Geral
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28 de outubro de 2022
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14:01

Defensores da cannabis medicinal celebram recuo do CFM em ‘resolução absurda’

Por
Luís Gomes
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Foto: Creative Commons
Foto: Creative Commons

O Conselho Federal de Medicina (CFM) anunciou no dia 14 de outubro uma resolução que restringe a atuação de médicos na prescrição de medicamentos derivados da cannabis. Após protestos de entidades que atuam pela regulamentação do canabidiol, substância derivada usada para fins medicinais, e críticas de médicos, o CFM acabou recuando e anunciou, no dia 24, a suspensão temporária da resolução. O imbróglio, contudo, serviu para mobilizar a comunidade que se criou em torno de pacientes que fazem uso do canabidiol e ligar o alerta para possíveis retrocessos.

A Resolução CFM 2.324/2022, que atualiza outra de 2014, diz que o medicamento pode ser prescrito apenas para o tratamento de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa. Para os demais tipos de epilepsia, a substância não poderia mais ser prescrita.

Cidinha Carvalho, presidente da Associação Cultive, uma das pioneiras no Brasil na luta em defesa da regulamentação de derivados de cannabis para uso medicinal, destaca que a primeira reação foi de mobilizar pela derrubada da resolução, uma vez que ela colocaria em risco o tratamento de mais de 100 mil pacientes que, atualmente, têm autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para importar o remédio ou comprar as formulações já disponíveis nas farmácias “Se você for pensar bem, na verdade teria um impacto também na indústria, porque já tem óleo, não só isolado, na farmácia”, diz.

Ela avalia que a mobilização de entidades foi fundamental para o CFM voltar atrás, e pondera que a luta em torno do uso do canabidiol e de derivados da cannabis para fins medicinais sempre ocorreu de baixo para cima, com a participação fundamental de mães de pacientes.

“Começou com os cultivadores ensinando as mães a cultivarem, as mães ensinando os médicos a prescreverem, as mães ensinando os médicos a dosarem. Muitas mães, assim como eu, acabaram fundando associações e amparando vários pacientes. Hoje, o único respaldo que nós temos é pelas associações, é pela sociedade civil. Então, a mobilização continuou vindo de baixo para cima e não tinha como nós ficarmos de braços cruzados, vendo esse absurdo, por mais que fôssemos continuar desobedecendo pacificamente”, diz.

Cidinha diz que a primeira preocupação da Cultive após a resolução ser publicada foi de contatar os médicos parceiros da associação para verificar se eles continuariam prescrevendo o canabidiol. “Eles se posicionaram que iriam continuar prescrevendo, que nada mudaria para eles, até mesmo porque já fazem isso desde 2014”, diz.

Ela destaca, contudo, que havia expectativa de que retrocessos pudessem ocorrer, uma vez que o CFM sempre teria adotado uma posição restritiva com relação à cannabis, ignorando os estudos realizados ao longo dos últimos anos a respeito dos benefícios do uso medicinal.

“Para nós, não foi surpresa ter retrocedido mais ainda do que já estava. Se não tivesse essa mobilização, se as pessoas acabassem obedecendo, eles não iriam voltar atrás. Porque mesmo com tantas pesquisas científicas provando tudo isso, eles estão ao contrário, na contramão do mundo”, afirma.

Rubens Wajnztejn, neurologista infantil, presidente da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide e uma das principais autoridades sobre o tratamento de Autismo Infantil com Cannabis Medicinal no Brasil, destaca que a restrição da cannabis medicinal apenas a pacientes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa remonta a normas de 2014, quando a Anvisa liberou o tratamento com derivados. Contudo, ele destaca que, desde então, muitas pesquisas comprovaram benefícios destes medicamentos para outras doenças, o que estaria sendo ignorado pela resolução 2.324/2022.

Rubens Wajnztejn, presidente da Associação Pan-Americana de Medicina Canabinoide | Foto: Divulgação

“Vários estudos que foram conduzidos e outros que estão em curso discutem a eficácia da cannabis medicinal para acompanhamento de pacientes com autismo, dores crônicas e outros distúrbios, alguns com resultados promissores publicados e com segurança comprovada. Comparativamente a outras moléculas, os compostos canabinoides são seguros e bem tolerados”, diz o neurologista.

Cidinha destaca que a preocupação das entidades é que pacientes de outras patologias perdessem o acesso. Além disso, destaca que a resolução buscava limitar o uso terapêutico a crianças e adolescentes. “Como se essas crianças não fossem crescer e como se outras pessoas não tivessem direito a ter uma qualidade de vida, um alívio ou até mesmo chegar numa cura, o que, dependendo da patologia, a cannabis ajuda, em conjunto com outros remédios convencionais”.

Cidinha é mãe de uma paciente de Síndrome de Dravet, doença contemplada na lista suspensa do CFM, mas que já tem 19 anos, o que a faria perder o acesso pelas regras da resolução.

Por outro lado, ela avalia que o fato do CFM ter voltado atrás rapidamente pode ter o efeito benéfico de reforçar a necessidade de ampliação do debate sobre o assunto. O próprio CFM abriu uma consulta pública sobre o tema em seu site (www.portal.cfm.org.br). O público poderá enviar contribuições até o dia 23 de dezembro.

Rubens Wajnztejn também avalia que a discussão que resultou na resolução do CFM pode acabar sendo positiva. “A discussão que se instalou neste ano tende a ser benéfica para o uso da cannabis medicinal, pois trouxe a pauta da necessidade de uma regulamentação, que já deveria ter sido implementada há alguns anos, uma vez que a Anvisa autorizou o uso dos compostos em 2014. Precisamos avançar nesse sentido, com a separação de produtos com fins medicinais, com controle de qualidade e que possam ser fiscalizados dentro das normas vigentes em nosso país. Só assim podemos oferecer aos pacientes segurança e resultados com essa medicina”, diz.

Cidinha acredita que o futuro da pauta dependerá dos resultados da disputa presidencial. Ela avalia que uma reeleição de Bolsonaro resultará em retrocessos na área. “Ele já declarou que irá vetar qualquer projeto, qualquer regulamentação com relação à maconha”, afirma.

Ela, inclusive, pondera que a resolução ter sido emitida na reta final da disputa pela presidência indica que ela pode ter tido algum fim eleitoreiro. “Qual a intenção de mudar as regras em final de campanha eleitoral? Isso chamou a atenção de muita gente. Não sei se eles queriam alguma coisa com isso, chamar a atenção ou fazer uma cortina de fumaça, cutucar algum outro lado para poderem se posicionar e de repente perder votos”, questiona.

Por outro lado, diz estar otimista com a possibilidade de avanços em caso de vitória de Lula.

Cidinha conta que entrou na luta pela liberação do uso medicinal de derivados da cannabis, em 2013, “pela dor”, buscando algo que pudesse aliviar a situação da filha, Clárian, ou que ao menos reduzisse o risco de morte súbita. “A minha filha tem síndrome de Dravet, uma epilepsia severa, que tem risco de morte súbita. Antes da cannabis ressurgir como remédio, muitas crianças de Dravet não chegavam na adolescência. Então, eu e meu marido vivíamos correndo contra o tempo”, diz. “A minha filha convulsionava por mais de uma hora, uma hora e meia. Ela entreva em parada respiratória, o que não levava oxigenação ao cérebro e deixou várias sequelas”.

Ela diz que descobriu sobre o uso medicinal da cannabis em buscas na internet em julho daquele ano, quando leu um artigo sobre o caso da menina Charlotte Figi, que aos cinco anos chegou a ter 300 crises epilépticas em uma semana e, após passar a utilizar um óleo com canabidiol, começou a apresentar sinais de melhoras. “Aquilo me impressionou. Num domingo à noite, eu mostrei para o meu marido e disse para ele: vamos pegar em qualquer boca”.

 

Clárian começou a usar o óleo canabidiol aos 11 anos para enfrentamento da Síndrome Dravet e hoje, aos 19 anos, teve reduzidos os efeitos da doença | Foto: Divulgação

Cidinha conta que acabou não indo buscar a cannabis em uma boca, porque leu que a maconha convencional tinha índices de THC que seriam prejudiciais e poderiam trazer risco para a sua filha, o que depois seria desmentido. Passou então e ler mais sobre o assunto e a se comunicar com pesquisadores e médicos norte-americanos. A partir dessas conversas, começou a importar o óleo, de forma irregular, no início de 2014. “Quando eu dei o óleo para a minha filha pela primeira vez, logo de cara ela ficou 11 dias sem convulsionar. Aquilo para mim era impossível.”

A ativista explica que a Síndrome de Dravet tem outras características, como o fato de que portadores da doença não transpirarem, o que obriga a adoção de medidas de controle de temperatura, como deixá-los em piscinas durante dias de calor. No caso da filha de Cidinha, esse problema começou a se manifestar quando ela tinha apenas cinco meses. Essa e outras complicações acabaram sendo amenizadas a partir do uso do canabidiol, que atualmente ela produz em casa com a autorização de uma decisão judicial.

“Depois de quatro meses usando o óleo, com 11 anos de idade, ela começou realmente a transpirar. Foi emocionante para nós. A partir desse momento, tudo começou a se equilibrar. A minha filha não subia escada, não corria, não pulava corda, andava com joelho flexionado apoiando na gente. Hoje, ela sobe e desce escada, corre, pula corda, faz tudo. As crise convulsivas diminuíram em 80%. Antes, ela convulsionava por uma hora, uma hora e meia, hoje ela tem uma ou duas crises por mês e cada crise dura menos de um minuto. É algo muito incrível, que resgatou ela para a realidade. Vai fazer nove anos que minha filha usa o óleo de cannabis feito artesanalmente e faz nove anos que eu não preciso levá-la a nenhum pronto-socorro por causa de crise convulsiva”.


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