Geral
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8 de novembro de 2022
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17:42

Entre brigas, dívidas e acordos individuais, comerciantes se preparam para deixar Viaduto Otávio Rocha

Por
Luís Gomes
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O Viaduto Otávio Rocha começou a ser construído em 1914 para fazer a ligação direta entre o porto, localizado na área central, e a zona sul da cidade, pela Av. Borges de Medeiros. Foto: Luiza Castro/Sul21
O Viaduto Otávio Rocha começou a ser construído em 1914 para fazer a ligação direta entre o porto, localizado na área central, e a zona sul da cidade, pela Av. Borges de Medeiros. Foto: Luiza Castro/Sul21

A Prefeitura de Porto Alegre anunciou nesta segunda-feira (7) que chegou a um acordo para realocar no Mercado Público quatro comerciantes do Viaduto Otávio Rocha enquanto durarem as obras de revitalização da estrutura, previstas para iniciarem em dezembro. O acordo parece ser uma das últimas etapas de uma disputa sobre o futuro do viaduto que se arrasta há anos, entre os interesses do poder público e os interesses dos ocupantes das lojas, que também possuem muitas divergências entre si.

Inaugurado há 90 anos, em 1932, o Viaduto Otávio Rocha é um dos marcos da Capital, atravessado em sua parte superior pela Av. Duque de Caxias e, abaixo, acompanhado pela Borges de Medeiros. Apesar de estar no coração da cidade, há décadas apresenta sinais de degradação, seja estrutural, com vazamentos visíveis em suas lojas, seja pela pichação de suas paredes e o vandalismo de suas estruturas.

As discussões mais recentes para a revitalização começaram ainda no governo de José Fortunati (à época no PDT), atravessaram o governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e ganharam fôlego na atual gestão de Sebastião Melo (MDB), que assinou em julho deste ano o contrato com a empresa Concrejato Serviços Técnicos de Engenharia para a realização das obras, orçadas em R$ 13,7 milhões.

Pelo contrato, a empresa tem um prazo de 18 meses para fazer a recuperação dos elementos construtivos e decorativos do Viaduto, bem como a restauração das instalações elétricas, telefônicas, dos sistemas de segurança e de iluminação pública. O projeto prevê também investimentos em sinalização viária, turística e comercial. Instalações hoje inacessíveis ao público, como as escadarias internas, devem ser reativadas.

 

Com sinais de degradação visíveis há décadas, viaduto completa 90 anos em 2022 | Foto: Luiza Castro/Sul21

Inicialmente, a intenção da Prefeitura era iniciar as obras em agosto, mas a assinatura para a ordem de início dos trabalhos ocorreu só na sexta-feira (4) passada. A demora se deu, em grande parte, pela dificuldade que o poder público teve de entrar em acordo com os 33 comerciantes que ocupam as lojas sob o viaduto atualmente.

Durante os 18 meses previstos para as obras, todos os comércios do local permanecerão fechados. O principal temor dos comerciantes, mesmo nas discussões que antecederam a revitalização, sempre esteve relacionado com a possibilidade de não mais retornarem aos seus espaços após a reforma.

O temor não era sem base, uma vez que a própria Prefeitura avaliou que a maioria dos comerciantes já não tem mais direito a ocupar os espaços, seja por não terem a permissão formalizada, seja por terem dívidas pela falta de pagamento de aluguel, algumas passando da casa de R$ 100 mil. De acordo com a Prefeitura, apenas três dos 33 ocupantes do viaduto estão em situação regular.

Alguns são permissionários desde a década de 1970 ou pessoas que herdaram o ponto. Outros são comerciantes que a própria Associação Representativa e Cultural dos Comerciantes do Viaduto Otávio Rocha (Arccov) desconhece a origem. A entidade, atualmente, representa apenas 11 lojistas.

Presidente da Arccov, Adacir Flores destaca que foi a entidade que costurou o acordo de segunda-feira para que quatro lojas ocupem temporariamente espaços no Mercado Público. Ele diz que o acordo foi intermediado pela Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Juventude da Câmara de Vereadores e que, inicialmente, a Prefeitura não ofereceu nenhuma garantia aos comerciantes.

“Sempre foi aos trancos e barrancos, uma burocracia danada. A primeira palavra que diziam era ‘não’”, diz Adacir, ele próprio um dos agraciados com a transferência para o Mercado de sua loja, que vende livros.

Outros três associados da Arccov não quiseram a realocação, apenas a sinalização de que poderão retornar no futuro, e outros quatro foram realocados em outros espaços, como o Caminho dos Jacarandás na Praça da Alfândega, o Abrigo dos Bondes na Praça XV e o Viaduto André da Rocha. Adacir acredita que esses onze comerciantes voltarão após a reforma e diz que um acordo deve ser assinado nos próximos dias para ratificar essa decisão.

“Nós vamos fazer um TAC para a defesa da nossa identidade material. O projeto de restauração do Viaduto só existe porque nós, enquanto sociedade civil, o construímos. De certa forma, o Melo se apropriou dele e queria nos dar um pontapé na bunda. Só que nós fizemos um movimento e ele teve que recuar”, diz Adacir.

 

Diversas lojas já estão fechadas | Foto: Luiza Castro/Sul21

Atualmente, o prazo dado pela Prefeitura para a realocação das últimas lojas é 15 de novembro. Adacir avalia que o prazo ainda é exíguo, em razão das adaptações necessárias para a transferência ao Mercado. No entanto, acredita que todas as lojas deixarão seus espaços até o final do mês.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Administração e Patrimônio (Smap), responsável pelas negociações, informou que outras três lojas estão sendo realocadas em espaços do município (Mercado do Bom Fim, Casa de Cultura Plauto Cruz e Secretaria de Educação), uma irá para o Teatro Renascença, outra irá para o Abrigo dos Bondes, sete foram desocupadas voluntariamente, uma já estava desocupada, cinco manifestaram a intenção de desocupar até o dia 15 e não pleitearam realocação, quatro estão fechadas e não têm interesse em realocação, duas estão ocupadas e não manifestaram interesse em realocação, uma recebeu a oferta de uma sala na Secretaria da Cultura e um ocupante solicitou aluguel social.

Segundo a Prefeitura, ainda estão sendo feitas negociações com ocupantes de dois pontos que possuem brechós no Viaduto e que descartaram todas as alternativas oferecidas. A Prefeitura diz que, no momento, prefere esgotar as possibilidades de negociação antes de ajuizar ações de reintegração de posse para garantir o início das obras em novembro.

Ao assinar a ordem de início, o prefeito Melo agradeceu os ocupantes das lojas, dizendo que passariam por um “transtorno provisório”. “Vamos devolver um espaço recuperado e garantir a preservação do patrimônio histórico. É mais um avanço da gestão para entregar um Centro revitalizado e qualificado ao cidadão. Agradecemos a parceria dos ocupantes do viaduto pelo diálogo e construção de alternativas para viabilizar a obra. O transtorno é provisório, mas os benefícios serão permanentes”, disse.

A reportagem questionou a Smap sobre a garantia de retorno dos atuais lojistas após a reforma. Em nota, a pasta respondeu: “Mesmo a maioria deles atuando de forma irregular, sem documentação válida e com dívidas, a Prefeitura ofereceu alternativas para que prosseguissem suas atividades durante a execução da obra. Será realizado trabalho semelhando ao ocorrido no Mercado Público, oportunizando a regularização financeira e administrativa dos ocupantes. Os comerciantes deverão adequar-se ao projeto que será implantado após a revitalização do viaduto”.

Sabir Ribas, do Café Imprensa, acredita que a revitalização “vai ser boa para todo mundo”, mas pontua que os comerciantes não gostaram da forma como a Prefeitura iniciou as negociações, sem discutir realocação e retorno. Por outro lado, ele diz que, mesmo levando em conta a ideia de qualificação dos espaços, os atuais comerciantes poderiam se adequar a uma nova realidade. “Eu tinha um café no prédio do ARI, onde o que eu vendia era completamente diferente do que eu vendo aqui em termos dos valores. Eu tive que me adaptar quando vim para cá”, diz. “Nós vamos ter que nos adequarmos ao que eles proporem para a gente”.

Um dos comerciantes que irá para o Mercado Público, Ribas não acredita totalmente na possibilidade de retorno após a reforma. “Isso aí vai ser tratado em outra reunião, ainda não assinaram que nós vamos voltar. Eu acho que nós não vamos voltar, porque eles querem mais é elitizar o viaduto, querem fazer um negócio classe A, que não vai existir. Aqui não é comércio para classe A, o pessoal que vai no Embarcadero não vai vir aqui”, avalia.

 

Sabir Ribas diz que há ao menos quatro posições divergentes entre os comerciantes | Foto: Luiza Castro/Sul21

Em visita a diversos comerciantes nesta segunda, o Sul21 coletou relatos de desavenças entre os próprios lojistas, como reuniões que quase culminaram em brigas físicas. Há ainda acusações de traições, de comerciantes que “deduravam” o que era discutido entre eles à Prefeitura em troca de privilégios.

Adacir diz que alguns comerciantes nunca quiseram se envolver nas negociações da associação e que outros saíram após pressão da Prefeitura. “Esse é o pessoal que não tem documento nenhum no viaduto, que comprou loja ou subalugou. Nunca pagaram um centavo para a Prefeitura. A Prefeitura diz que nós devemos. Nós devemos, mas teve época que a gente pagou, teve época que quisemos negociar e a Prefeitura não encaminhou. Esse pessoal nunca quis se envolver com a entidade, pelo contrário, metiam a pau em nós. Agora, no final, quiseram negociar, mas é tarde”.

Ribas diz que há “quatro facções” de comerciantes, cada uma delas com uma visão diferente sobre a revitalização.

Durante a visita às lojas, o Sul21 conversou com um comerciante que não quis se identificar e diz que defende a revitalização, mas que outros lojistas foram contrários por falta de garantia de retorno para todos. Outro ponto de discórdia, segundo ele, seria quanto ao espaço que cada lojista teria direito na realocação. No acordo firmado na segunda, os espaços do Mercado foram definidos por sorteio.

“Alguns lojistas querem o tamanho de metro quadrado que tem aqui na realocação, não vão ter, aí estão brigando um para tirar o espaço do outro”, relatou o comerciante que não quis se identificar.

Esse comerciante ainda aponta que a maioria dos lojistas tem dívidas altíssimas com a Prefeitura por contas de taxas e aluguéis atrasados, algumas delas passando de R$ 100 mil, o que gera discordâncias sobre quem teria direito a retornar. Ele alega ainda que os comerciantes que eram favoráveis à revitalização foram excluídos da Arccov.

Natanael Frison é um dos que permanecem contrários à revitalização. Embora ache que ela é necessária, considera que os comerciantes tiveram muitas perdas recentes por estarem fechados por quase dois anos em razão da pandemia. “Eu acho sacanagem, logo depois da pandemia, fazerem uma reforma de 18 meses com o pretexto de que o viaduto está abandonado, sendo que ele só está abandonado porque a própria Prefeitura removeu a Guarda Municipal e houve depredação do patrimônio”, diz.

 

Comerciantes alegam que arrombamentos são constantes e ajudaram a dificultar pagamento de alugueis | Foto: Luiza Castro/Sul21

Proprietário de uma loja de conserto de eletrônicos, Natanael também questiona o argumento de que os comerciantes com dívidas não deveriam ter direito ao retorno. Ele argumenta que, desde que herdou o ponto do sogro, que era permissionário desde os anos 1970, há 16 anos, o estabelecimento já foi alvo de 16 arrombamentos, o que lhe gerou perda de capacidade de pagar taxas. “Tem todo um contexto para as dívidas. Eu pagava aluguel, mas é de um pouquinho de tempo para cá que eu não consegui pagar. Os arrombamentos geraram uma dívida, para mim, de mais de R$ 100 mil, eu tive empobrecimento e não consegui mais pagar os alugueis. Por que teve tanto arrombamento? Porque removeram a segurança”, diz.

Natanael conta que já colocou reforço nas portas e nas grades por conta própria, uma vez que a Prefeitura não atenderia os constantes pedidos de reforço da segurança. Ele conta que uma vez a loja foi arrombada com as portas e grades sendo arrancadas por um carro. “A Prefeitura gastou milhões num sistema de câmeras e elas não captaram nada. Como é que ninguém viu os caras, duas da manhã, em pleno Centro, puxando a porta com um carro?”

Sobre a realocação, o comerciante diz que recebeu a proposta de ir ao Camelódromo, mas numa loja “lá no fundo”, e não aceitou. Agora, o plano dele é mudar para um espaço na zona sul, na Av. Otto Niemeyer. Caso não consiga retornar para o ponto após a reforma, ele promete entrar na Justiça. “Eles vão me ferrar, porque não querem ouvir a minha história”.


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