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17 de agosto de 2021
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15:18

Mãe de um dos mortos por PM em pizzaria repudia tese da defesa e exige justiça: ‘Os corpos falam’

Por
Luciano Velleda
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Marlice com o filho Alisson, assassinado à queima roupa, a filha Mylene e a mãe. Foto: Arquivo pessoal
Marlice com o filho Alisson, assassinado à queima roupa, a filha Mylene e a mãe. Foto: Arquivo pessoal

Tristeza profunda, revolta e sede por justiça. Marlice Corrêa transborda sentimentos ao falar do filho Alisson Corrêa da Silva, de 28 anos, assassinado junto com três parentes na madrugada de 13 de junho pelo policial militar Andersen Zanuni Moreira dos Santos. O crime, cometido dentro de uma pizzaria no bairro Passo das Pedras, em Porto Alegre, foi o desfecho trágico de uma ação iniciada horas antes, quando o policial invadiu a casa da família durante comemoração de aniversário.

As quatro vítimas foram mortas com tiros na cabeça. O autor alegou legítima defesa, tese aceita pela Polícia Civil, que decidiu não indiciá-lo, mas rechaçada pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS). Na última sexta-feira (13), Moreira dos Santos foi denunciado por quatro homicídios duplamente qualificados, violação de domicílio e por praticar vias de fato.

Alisson perdeu o pai – coincidentemente também policial militar – aos 7 anos de idade. Foi criado pela mãe e pela avó. Aos 14 anos, começou a trabalhar na Fundação Pão dos Pobres, se formou como marceneiro e depois entrou na faculdade de ciências contábeis. Estava estagiando na Junta Comercial e iria se formar em dezembro deste ano, quando também se casaria.

“Ia ser o primeiro da nossa família a concluir a faculdade, eu tava organizando a festa…era um rapaz adorável, prestativo, carinhoso, um rapaz do bem, não era brigão, nunca incomodou”, comenta a mãe. “A única coisa que peço, imploro, é justiça pro meu filho e pros meus primos, porque a nossa família foi destruída, foi dilacerada. Como mãe, não tive coragem de ver reportagem, ver vídeo, não olhei nada! Meu filho era um rapaz bom, não merecia o que aconteceu com ele!”

No dia 13 de junho, Ana Paula, prima de Marlice, estava de aniversário. A família se reuniu para comemorar a data já na noite do dia 12. Depois da meia-noite, os familiares cantaram parabéns e começaram a celebração. Marlice enviou à reportagem do Sul21 um vídeo gravado horas antes da tragédia se abater sobre a família. As imagens mostram parentes reunidos, com duas senhoras idosas e Alisson sentados e outras pessoas em pé, numa cena tradicional. Mais tarde, durante o dia 13, um domingo, ainda haveria churrasco, que seria feito por Alisson, o assador da família.

A família mora no Morro Santana há 50 anos. Marlice se criou ali e diz conhecer toda a vizinhança. Ela conta que o policial militar alegou entrar na casa da família porque a música alta estaria atrapalhando sua esposa e o filho, e achou que ali residisse a amiga de uma ex-namorada.

“Ali todo mundo se conhece. Ele mentiu que tava atrás da amiga da namorada, da noiva, o que for… ele mentiu porque ali só mora idoso”, afirma Marlice, para quem ele devia sim estar à procura de alguém, mas não de quem dizia procurar.

“É uma versão mentirosa, ele já deu várias versões da mesma história. E nossa família só tem uma história, que foi a verdade do que aconteceu. Esse monstro, assassino, do nada, quatro horas da manhã, tava todo mundo dentro de casa, ninguém na rua… ele atravessou três portões, invadiu a nossa casa. Aí a Yasmin tava na porta, no lado do som, e ele bateu nas costas dela, deu três tapões e falou: ‘Abaixa o som que minha mulher e meu filho querem dormir’. Pelo o que vi, nem casado ele é e nem filho tem. Ele já entrou mentindo e em nenhum momento se identificou. Ele não bateu palmas, não chamou, não pediu com licença, ele simplesmente invadiu uma casa que, naquele momento, tinha oito pessoas ali dentro”, afirma Marlice.

Os moradores da casa pediram para o estranho se identificar e explicar o que fazia ali. Na denúncia, o MP aponta que o policial teria dito então que residia na mesma rua. Depois do estranhamento, o policial saiu e os familiares foram checar se ele morava mesmo na vizinhança e quem era. O número da casa mencionado pelo brigadiano, todavia, não foi encontrado.

Da esquerda para a direita, os quatro familiares mortos: Alexsander; Cristiano; Christian; e Alisson. Foto: Arquivo pessoal

A mãe de Alisson diz que os familiares começaram a se organizar para voltar cada um para sua casa. Christian Lucena Terra, 33 anos, dirigia o carro, acompanhado pela filha Yasmin, e deu carona ao irmão, Cristiano Lucena Terra, 38 anos, com a esposa Eliane, o sobrinho Alexsander Terra Moraes, 26 anos, e o filho de Marlice. Ao passarem pela Avenida Manoel Elias no trajeto de retorno, avistaram o policial diante da pizzaria. Os parentes então decidiram parar para questioná-lo sobre a invasão. Segundo os familiares, nesse momento ele correu para o banheiro.

Mylene Corrêa, irmã de Alisson, conta o que ocorreu a partir de então: “No vídeo mostra que eles estavam tentando falar com ele, na porta do banheiro. O Christian abriu os braços e não deixou ninguém passar, isso mostra no vídeo, ele só queria conversar e entender o que aconteceu. Daí o Dudu (Alexsander) passou por baixo dos braços do Christian e ele já atirou. Ele atirou no peito do Dudu, que bambeou, não caiu de primeira. O Christian então disse que só queria acudir o sobrinho, que não queria brigar, só queria acudir o sobrinho. E o que ele fez? Atirou na cabeça do Christian. E nas mãos, porque ele estava com as mãos pra cima, na frente do rosto. Logo em seguida, ele atirou na cabeça do Cristiano e depois no meu irmão, o Alisson, na cabeça também. Ele só atirou pra matar”.

O laudo do Instituto-Geral de Perícias (IGP) constatou que os tiros na cabeça foram dados a curta distância ou à queima roupa. No corpo de Christian, o ferimento na palma da mão sugere que ele “tenha esboçado algum movimento de tentativa de defesa”.

“A análise dos laudos periciais juntados ao processo, reforça as narrativas das vítimas que sobreviveram à chacina na pizzaria. A família recebeu com profunda tristeza a confirmação de que uma das vítimas morreu com um disparo na nuca e outra com disparo na mão, em uma verdadeira execução. Salientamos ainda que a conclusão dos peritos do IGP sugere que eles morreram em cristalino movimento de defesa”, destaca Ismael Schmitt, advogado da família.

A tese da legítima defesa é veementemente repudiada pelos parentes das vítimas. “Não houve legítima defesa, ninguém tava armado, não houve perigo iminente. E como ele é policial, tem treinamento, podia ter evitado, podia ter atirado no braço ou na perna, qualquer coisa. Ele atirou no Dudu (Alexsander), que tecnicamente foi pra cima dele, e todos os outros pararam. Quando os quatro já estavam mortos, a Eliane, que aparece no vídeo, com o cabelo preso e blusa branca, quando cessou os tiros, ela foi ver o que tinha acontecido, e ele aparece com a arma em punho e diz que se elas não saíssem, ia matar as duas”, relata Mylene Corrêa, irmã de Alisson.

Após ser ameaçada pelo policial militar, Eliane correu à rua para pedir ajuda. Em seguida uma viatura da Brigada Militar passou em frente à pizzaria e parou para ver o que acontecia. O autor do crime ainda estava no local e a família das vítimas questiona que ele não tenha sido preso em flagrante. “A legítima defesa ele teria que comprovar depois que estivesse preso, ali na hora eram quatro homicídios à queima roupa”, pondera Mylene.

Como a casa da família era próxima, Iasmin, filha de Christiano, correu para chamar os parentes. Ao regressarem, outras viaturas da polícia já estavam no local. “Todos defendendo e cercando ele. Os policias jogaram spray de pimenta na nossa família, uma mulher de 74 e outra de 72 anos, minha avó e minha tia, mãe do Christiano e do Cristian”, critica Mylene.

A irmã de Alisson ainda questiona o boletim de ocorrência que cita que o policial se apresentou por livre e espontânea vontade quando, na verdade, ela destaca, ele foi pego em flagrante. Em sua defesa, o policial disse que estava numa festa em Alvorada com amigos e não teria tomado bebida alcoólica porque era o “motorista da rodada”. O advogado da família obteve a comanda da boate Play Club com gastos em torno de R$ 300.

Já a mãe de Alisson reclama que o exame toxicológico tenha sido feito nas vítimas, mas não em quem atirou. “Ele tinha que ter saído dali e feito exame. Nenhuma pessoa, em sã consciência, invade uma casa as quatro da manhã”, afirma Marlice. “Os corpos falam! Os corpos falam que ele mentiu do começo ao fim. Ele deu à queima roupa na cabeça de todos eles, não foi legítima defesa. Ele podia ter atirado na perna, mas ele matou porque quis”, esbraveja. “Ele deixou nove crianças órfãs!”

Na denúncia, os promotores de Justiça André Gonçalves Martínez e Luiz Eduardo de Oliveira Azevedo, além de enquadrarem o policial militar Andersen Zanuni Moreira pelos quatro homicídios duplamente qualificados, violação de domicílio e por praticar vias de fato, pedem a prisão preventiva do soldado ou, ao menos, a suspensão do exercício da função pública que exerce como policial militar.

“Registra-se que o denunciado, que é policial militar, não estava de serviço na ocasião, alegando que passara a noite do dia 12 de junho (Dia dos Namorados) em uma festa em companhia de dois amigos. E, que ao fim, saíram juntos em seu veículo, dirigindo-se ao bairro onde ocorreram os crimes para falar com sua ex-namorada. Assim, mostra-se absolutamente inaceitável o comportamento do denunciado que, munido de sua arma de serviço pertencente à Brigada Militar, alegou ter circulado na madrugada por aquela área residencial, irrompendo na casa onde as vítimas estavam, por tão somente supor que ali residiria uma amiga de sua ex-namorada. E, pior ainda, a par de invadir aquele domicílio, ainda agrediu a menina que lá estava, dirigindo-se de forma agressiva aos habitantes da residência sob a falsa alegação de que era um vizinho e o som estaria incomodando sua mulher e filho. Sem, portanto, ter revelado sua real identidade e objetivo, deixou no local as vítimas e seus familiares inquietos e melindrados devido ao seu comportamento invasivo, desrespeitoso e agressivo, fazendo-os verificar se era realmente vizinho como alegara, e, tendo-o feito, ficarem ainda mais perplexos ao constatarem que tal informação era inverídica”, diz o relato dos promotores.

Os promotores destacam que o policial, sem ter desferido sequer um tiro de aviso, de forma desnecessária e imoderada, passou a alvejar de forma letal com sucessivos disparos a primeira vítima que se aproximou dele, causando a morte por traumatismo cranioencefálico por ferimentos de projetil de arma de fogo. Em seguida, alvejou com um tiro fatal na cabeça a segunda vítima, que iria socorrer o primo, e em seguida as outras duas vítimas, cada uma com um tiro certeiro na cabeça, com os corpos empilhados em frente à entrada do banheiro na medida em que eram abatidos.

“O agir do denunciado é incompatível com o exercício da função derivada do cargo de policial militar que possui, pela demonstrada falta de zelo à vida e o emprego letal indevido de treinamento e arma recebidos da corporação da Brigada Militar”, dizem os promotores.

Para o Ministério Público, o comportamento prévio do acusado constitui-se em verdadeira e absolutamente substancial provocação às vítimas e familiares, pois nada justifica não ter se retirado das imediações da residência o mais rápido possível, encontrado seus amigos no local onde havia deixado o seu carro ou utilizado outro meio para ir embora.

Em nota, David Leal, advogado do policial Andersen Zanuni Moreira dos Santos, afirma que: “A defesa entende que ficou bastante claro pelas imagens que todo os atos por parte do Andersen foram voltados para evitar os disparos. Não houve em momento algum qualquer interesse dele no combate. Ele poderia ter disparado antes e não o fez, fugiu do conflito, preferiu a conduta mais pacífica e correu até a pizzaria para se esconder. E evitar novamente o conflito. Os envolvidos insistiram na conduta hostil que apresentaram desde o início e buscaram vingança por um acontecimento banal, que foi o fato dele ter entrado no pátio da casa deles. Insistiram nisso e inevitavelmente o Andersen teve que disparar. As imagens demonstram de forma clara o que aconteceu e veio a perícia apenas a confirmar de forma técnica que se trata de legítima defesa.”


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