Geral
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14 de outubro de 2022
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19:03

Violência no Grindr: ‘Eles poderiam ter pegado o dinheiro e saído, mas fizeram questão de agredir’

Por
Duda Romagna
[email protected]
Arte: Matheus Leal/Sul2
Arte: Matheus Leal/Sul2

Na quinta-feira (6), Felipe* conversava com um perfil no aplicativo de relacionamentos Grindr, voltado para a comunidade LGBTQIA+, especialmente homens gays. A foto do perfil era de um homem em frente ao Shopping Praia de Belas, em Porto Alegre, mas o usuário era, supostamente, de dois colegas de faculdade. Eles diziam estar fazendo um trabalho e que queriam ver Felipe quando terminassem. Então, os três marcaram de se encontrar na casa de Felipe aproximadamente 40 minutos depois, mas demoraram.

“Eles se enrolaram, eu já nem estava esperando que eles viessem aqui, quando vieram foi uma certa surpresa”, relatou Felipe. Às 19h31min, quando o interfone de seu apartamento tocou, ele enviou uma mensagem de áudio para um amigo, avisando que estava conversando com um perfil no aplicativo. “Disse que a gente tinha marcado um encontro, que eu não esperava que fosse acontecer, que achei que fosse um perfil falso, mas que eles tinham tocado o meu interfone e que se eu não retornasse em uma hora era porque alguma coisa teria acontecido. Claro que eu não falei com um ar 100% sério, mas o meu inconsciente dava sinais de que algo errado poderia estar acontecendo.” Quando Felipe abriu a porta, viu os dois homens que usavam máscaras e um deles usava um boné, o que dificultava a identificação.

A dupla amordaçou e amarrou a vítima, que também sofreu golpes no rosto, e foi obrigada a transferir cerca de R$ 10 mil para uma conta bancária. Dinheiro em espécie também foi levado. “O único comportamento mais específico de um deles durante as agressões é que ele falava ‘tu mexeu com os guris’, falava bastante dos ‘guris’, então, se alguma outra vítima ouviu essa expressão, pode ser algo relacionado a um dos agressores, o mais agressivo”, relembra Felipe.

Quando os dois homens deixaram sua casa, a vítima chamou a Brigada Militar, que não foi ao local após uma hora da ligação. Um amigo de Felipe o levou para o Hospital de Pronto Socorro. “Eu achei que eu estava com fratura no rosto, com pontos a serem feitos ou com uma costela quebrada, felizmente nada disso aconteceu.” Na sexta-feira (7), Felipe ligou para Leonel Radde, vereador de Porto Alegre (PT), deputado estadual eleito e policial civil, que o orientou a fazer um boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia de Combate à Intolerância, e o acompanhou.

Radde denunciou a violência e alertou a população em suas redes sociais, disponibilizando seu contato para outras vítimas. Na terça-feira (11), outra vítima procurou a polícia para relatar o ocorrido.

Em menos de dois anos, ao menos 13 casos como o de Felipe foram registrados pelo Brasil, segundo um levantamento feito pela própria reportagem em pesquisa por notícias veiculadas na internet. O modus operandi dos criminosos se assemelha. Os encontros eram marcados pelo aplicativo Grindr, quase sempre na casa da vítima, de onde roubavam pertences. As vítimas sofriam extorsão, agressões e, em alguns casos, foram mortas.

Em maio de 2021, José Soroka foi preso por matar de forma violenta pelo menos três homens homossexuais que atraiu pelo aplicativo, em Curitiba, e roubar suas casas. Um ano depois, um homem e um adolescente de 17 anos foram detidos e confessaram o assassinato de dois homens em Mossoró, no Rio Grande do Norte. As cinco mortes aconteceram da mesma maneira: estrangulamento. Em setembro, um homem matou um dentista e arrancou seu dedo indicador para fazer saques bancários em Fraiburgo, Santa Catarina. Eles também haviam se conhecido no Grindr.

Em maio de 2022, no Espirito Santo, vítimas denunciaram que uma dupla de golpistas usava o Grindr para atrair, extorquir e violentar homens em suas casas. No mesmo mês, a polícia do Distrito Federal prendeu dois homens suspeitos de roubar e dopar pelo menos cinco vítimas.

Crimes semelhantes também foram registrados em outras partes do mundo. Em abril, a cidade de Medellín, na Colômbia, já havia registrado seis casos de assassinatos em uma onda de violência ligada ao aplicativo. Em 2019, em Birmingham, na Inglaterra, três jovens usaram perfis falsos para realizar roubos e agressões homofóbicas.

Nos Estados Unidos, os casos são ainda mais expressivos. Em janeiro de 2021, um adolescente foi torturado e deixado parcialmente paralisado por um jovem que conheceu no Grindr. O agressor tentou estrangulá-lo e amputar suas mãos, depois chamou a polícia e admitiu o crime. Em maio de 2021, a polícia de Atlanta emitiu um alerta informando que, em quatro meses, pelo menos oito homens gays foram roubados em encontros.

Célio Golin, militante do Grupo Nuances. Foto: Joana Berwanger/Su21

“Isso não é uma coisa nova. Muitas situações que acontecem sempre aconteceram, inclusive com assassinatos de pessoas que levaram algum garoto conhecido da noite para casa. Essas situações ficam na invisibilidade porque não se pode assumir publicamente. Era muito comum nas décadas de 1970, 1980, 1990 e 2000 que acontecesse esse tipo de chantagem pela cultura do machismo, da homofobia, dessa situação de empoderamento que LGBTs não tinham até então”, explica Célio Golin, militante e fundador do grupo Nuances.

Segundo ele, o que chama atenção no caso é a agressão e não o roubo. “Eles poderiam ter pegado o dinheiro e saído, mas eles fizeram questão de agredir. Eu não sei qual é a lógica, talvez eles pensem que agredindo a vítima não denunciasse, e a gente não tem a dimensão de quantos casos existem porque as pessoas não vão revelar isso. É muito íntimo, as pessoas têm vergonha, tá num universo muito escondido.”

A vulnerabilidade das vítimas faz com que elas não denunciem por medo da desqualificação moral. “Todos os gays sabem que dá para denunciar e todos eles sabem que podem ser vítimas. Não tem nenhum que não saiba disso, mas por que as pessoas não denunciam? Porque tem muitas coisas em jogo, tem emprego, tem família, é uma situação de humilhação e vergonha, ainda bem que essa última vítima denunciou.”

O Grindr foi lançado como um aplicativo em 2009, pelo empresário de tecnologia Joel Simkhai em Los Angeles, Califórnia. De 2016 a 2020, a empresa foi propriedade de uma companhia chinesa, a Beijing Kunlun Tech, e foi posteriormente vendida para a San Vicente Acquisition LLC, com sede nos EUA. Em maio desse ano, o aplicativo recebeu por volta de US$ 384 milhões como parte do acordo com a Tiga Acquisition Corp (TAC), uma Companhia com Propósito Especial de Aquisição (Spac), uma espécie de empresa de fachada que arrecada dinheiro primeiro e busca empresas para comprar mais tarde.

Em abril de 2018, uma organização norueguesa de pesquisa sem fins lucrativos informou que pacotes de dados do Grindr foram vendidos a empresas terceirizadas e que poderiam conter informações pessoais confidenciais dos usuários, como status de HIV e datas de teste de HIV, opção disponível para inserção no aplicativo. Em 14 de janeiro de 2020, um relatório foi publicado pelo Conselho Norueguês de Consumidores que alegou que o Grindr havia violado as regras do Regulamento Geral de Privacidade de Dados (GDPR) da União Europeia. O conselho afirmou que o Grindr enviou dados de usuários para pelo menos 135 anunciantes. As principais preocupações das alegações eram o compartilhamento de informações pessoais, incluindo a localização dos usuários e informações sobre seus dispositivos.

“Confesso que minha expectativa com relação ao Grindr é zero. Para mim, é uma empresa irresponsável como todas as redes sociais que não exigem nenhuma identificação. Qualquer pessoa pega um e-mail falso, faz o que quiser, o que bem entender nesse aplicativo, assim como as demais redes sociais que a única coisa que querem são números, engajamento, quanto mais pessoas estiverem lá melhor. Acho que é uma empresa que vai lavar as mãos para todos esses casos e possivelmente não vai dar nenhum pronunciamento, eu nem entrei em contato com a plataforma porque conversei com meu advogado e a minha expectativa de reparação é realmente zero, eu não consigo vislumbrar qualquer tipo de atitude dessa empresa”, relatou Felipe.

Para Célio, não se pode aceitar essa realidade. “O Grindr não pode ignorar, ele tem que ter minimamente responsabilidade de saber quem acessa, eles têm que pensar no caso e têm também que ser chamados a contribuir com o que eles puderem. Até porque eles estão ganhando dinheiro com isso.”

Procurada, a equipe do aplicativo não respondeu aos contatos da reportagem.

*O nome foi alterado para não identificar a vítima


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