá-lo, junto com o FUMPAHC, do PLC. Nesta sexta e na quarta-feira (12), quando o projeto também estava previsto para ser votado, entidades ligadas ao movimento de catadores da cidade “fizeram plantão” para protestar contra o PLC.

Paula Medeiros, presidenta da Unidade de Triagem da Vila Pinto e Secretaria do Fórum de Catadoras e Catadores de Unidades de Triagem (UTs) de Porto Alegre, argumenta que o FMRIC não se enquadra nas regras previstas para extinção dos fundos. Ela pontua que o fundo está atualmente ativo, recebendo e destinando recursos, bem como o seu conselho gestor conta reuniões mensais ativas realizadas em 2023. Ela reconhece que, até o início de 2022, o conselho do fundo estava realmente parado, mas diz que a situação mudou desde então e que os catadores consideram que o momento atual é melhor para o fundo da reciclagem em muitos anos.

Atualmente, o FMRIC conta com R$ 1,2 milhão em caixa, valores que, segundo Paula, estão sendo utilizados para a adequação do licenciamento ambiental das 16 UTs da cidade, que seria o maior desafio para o funcionamento das unidades de triagem da cidade.

Paula pontua que prova de que o fundo está ativo é realização, recente, de vistorias técnicas por engenheiros do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) a UTs, justamente para elaboração dos projetos.

“Se o fundo for extinto, todo recurso que hoje é destinado ao fundo, através das multas aplicadas na cidade, vai para o Tesouro Municipal. Nós nunca vamos conseguir acessar o Tesouro como hoje, nós catadores, conseguimos acessar o fundo”, diz.

Paula argumenta ainda que, além do projeto levar em conta uma realidade defasada do FMRIC, não houve a realização de audiências públicas para debater o tema.

 

Fundo do patrimônio histórico é um dos que têm previsão de extinção. Na imagem, a Confeitaria Rocco | Foto: Pedro Piegas/PMPA

Outro fundo cuja extinção é bastante questionada é o Fundo Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural (FUMPAHC). Conselheira substituta do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (COMPAHC), vinculado ao FUMPAHC, a advogada Jaqueline Custódio avalia que a extinção do fundo é mais uma forma de esvaziar a política de proteção ao patrimônio da Capital.

“Já não tem o Funpoa, que eles extinguiram, que tinha R$ 11 milhões e que era usado para conservação, manutenção e restauro de bens privados, naquela modalidade de empréstimo a juro zero. Era um dinheiro que circulava e podia ajudar bastante”, diz.

No caso do FUMPAHC, os recursos eram destinados para a preservação do patrimônio público, o que, segundo Jaqueline, está subfinanciada e enfrentará mais dificuldades ao depender de recursos do Tesouro Municipal.

“A Prefeitura acabou de desapropriar a Confeitaria Rocco, então é um próprio que vai ser do município e o recurso do fundo vai fazer falta. Além disso, o fundo era usado para preservação dos bens que já existem. A Casa Torelly está caindo aos pedaços”, exemplifica.

Para Jaqueline, a alegada não movimentação financeira do fundo também foi uma estratégia para permitir a extinção. “Claro, não botaram dinheiro ali, não pode movimentar e aí justifica legalmente a extinção”, diz.

Confira a íntegra do PLC 015/2022:

 

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