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19 de abril de 2022
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19:58

Símbolo do abandono, Anfiteatro Pôr do Sol tem o destino nas mãos da iniciativa privada

Por
Luciano Velleda
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Anfiteatro está abandonado e futuro depende de estudos para licitação do trecho 2 da Orla. Foto: Luiza Castro/Sul21
Anfiteatro está abandonado e futuro depende de estudos para licitação do trecho 2 da Orla. Foto: Luiza Castro/Sul21

De um lado, o complexo esportivo, com 29 quadras, vestiário, ciclovia e uma das maiores pistas de skate da América Latina. Do outro lado, um longo passeio com mais quadras esportivas, bares e ciclovia indo até o Gasômetro. No meio dessa renovada Orla do Guaíba está o Anfiteatro Pôr do Sol, abandonado, sujo, apodrecendo a céu aberto. 

A atual imagem desoladora do anfiteatro é radicalmente oposta àquela do espaço inaugurado em maio de 2000 e que abrigou momentos marcantes do Fórum Social Mundial, evento que levou Porto Alegre a ser manchete em jornais internacionais. Nos anos seguintes, o local recebeu diversos shows gratuitos e logo caiu no gosto dos moradores da cidade. Foi ponto de encontro durante a Copa do Mundo de 2014, além de local de atos e eventos diversos. Cenas que agora fazem parte do passado e são incógnitas quanto ao futuro.

Nos últimos dias, a notícia de que a gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB) haveria batido o martelo e decidido demolir o Anfiteatro Pôr do Sol movimentou o noticiário e trouxe à tona o debate sobre o abandono do local pelo poder público.

Em contato com a reportagem do Sul21, a secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, diz que o futuro do anfiteatro ainda não está decidido. Ela explica que dois consórcios se inscreveram para participar do Projeto de Manifestação de Interesse (PMI) e apresentarão propostas para o uso do Trecho 2 da Orla, com estudos de sustentabilidade econômica e financeira. O prazo original era abril, mas foi prorrogado por mais 90 dias.

“Na verdade, o que vai acontecer com aquela área não está definido ainda. Nós vamos receber as propostas em início de julho e vamos escolher uma ou outra, ou até a composição, podemos escolher parte de uma, parte de outra, e isso vai pra consulta pública, tem que ter audiência pública, é um processo lento e que vai ter participação de todo mundo. Não se sabe agora, é prematuro dizer”, afirma Ana Pellini. “Então vai demorar mais três meses, depois tem todo o processo de escolha, de licitação, busca dos recursos, isso é pro fim do governo. Então ninguém vai demolir o Anfiteatro Pôr do Sol agora. Se um dos projetos propuser que ele deve ser um destaque e apenas ser recuperado, isso vai ser feito.”

Sinais do abandono são evidentes e se agravam a cada dia. Foto: Luiza Castro/Sul21

No estudo encomendado aos dois consórcios, a Prefeitura determinou que a área deve manter o caráter de espaço para eventos. Nesse contexto, o Anfiteatro pode ser reformado e mantido, ou derrubado e construído outro no lugar. Ou ainda surgir um novo espaço de shows. A gestão Melo optou por não determinar a obrigatoriedade de nada específico para o local, deixando a cargo dos consórcios as propostas  

A secretária de Parcerias explica que a decisão foi deixar as empresas livres para apresentarem propostas, sem impor restrições para novas ideias. Ela acreditar ser ruim criar limitações e, caso contrário, seria preferível já fazer logo uma licitação.

“Dizer que o anfiteatro não vai mais existir, isso não é verdade. Dizer que a Prefeitura vai demolir, isso não é verdade. Nós vamos aguardar as hipóteses. Ele não pode ser usado agora, está interditado, ocasiona risco, a gente não conseguiria o alvará de bombeiros porque ele está com problemas, infelizmente. Eu também acho uma pena, porque ele é bonito, mas é assim a vida né? Se é pra manter, será mantido. Só vai ser derrubado pra uma coisa melhor, pra uma coisa que a cidade vai se beneficiar mais. Então essa é a verdade pura, nua e crua”, afirma, ressaltando que o espaço é perfeito para eventos culturais e sociais por não ter vizinhança e ser adequado para “fazer barulho”, além do fácil acesso da população.

Se o futuro do anfiteatro está indefinido, por outro lado a Prefeitura fez questão de colocar como obrigatoriedade nos estudos a construção de uma marina, além de ligação interna com os outros dois trechos da Orla. De acordo com a secretária, o projeto da uma marina no local tem mais de 50 anos, desde quando foi feito o aterro da Orla. Inclusive, há uma ponta de pedra daquela época à espera da Marina.

Ana Pellini conta que partiu do próprio prefeito a decisão de incluir a construção da marina como obrigatoriedade no projeto. Segundo a secretária, é preciso que a água do Guaíba “converse” com a terra. A Prefeitura vislumbra uma marina onde se possa ancorar embarcações, realizar consertos, limpeza e abastecimento. A justificativa é que tais serviços só existem em clubes ou marinas privadas e são caros. A secretária diz que ficou mais barato adquirir veleiros e embarcações, e a Capital precisa oferecer acesso à estrutura. “Foi uma decisão do prefeito que resolveu tocar pra frente, já tem até estudo de impacto ambiental feito em 2005. Então é um projeto muito antigo e não tem nada de polêmico nisso, porque já é uma coisa que a cidade vem precisando e tentando implantar.”

Último evento no local ocorreu em 2019, porém na ocasião outro palco foi montado em frente ao anfiteatro, que já não tinha condições adequadas. Foto: Luiza Castro/Sul21

No entanto, a ideia de que há consenso na cidade sobre a construção de uma marina no Trecho 2 da Orla pode estar equivocada. O urbanista e presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Rafael Passos, questiona se Porto Alegre precisa mesmo da marina, além de destacar que tal obra atende aos interesses de um público muito restrito, deixando de fora a maioria da população. “Será que precisamos mesmo de mais uma marina?”, pergunta.  

Além do questionamento objetivo, o urbanista crítica o modo como a Prefeitura planeja a concessão do espaço público da Orla. Para ele, o governo deveria primeiro ouvir quais são os desejos da sociedade para o local e depois levar tais ideias à iniciativa privada, e não fazer o caminho contrário, ou seja, deixar as empresas proporem de que forma a área será utilizada.

“Ao invés da Prefeitura discutir antes com a sociedade e trazer pro debate o que se quer com aquela área, e a partir daí encomendar o estudo com diretrizes definidas pela sociedade, a gente vê o contrário, se chama a iniciativa privada para ver o que é mais rentável”, analisa. Mesmo que haja consulta e audiência pública depois, o presidente do IAB-RS já define o processo como uma espécie de “participação tutelada pela iniciativa privada”, e o ideal, diz ele, seria o contrário.

Passos pondera que, do ponto de vista arquitetônico, o Anfiteatro Pôr do Sol não se destaca na cidade, porém, avalia que o local ganhou uma representação simbólica importante desde sua inauguração como espaço de eventos públicos. Ele também questiona a afirmação de que o estado de deterioração seja tão grande que inviabilize a reforma do anfiteatro, a menos que haja laudo atestando o comprometimento estrutural, algo que ainda não é público.

Em maio de 2020, um incêndio deteriorou ainda mais a estrutura do espaço. Foto: Luiza Castro/Sul21

A secretária de Parcerias do governo Melo reconhecer ter dificuldade em apontar em qual momento o Anfiteatro Pôr do Sol começou a ser deixado de lado pelo governo municipal, dando início ao processo de deterioração que hoje pode ser constatado. Ana Pellini diz que trabalhou no governo de José Ivo Sartori, sem se envolver com os temas da Prefeitura, e depois ficou anos morando em Brasília. Na sua lembrança, até a Copa do Mundo em 2014 o espaço ainda estava bonito. 

“Acho que de lá pra cá, não saberia precisar se no fim do governo Fortunati ele fez alguma coisa ou não, se o governo Marchezan fez ou não fez, também não saberia dizer. Sei que eles tinham já o projeto da concessão do trecho e quando tu pensa em conceder um trecho, de modo geral, numa coisa que a gente acha errado e o prefeito Melo também, o pessoal não faz manutenção. Quando na verdade deveria entregar pro privado já em boas condições, porque aí ele também tem a obrigação de deixar sempre em boas condições. Mas é uma tendência do Brasil quando se começa a lançar processo de concessão de coisa pública, os cuidados vão diminuindo”, comenta.

A hipótese de que o anfiteatro tenha sido abandonado intencionalmente é refutada por Thiago Barros Ribeiro, ex-secretário de Parceria no governo de Nelson Marchezan Júnior (PSDB), que lembra que os ex-prefeito de Porto Alegre assumiu uma Prefeitura com dificuldades de pagar os salários dos servidores.

Palco que já recebeu eventos marcantes está em situação de risco. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Não houve esse poder de arbitragem. É óbvio que, se tem um cobertor menor que a cama, é natural que se aplique em saúde, que lida com a preservação da vida, enquanto o anfiteatro é lazer. Não houve intenção estratégica (de abandonar o anfiteatro), isso não existe. Existe escolhas diante de um cenário de absoluta falta de recursos”, afirma. E acrescenta: “Isso é fora da realidade e demonstra desconhecimento financeiro”.

Ribeiro conta que o anfiteatro seria mantido no projeto de concessão do Trecho 2 da Orla do Guaíba feito pelo governo Marchezan, ainda que talvez não exatamente o mesmo. Na sua visão, a constatação de que o espaço havia “caído no gosto” da população da Capital seria um elemento importante para valorizar a área e trazer novas receitas para a empresa que assumiria a gestão do local.

O ex-secretário ainda observa com desconfiança como será a relação da futura marina com o espaço de eventos e shows pretendido pelo governo Melo. Inclusive levanta a hipótese de que a possível desistência do anfiteatro esteja ligada ao projeto náutico. “Não sei até que ponto se poderia conviver um grande show com a marina”, pondera. Para ele, obrigar a futura concessionária a construir uma marina pode inclusive se tornar um “abacaxi” para o governo municipal devido à elevada taxa de retorno que um empreendimento desse porte exige. “Faz sentido obrigar o ente privado a construir a marina no Trecho 2 da Orla? E se depois se mostrar um fracasso?”

Por outro lado, o atual secretário-executivo de Parcerias Estratégicas na Prefeitura de Recife cita a situação de abandono do Anfiteatro Pôr do Sol para defender a necessidade do poder público conceder à iniciativa privada a gestão de determinados espaços. Para ele, uma prefeitura como a de Porto Alegre não tem recursos para fazer a manutenção que um equipamento como o anfiteatro exige. “A Prefeitura não tem condições de manter um espaço daquele, seja o prefeito que for, seja o partido que for”, afirma.

Na prática, o VillaMix Festival foi o último evento no anfiteatro. Na ocasião, o estado de deterioração já era realidade e o palco de shows teve que ser montado em frente ao anfiteatro. Um ano depois, em março de 2020, um incêndio destruiu o palco e estruturas de metal. As causas nunca foram descobertas. Desde então, o Anfiteatro símbolo da Capital nos jornais estrangeiros durante o Fórum Social Mundial agoniza ao ar livre e segue com destino indefinido. As respostas devem vir em julho.


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