Geral
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28 de novembro de 2020
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11:47

‘A Receita Federal apagava meu direito de maternar’: famílias LGBTQIA+ lutam para constar nos documentos dos filhos

Por
Andressa Marques
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Marcela e Melanie com os filhos gêmeos. Foto: Arquivo Pessoal
Marcela e Melanie com os filhos gêmeos. Foto: Arquivo Pessoal

Na última semana, circula nas redes sociais uma campanha que solicita o reconhecimento de famílias LGBTQIA+ no Sistema de Dados da Receita Federal. A ação teve início após a escritora Marcela Tiboni, ao fazer uma consulta no comprovante de inscrição de CPF de seus filhos, perceber que não constava como mãe dos gêmeos Bernardo e Iolanda no cadastro do governo.

Para realizar pesquisas relacionadas ao CPF, é preciso preencher dados pessoais e obrigatoriamente o nome da mãe. No caso de famílias com duas mães, o sistema escolhe de forma aleatória quem irá figurar no campo da opção mãe. “Na mesma hora, eu fechei o celular e comecei a chorar. Um choro bem silencioso e muito solitário de perceber que o sistema da Receita Federal simplesmente apagava o meu direito de maternar”, afirma Marcela, 38 anos, casada com Melanie.

Ela explica que se deparou com a situação após um casal de mulheres fazer uma denuncia ao tentar o Auxílio Emergencial do governo e não obter por divergência de dados entre as mães. “Eu imediatamente entrei no mesmo sistema e ali você tem que preencher o número do CPF, nome da criança, data de nascimento e o campo mãe. Preenchi e aparece uma página dizendo que o meu nome não coincide com o nome da mãe do Bernardo e da Iolanda e quando eu digito o nome da minha mulher, aparece o CPF das crianças”, diz Marcela.

A inconsistência desses dados pode gerar a negativa de direitos como a retirada de passaportes, programas de benefícios do governo (como o Bolsa Família e o auxílio emergencial) e programas universitários, por exemplo. Bruna Andrade, advogada especialista em direito LGBTQIA+ e fundadora da startup Bicha da Justiça, explica os problemas que essa divergência de dados podem ocasionar na vida dessas famílias: “Do ponto de vista prático, existe uma implicação muito grande porque o banco de dados da Receita Federal é a base de dados para inúmeros outros órgãos e entidades públicas. Nós temos relatos de família que foram impedidos de vacinar seus filhos no SUS por conta dessa inconsistência de dados”, afirma.

Quando se trata de paternidade dupla, a problemática é ainda agravada pelo fato de o sistema dispor apenas das opções “mãe” e “não filiação”. “Se você é um homem solteiro ou solo que adotou uma criança, você também não conseguiria ter esse acesso. Então a gente está falando muito mais do que família de LGBTQIA+ e sim de outras composições de família que a Receita Federal não se adequou”, diz Marcela. “Isso é só o começo, pensando que o mundo fica a cada dia mais digital. Eu não sei te dizer a grandeza que pode se tornar o meu nome não constar como mãe dos meus filhos. Que tipo de dificuldade a minha família vai ter por essa simples informação que é negada pelo sistema da receita”, completa.

A Campanha Famílias LGBTQIA+ existem e têm direito foi criada no último domingo (22) e é organizada pela Bicha da Justiça em parceria com a RENOSP-LGBTI+, Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH), Nohs Somos, Diversidade OAB SP e Cores da Adoção e o objetivo é arrecadar 50 mil assinaturas. “O abaixo-assinado é importante para mostrar para os órgãos competentes que isso não é uma luta de uma ou duas, isso é uma luta muito grande dentro do Brasil inteiro. Cinquenta mil assinaturas significa que até um bilhão e meio de pessoas tiveram acesso à informação. Se a gente tiver 1% dos brasileiros sabendo o que está acontecendo, isso também fortalece a nossa batalha”, afirma Marcela.

A Advogada Bruna Andrade também alerta que as mães e pais podem ingressar com ações individuais na Justiça. “Isso tudo faz com que o judiciário seja incitado a se manifestar e, quanto mais demanda surgir, mais tem a probabilidade de a gente ter uma decisão mais debatida”, afirma. “E aí existem duas formas de se entrar com as ações individuais. A primeira é procurar um advogado que seja especializado na temática para que ele possa manejar as ações, se a pessoa tiver condições. Ou procurar a Defensoria Pública ou o Ministério Público da cidade, porque eles têm condição de dar encaminhamento”, completa Bruna.


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