Geral
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14 de abril de 2022
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10:15

Entre balas e mortos, a violência que afeta a Cruzeiro tem origem antiga e conhecida

Por
Luciano Velleda
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Moradores da Cruzeiro historicamente sofrem com a violência que abala um dos bairros mais vulneráveis da Capital. Foto: Caroline Ferraz/Sul21
Moradores da Cruzeiro historicamente sofrem com a violência que abala um dos bairros mais vulneráveis da Capital. Foto: Caroline Ferraz/Sul21

Medo, revolta e impotência. Esse é o sentimento de alguns moradores da vila Cruzeiro do Sul, um dos bairros mais afetados pela onda de violência que estourou em Porto Alegre nas últimas semanas. Em cerca de 30 dias, o número de homicídios passa de 20, em ações ocorridas quase sempre à noite. Segundo a Polícia Civil, a origem do conflito é um desacerto entre duas facções por dívida de drogas, num processo em que a primeira morte levou ao revide, que por sua vez causou outra represália, e assim sucessivamente numa sequência de mortes.

No meio do conflito, quem sofre é a comunidade. Na Vila Cruzeiro, as últimas semanas foram de angústia, com alertas de toque de recolher, ameaças a comerciantes, escolas fechadas, programações culturais e ações de solidariedade canceladas. Uma moradora da região contou à reportagem do Sul21, sob condição de anonimato, como tem sido a rotina de medo entre os moradores. A sensação de que a aparente “normalidade” do dia pode ser rompida a qualquer momento causa um permanente estado de aflição. Nos dias de escolas fechadas, a situação é ainda pior para quem tem filhos.

Para essa moradora, o sentimento de revolta e impotência que a atinge, assim como a comunidade em geral, deve-se à constatação de estar no meio de uma guerra que não lhe diz respeito. Conflitos que por vezes se acalmam até recomeçar novamente, fazendo com que os moradores da Cruzeiro tenham que estar em estado de vigília quase permanente.

Um aspecto pouco abordado na recente onda de violência, faz questão de destacar a moradora da Cruzeiro, é o impacto dos recentes fechamentos de escolas de Ensino Médio ocorridos na região. Sem acesso à educação, o destino dos jovens do bairro acaba sendo “as esquinas”. Sem oportunidade de estudo, esses jovens logo são “abraçados” pelas facções que controlam o tráfico na região. E aqueles que ainda não foram cooptados, ficam à mercê das balas perdidas da guerra – balas que geralmente “encontram” uma vítima inocente.

“Filha da Cruzeiro”, a vereador Bruna Rodrigues (PCdoB) não admite analisar a atual onda de violência como resultado puro de uma briga entre facções. Para ela, essa perspectiva é a simplificação de um problema bem mais profundo.

“Pra gente analisar o que acontece na Cruzeiro hoje, é preciso voltar um pouco no tempo. Em 2016 ou 2017, o governo Sartori (ex-governador José Ivo Sartori) fechou uma escola bem em frente ao Postão da Cruzeiro, que é uma das maiores rotas de conflito na região”, recorda. A vereadora também destaca as obras na Avenida Tronco, que causaram a remoção de muitas famílias e acabaram com três campos de futebol e quatro praças. “Então nós temos fechamentos de escolas, nós temos retiradas de espaços de encontro e de lazer da nossa juventude, temos a redução de postos de saúde…Isso quer dizer que as políticas efetivas de acesso ao que é básico foram retiradas”, explica..

A imagem da Avenida Tronco ainda inacabada depois de tantos anos de obras, com escombros e uma sinalização que não se conclui, é o retrato de um “cenário de guerra” para a vereadora. Retrato da profunda degradação da região.

“Não me assusta o que nós vivemos hoje, porque há muito tempo nós denunciamos esse processo. Quando começou o fechamento de escolas da região, nós apontamos que isso podia ter um impacto muito negativo. Já foram três escolas fechadas naquela região”, reclama a vereadora, citando as escolas de ensino médio Emílio Méier e Costa e Silva, além da escola de ensino fundamental Alberto Bins.

Bruna avalia que a pandemia aprofundou a vulnerabilidade da Cruzeiro. A juventude perdeu o vínculo escolar e o governo de Eduardo Leite (PSDB) não adotou medidas efetivas de manutenção do vínculo, situação agravada pela crise econômica.

“A gente precisa frisar que a maior crise que a pandemia trouxe foi nas nossas comunidades. Quando andava na Cruzeiro e distribuíamos sabonete, a criançada sabia higienizar as mãos, sabia usar o álcool, mas quando entregávamos o sabonete, ela dizia que não tinha água. Então o processo de degradação é muito profundo e isso é óbvio que tem um resultado. Segurança precisa ter, no seu mais amplo sentido, uma série de eixos que a estruturam. Hoje a gente fala de segurança com policial armado. A gente esquece de dizer que aquele policial armado, que entra, que bate, ele vai ser visto pela comunidade de uma forma… Enquanto nós não tivermos uma polícia comunitária que estabeleça uma relação, mas que tenha como suporte, principalmente, a saúde, a educação, o esporte e o lazer, vamos estar falando de processos que cada vez mais degradam a nossa juventude”, pondera.

A vereadora diz saber onde foram parar os jovens que não estão na escola: foram reforçar as trincheiras do tráfico. “Eu sei que aqueles R$ 50 que aquele guri ganhava na esquina, faz diferença pra ter ou não ter o arroz e o feijão dentro de casa. Precisamos discutir o que vive a Cruzeiro hoje e o grande problema de segurança da cidade, também sobre um viés da educação. Senão vamos criminalizar os marginalizados. Quem morre hoje nessa guerra? Jovem, negro, que tem uma condição econômica quase de extrema miséria. Me nego a falar do que acontece hoje na Cruzeiro sem contextualizar esse processo de degradação. Eu sou oriunda daquela região. A minha filha perdeu o irmão ali.”

A vereadora afirma ser preciso discutir a escola de turno integral e os meios de “disputar” a juventude oferecendo oportunidades. Somente depois disso, ela destaca, então será possível discutir o que é responsabilidade do eixo policial, do eixo educacional, do esporte, do lazer e da cultura.

“Enquanto a nossa gurizada estiver marginalizada e a única coisa que conseguir enxergar é a esquina, nós vamos ter essa guerra que vai inflamar cada dia mais”, afirma Bruna.

Diretora do Departamento Estadual de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), a delegada Vanessa Pitrez comemora o fato de que o último homicídio relacionado à recente onda de violência tenha sido no dia 4 de abril, há quase 10 dias. A razão, ela enfatiza, está relacionada às ações realizadas pelo conjunto das forças de segurança pública do Estado.

Como exemplo, cita a prisão de 32 pessoas com algum tipo de envolvimento com os atos de violência e 52 indivíduos identificados também com algum vínculo com o conflito.  “A situação agora é relativamente tranquila, mas é natural que a comunidade esteja temerosa”, concorda a diretora do DHPP. Sobre os recados de toque de recolher que circularam pela Cruzeiro, a delegada diz não haver informação concreta sobre o fato.

Para a delegada, as disputas entre facções, tal como a atual que eclodiu na Capital, ocorrem periodicamente em situações pontuais. “Não é uma rotina”, afirma, dizendo não acreditar que acontecerá novamente algo parecido com a crise de segurança pública vivida em Porto Alegre nos anos de 2016 e 2017.

Viviane destaca que Porto Alegre, e o Rio Grande do Sul, estão numa curva descendente em número de homicídios desde 2019, com exceção agora do mês de março, cujo índice aumentou. O cenário ainda não é o ideal, mas está num patamar razoável, avalia a diretora do DHPP.

“As investigações estão avançadas e acreditamos que, ao final do trabalho, todos os envolvidos serão identificados e responsabilizados”, projeta, com otimismo, a delegada.

Também moradora da Vila Cruzeiro e sob a condição de não revelar a identidade, uma pessoa que vive mais perto da avenida principal explica que a violência é sentida por todos, mas de modo mais explícito por quem habita as ruas do interior do enorme bairro da Capital.

A violência, ela diz, é cruel. Altera os horários dos moradores, há alertas para não sair à rua, dicas específicas para transitar no bairro à noite de carro, inclusive para quem entra de táxi ou por aplicativo de transporte. A situação é tal que, em determinado ponto da avenida, é colocado um manequim, cujas roupas são trocadas várias vezes por dia, com o propósito de que o manequim seja alvejado ao ser confundido com uma pessoa. A intenção com isso é saber de onde vem o tiro e, assim, o grupo contrário poder reagir.

Vivendo em meio a uma guerra que não lhes diz respeito, pressionados entre interesses de facções criminosas, a suspeita é mais um elemento presente na rotina dos moradores da Cruzeiro, para quem é sempre difícil saber exatamente em quem confiar. Sob a luz do sol, os dias até podem ter a aparência de normalidade, sentimento que muda quando a noite cai e a escuridão traz junto o medo do que acontecerá na madrugada.


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