Geral
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21 de janeiro de 2023
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12:02

Instalação de contêiner sob viaduto coloca em risco projeto que distribui marmitas na Capital

Por
Luciano Velleda
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Viaduto do Brooklin, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21
Viaduto do Brooklin, em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Numa escaldante quarta-feira de janeiro, Rose Carvalho chegou na sede do projeto PF das Ruas para descarregar doações de alimentos. Em duas salas contíguas, ao lado do Viaduto Imperatriz Leopoldina, ela e sua equipe guardam quilos e mais quilos de massa, arroz, feijão, panelas grandes e outras enormes, dois fogões industriais e dezenas de utensílios de cozinha. Sob o viaduto, também conhecido como Viaduto do Brooklyn, Rose coordena uma ação que distribui, em média, 1.200 marmitas para pessoas em situação de rua, todos os sábados pela manhã, há quase sete anos.

O que era para ser mais uma tarde corriqueira de preparação para o trabalho dali a três dias se transformou rapidamente quando ela se deparou com um grande contêiner sendo fixado no chão, bem no centro da área usada para a ação. A ensolarada tarde da Capital gaúcha pareceu se fechar como num pesadelo para Rose. O susto a desnorteou. Por estar há quase sete anos no viaduto, estranhou que ninguém havia entrado em contato para comentar sobre aquela estrutura metálica. Nervosa, foi ao encontro de um casal que se encontrava junto ao contêiner, observando os primeiros atos do novo negócio. Sem entender o que acontecia, conversaram um pouco.

Joice Eltz e o marido, Danúbio da Silva, proprietários do futuro Xis da Imperatriz, contam que sabiam de antemão da existência do projeto. O assunto havia sido ventilado em reuniões com a Prefeitura de Porto Alegre durante o processo em que o casal ganhou o edital para adotar e revitalizar o viaduto localizado em frente a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A lei que permite a adoção combinada com a exploração comercial do espaço foi aprovada na Câmara em novembro de 2021, em projeto de lei proposto pelo vereador Ramiro Rosário (PSDB).

Se para os donos do novo negócio a existência do PF das Ruas no mesmo viaduto não era novidade, para Rose foi o oposto. Surpreendida e meio atordoada, deixou o rápido encontro pensando em procurar a Prefeitura e encontrar um caminho para não perder o espaço que ocupa há quase sete anos.

Sede do PF das Ruas ao lado do Viaduto Imperatriz Leopoldina. Foto: Luiza Castro/Sul21

O PF das Ruas foi fundado por um grupo de cinco amigos, todos já com experiência em voluntariado. Certo dia, perceberam que o Viaduto Imperatriz Leopoldina era um local de grande circulação de catadores e pessoas em situação de rua que procuravam comida nas latas de lixo e por ali também dormiam. A localização é estratégica, um ponto de confluência entre a Usina do Gasômetro, o Parque da Redenção e o Centro Histórico. No dia 27 de agosto de 2016, os cinco amigos foram ao viaduto com uma mesinha e 50 marmitas para ver o que aconteceria naquela manhã de sábado. 

“Foi nossa primeira experiência. No sábado seguinte, um contou pro outro e já foram 80 marmitas (entregues). Nós que éramos cinco (voluntários), já passamos pra oito e assim foi crescendo, crescendo, crescendo. Hoje, seis anos e meio após essa data, o nosso número de voluntários é superior a 120. As nossas marmitas entregues, em dias normais, são mais de 1.300, 1.400. Em dias de festa de Natal, Ano Novo, Carnaval, no nosso aniversário, a gente já chegou a servir 2.500 ou 2.600 marmitas”, destaca Rose.

Ela explica que o projeto tem como princípio servir uma refeição com a mesma qualidade, “com o mesmo carinho feito em casa para os próprios filhos”. Cuidado e amor são palavras constantes no discurso da coordenadora do PF das Ruas. “Isso é o nosso diferencial. A gente não entrega só uma comida. A gente olha nos olhos, a gente diz ‘bom dia’, ‘bom almoço’, quando a gente consegue dar uma sobremesa é uma alegria. Porque pra gente que tem condições, como é bom ganhar um bolo de chocolate, né? Imagina pra eles que nunca ganham.”

Com o tempo, o trabalho do PF das Ruas começou a agregar outros serviços. “Grupos satélites”, define Rose. E assim se aproximou o “Barbeiros na rua”, há mais de cinco anos presente todos os sábados para cortar o cabelo das pessoas em situação de rua. Há também serviços de saúde com o grupo “Médicos do Mundo”, uma vez por mês, quando são feitos curativos e testes de diabetes e HIV. Se algum teste de HIV der positivo, dali mesmo os médicos já orientam os devidos encaminhamentos. Além de médicos, a ação reúne ainda veterinários, psicólogos, massagistas e quiropraxistas. 

 

Coordenadora do PF das Ruas, Rose Carvalho busca uma solução negociada para poder permanecer com o projeto no viaduto. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Os veterinários são uma coisa impressionante. Eles dão vacina, dão o caminho pra castração, remédio pra pulga, vermes. Quando que um cachorrinho na rua vai poder fazer isso?”, questiona Rose.

Ela explica que o PF das Ruas existe graças a doação de alimentos recebida por pessoas físicas e jurídicas, como o Rotary Club, o Grêmio Náutico União, a Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris), entre outras. Por meio do perfil do projeto no Instagram e Facebook, são feitas campanhas e pedidos para arrecadar alimentos. Doações em dinheiro também ocorrem. Todo sábado, as 1.200 marmitas entregues, em média, significam 90 kg de macarrão, 90 kg de arroz e 50 kg de feijão, além de muitos quilos de salsicha, a proteína que tem sido possível incluir no prato.

“Acredito que o trabalho que o PF presta para as pessoas que estão na rua é muito importante para ser simplesmente tirado daqui. Esse é um lugar que considero público, para simplesmente ser privatizado e as pessoas serem retiradas daqui”, avalia Rose.

Ela critica o que entende ser a ideia do governo de Sebastião Melo (MDB) em tirar as pessoas em situação de rua da região central e levar para os bairros periféricos. Para fazer o quê lá, ela não sabe. Segundo a coordenadora do projeto, a intenção de transferir para bairros mais afastados foi exposta pelo secretário de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, em reunião recente com a coordenação do PF das Ruas. 

“Ficou claro que a ideia dessa revitalização dos viadutos é justamente fazer as pessoas em situação de rua voltarem para os seus polos e lá buscar trabalho, lá tentar achar sobrevivência. Mas se eles lá não conseguiram trabalho, vieram pra cá e aqui eles conseguem comida, atendimento médico, barbeiro, conseguem tudo, o que eles vão fazer lá?”, questiona.

PF das Ruas entrega, em média, 1.200 marmitas para pessoas em situação de rua. Foto: Luiza Castro/Sul21

A coordenadora do PF das Ruas define o diálogo com a Prefeitura, até o momento, como “difícil”. Houve apenas uma reunião e outra está agendada para a próxima terça-feira (24). Por enquanto, não há nada decidido. No primeiro encontro, o secretário de Desenvolvimento Social sondou a possibilidade de ceder um espaço na Assis Brasil. Rose imediatamente recusou. Todavia, a lei aprovada na Câmara e o edital lançado pela Prefeitura e vencido pelo casal que começou a instalar o contêiner são dados da realidade. Situação posta, a esperança agora é encontrar uma alternativa que combine os interesses.

“A população em situação de rua está no centro. Não quero ir pra outro lugar longe daqui. Sei que nas periferias existe pobreza, existe também pessoas que estão precisando, mas o nosso foco é pessoa em situação de rua. Eu tô aqui há tanto tempo. Conheço as pessoas que estão na fila muitos pelo nome, sei a dificuldade deles, então são essas pessoas que a gente quer. Não pretendo sair daqui. Vamos lutar para ficar aqui, a gente quer o apoio de outros grupos e de outras entidades que nos apoiam para a gente continuar aqui”, afirma.

Apesar da fala convicta, a situação indefinida traz insegurança. Para manter a ação que há quase sete anos começou com 50 marmitas e hoje entrega mais de mil para pessoas que passam fome em Porto Alegre, Rose acredita que precisará de apoio para superar essa dificuldade. 

“Acredito que o nosso trabalho é muito importante e que os porto alegrenses também nos apoiam. Acredito que a população vai nos apoiar, vai se manifestar e vai lutar junto com a gente. As pessoas vão perceber que quem tá na rua não é um lixo pra ter essa mentalidade de higienização. Quem tá na rua é um ser humano. O que a gente quer é a permanência no viaduto algumas horas do sábado, das oito da manhã até as duas da tarde. Sou a coordenadora do projeto, me responsabilizo por limpeza, pela entrega, me responsabilizo por tudo, como sempre me responsabilizei nesses seis anos e meio”, projeta.

Em contato com a reportagem do Sul21, o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Léo Voigt, disse que o diálogo com o PF das Ruas recém iniciou e, por isso, ainda não há o que se manifestar.

Área de alimentação do futuro Xis da Imperatriz está sendo planejado para até 100 pessoas. Foto: Luiza Castro/Sul21

Joice Eltz e o marido Danúbio da Silva esperam inaugurar o Xis da Imperatriz nas próximas semanas. O casal atua no ramo da alimentação há cerca de 20 anos. Operam, por exemplo, o Pão com Linguiça Box, no Cais Embarcadero. O projeto do novo espaço no Viaduto Imperatriz Leopoldina prevê uma praça de alimentação com mesinhas na rua para 100 pessoas. A expectativa é que funcione das 8h às 22h.

Os planos do casal para o espaço incluem a restauração das rampas de skate, a colocação de novos equipamentos, como um ponto de bicicleta, e a compra de refletores para melhorar a iluminação do local e torná-lo mais seguro. Os planos ainda passam por eventos culturais e um brique.

“Queremos que a vizinhança faça ‘as pazes’ com o viaduto”, afirma Joice.

A proprietária do novo negócio está ciente da situação em que se viu envolvida. Em que pese tenha trilhado todo o caminho legal elaborado pela Prefeitura após a aprovação de uma nova lei, ela percebe que, de alguma forma, a “estranha” no viaduto e ela. Tal como a coordenadora do PF das Ruas, Joice confia numa solução boa para todos.

“É um assunto muito delicado que a gente está tendo bastante cuidado para tratar. O trabalho (do PF das Ruas) é lindo, super apoiamos. É um trabalho muito bem organizado”, comenta, sem poupar elogios para o controle que a equipe do PF das Ruas tem junto as pessoas em situação de rua.

Após conhecer com os próprios olhos a ação do grupo de Rose no último sábado (14), Joice acredita que o compartilhamento do espaço nas manhãs de sábado será possível e, quem sabe, até abra novas oportunidades de parceria.

Enquanto a situação não se resolve, a coordenadora do PF das Ruas oscila os sentimentos entre a confiança em poder manter o trabalho no viaduto e o medo de perder o espaço ocupado há quase sete anos. 

Rose destaca não ter a intenção de atrapalhar o novo negócio que está se instalando no local. Pelo contrário, pensa que da crise também pode até nascer uma parceria. A proposta é de convivência, num espaço mais ao lado, por algumas horas dos sábados. 

“Quero ficar no meu cantinho com os voluntários fazendo o trabalho, porque o importante é que as pessoas continuem vindo aqui buscar alimento. É pensar no ser humano que está na rua que ele merece, pelo menos, uma refeição. É o mínimo, né? É o básico do ser humano. Quem deveria dar é a Prefeitura… eu tô fazendo… então que a Prefeitura não venha me atrapalhar. Deveria me apoiar, me deixar quietinha no meu canto fazendo, mas acredito que eles vão ter o bom senso, vão me apoiar e vão deixar eu fazer o meu trabalho”, conclui, esperançosa em poder continuar servindo mais de mil marmitas para pessoas que passam fome nas ruas de Porto Alegre.

 

Ação de aniversário do PF das Ruas. Projeto é mantido com doações de alimentos de pessoas físicas e jurídicas. Foto: Reprodução

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