Geral
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8 de novembro de 2022
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10:17

Manifesto repudia ‘ódio racial’ de alunos do Colégio Farroupilha e promete ‘enfrentamento’

Por
Flávio Ilha
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Colégio Farroupilha. Foto: Divulgação/Farroupilha
Colégio Farroupilha. Foto: Divulgação/Farroupilha

“Aos estudantes filhos dos cidadãos de bem, hoje é o dia em que a injustiça vai acabar. Hoje é o dia em que não mais ouviremos calados todas as ofensas, todos os discursos de ódio, os atentados à nossa moral e, acima de tudo, o ódio de classe que destilam contra nós, bolsistas”.

Assim começa o manifesto de estudantes do Colégio Farroupilha em protesto contra as mensagens de ódio que um grupo de alunas bolsistas recebeu na semana passada, após comemorarem a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 30 de outubro. O documento, que deverá ser lido em ato de protesto a ser realizado ainda esta semana, em frente à escola, foi obtido com exclusividade pela reportagem do Sul21.

Em mensagens de um grupo privado de uma das turmas de terceiro ano do Ensino Médio, alunos chamaram duas estudantes bolsistas de “fedidas”, “nojentas”, “mocreias”, entre outros termos ofensivos, e também as atacaram com palavrões. As alunas printaram as mensagens e registraram boletim de ocorrência. Duas outras estudantes que se solidarizaram com as colegas ofendidas também acabaram sendo alvo de injúria. A escola suspendeu 16 alunos identificados como agressores.

O clima estava tão tenso que a escola já havia decidido suspender as aulas na segunda (31) e na terça (1º) para evitar discussões políticas entre os alunos. Nesses dias, as aulas foram virtuais. Mas não adiantou. Os grupos de mensagens se encarregaram de extrapolar o debate eleitoral para as ofensas pessoais. Alguns estudantes chegaram a acusar as bolsistas de “ingratas”, na medida que tinham as mensalidades pagas pelas famílias ricas que estudam no Farroupilha.

Na carta, as estudantes revelam perplexidade com as agressões pelo fato de fazerem uso do direito da liberdade de expressão. “Logo que saiu o resultado da eleição, comemoramos a vitória do Lula com mensagens sem nenhum tipo de agressividade. Mas recebemos de volta uma série de ofensas pesadas. Sempre sentimos uma espécie de exclusão por sermos bolsistas, só que nunca de forma tão agressiva e explícita”, relatou uma das vítimas, que não quer se identificar.

“Te prepara para comer lixo na rua”, escreveu um aluno em resposta. “Vai embora, aqui não é teu lugar”, afirmou outro. “Quando tu não conseguir emprego, não vou fazer caridade e ser tua patroa”, disse uma terceira. A vítima, que se declara negra, afirmou que o conflito foi mais em função da classe social do que pela raça. “Bastou uma pequena provocação pra vocês mostrarem que não é nosso posicionamento político que incomoda, mas sim a nossa existência”, escreveu a aluna agredida.

A estudante é bolsista do Farroupilha desde 2014, quando tinha nove anos e se habilitou para a quarta série do Ensino Fundamental. Mora em Viamão, na região metropolitana de Porto Alegre, e todos os dias pega dois ônibus para estudar no turno da tarde. A aluna vai prestar vestibular para Psicologia ou Pedagogia. Os pais são autônomos e trabalham como motorista de aplicativo e cuidadora de idosos. “Estudei como nunca, com oito anos de idade, para estar aqui. Havia muita concorrência. Só eu e outra colega, também negra, fomos aprovadas”, informa.

No manifesto, as estudantes agredidas salientam o ódio de classe destilado pelos colegas. “Enquanto muitos estudantes desta escola estudam aqui simplesmente porque os papais têm condições de pagar, muitos de nós estudamos aqui por puro e exclusivo mérito. Cada estudante bolsista fez parte de um intenso processo seletivo para merecer estar aqui. Muitos de nós já tivemos de abdicar de muitas oportunidades, passar por inúmeras dificuldades financeiras, e fazer com que nossas famílias lutassem muito por estudar aqui. E, ainda assim, vocês acham que têm o direito de nos tratar como inferiores”, diz a carta.

O texto reafirma a necessidade de enfrentamento em relação ao episódio. “Enfrentamos a ordem social que nos oferece nada mais que uma vaga no subemprego. Subvertemos a consciência de vocês, se é que têm uma, quando provamos sermos tão capazes quanto melhores que vocês em inúmeros aspectos. E é disso que vocês morrem de medo. Uma pessoa pobre tendo acesso aos mesmos espaços de vocês. O ódio de vocês só demonstra que o simples fato de existirmos e pensarmos dentro dessa escola é o que mais os amedronta”, completam.

As estudantes ainda não encontraram os agressores porque os estudantes continuam suspensos. Na terça-feira (8), a escola precisa responder oficialmente ao Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) acerca das eventuais providências adotadas, de acordo com o regimento vigente e as regras de convivência e de conduta escolar, bem como a identificação dos adolescentes em tese envolvidos no episódio.

A promotora Regional da Educação de Porto Alegre, Ana Cristina Ferrareze, encaminhou os casos, que inclui também a live ofensiva registrada no Colégio Israelita, ao Núcleo do Ato Infracional do MP-RS para adoção das providências consideradas cabíveis na esfera das infrações perpetradas pelos adolescentes.

Além disso, encaminhou o caso também à Promotoria de Justiça da Infância e Juventude – Núcleo Articulação/Proteção, para as providências consideradas cabíveis na esfera cível, especialmente em relação à exposição da imagem dos alunos envolvidos e diante da responsabilização dos pais ou responsáveis, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente.

As informações serão remetidas, ainda, à 1ª Coordenadoria Regional da Educação, para ciência e adoção de providências e medidas cabíveis. “Pedimos aos colégios que nos informem oficialmente a identificação dos adolescentes envolvidos e quais medidas foram ou serão aplicadas. Depois da manifestação formal, serão realizadas audiências extrajudiciais. Temos certeza de que atitudes como essas, que são graves, que nos chocam, devem ser punidas. As condutas dos adolescentes precisam ser responsabilizadas também pela área do ato infracional, bem como investigadas as condutas dos pais ou responsáveis”, ressalta a promotora.

O Colégio Farroupilha comentou o episódio com uma nota, tornada pública na sexta-feira (4), em que repudiou “discursos ou ações que disseminem qualquer tipo de intolerância”. A escola advertiu também que não diferencia estudantes pagantes de bolsistas e informou que está contatando as famílias das vítimas. “Houve a imediata aplicação das penalidades previstas no Código de Conduta e Convivência da instituição”, informa a nota.

As estudantes agredidas, entretanto, reclamam que não receberam nenhum pedido de desculpas formal da escola em relação ao comportamento ofensivo de alunos vinculados à instituição. “A direção passou nas salas de aula e tentou apaziguar os ânimos por conta da formatura, que está próxima. Mas não houve nenhuma retratação, nenhum pedido de desculpas a nós ou a nossas famílias”, disse outra estudante agredida.


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