Entrevistas
|
28 de setembro de 2022
|
09:31

Poliomielite: ‘As pessoas têm uma falsa sensação de segurança porque não veem mais a doença’

Por
Luciano Velleda
[email protected]
A poliomielite pode afetar o sistema nervoso e causar paralisia das pernas ou braços, sendo que não há tratamento para a doença e a vacina é a única estratégia. Foto: National Cancer Institute/Unsplash/Divulgação
A poliomielite pode afetar o sistema nervoso e causar paralisia das pernas ou braços, sendo que não há tratamento para a doença e a vacina é a única estratégia. Foto: National Cancer Institute/Unsplash/Divulgação

A Campanha Nacional de Vacinação contra a Poliomielite termina na próxima sexta-feira (30) e o Rio Grande do Sul, tudo indica, não deverá alcançar a meta de imunizar 95% das crianças de um a cinco anos de idade. Até esta terça-feira (27), o Estado vacinou 328.991 crianças, o que representa 59,40% do público-alvo, bem abaixo da meta de imunizar 553.814 crianças dessa faixa etária. No Brasil, até o momento, 6.143.368 crianças foram vacinadas, o que representa 53,09% da meta.

Considerando o calendário básico de vacinação infantil, nos últimos cinco anos, as metas estipuladas pelo Ministério da Saúde não foram atingidas. No RS, a vacina contra a poliomielite não alcançou a meta de 95% de cobertura. Entre 2017 e 2020, a cobertura vacinal tem variado entre 75% e 86%. Os dados de 2021 ainda são parciais, mas já indicam que a meta também não foi obtida.

Segundo análise da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), o Brasil é um dos países do continente americano com alto risco de reintrodução do vírus da poliomielite, ao lado de Argentina, Bolívia, Equador, Panamá e Paraguai. Quatro países apresentam situação de risco muito alto: Haiti, Peru, República Dominicana e Venezuela.

No RS o cenário é preocupante, com 42% dos municípios em risco muito alto e 32% em risco alto. Isso significa que em 367 cidades do Estado (74%) há um grande risco da pólio voltar. Para quem não sabe ou não lembra, a poliomielite, também conhecida como paralisia infantil, é uma doença contagiosa que pode atacar o sistema nervoso e provocar paralisia flácida aguda, principalmente em membros inferiores. A doença é causada pelo poliovírus e pode infectar crianças e adultos por via fecal-oral (por meio do contato direto com as fezes ou com secreções expelidas pela boca das pessoas infectadas).

Para tentar entender as razões da baixa adesão da população à campanha de vacinação e quais os reais riscos da doença reaparecer no RS e no Brasil, o Sul21 conversou com Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e membro do Comitê de Infectologia da Sociedade de Pediatria do Rio Grande do Sul (SP-RS).

Para o pediatra, uma série de acontecimentos têm afetado a imunização contra a pólio. Desde o simples fato das pessoas não terem mais lembrança da gravidade da doença, passando pelo crescimento do movimento antivacina no País, até as novas formas de comunicação na sociedade.

Confira os principais trechos da entrevista:

Sul21: O que está acontecendo com a vacinação contra a poliomielite, as pessoas esqueceram o que é a doença?

Juares Cunha: Há uma série de fatores envolvidos, mas com certeza esse é um deles. Tanto que a própria Organização Mundial de Saúde (OMS), lá em 2019, quando fala que a  hesitação vacinal era uma das dez ameaças à saúde pública mundial e, dentro da hesitação, um dos fatores é a falsa sensação de segurança que as pessoas têm de doenças que elas nunca viram e não conhecem porque foram vacinadas. É um dos “Cs” que a gente chamava, o da “complacência”. É a falsa sensação de segurança porque as pessoas não veem mais a doença e então acham que não precisam mais vacinar seus filhos.

A gente tem outros motivos colocados pela OMS. A “conveniência” é mais relacionada com a estrutura física, a parte de recursos humanos das unidades de saúde, o horário de atendimento, muitas vezes as mães que levam trabalham no horário comercial. O terceiro “C” é a “confiança”, que não é só na vacina, na sua eficácia e segurança. Nas décadas de 1980 e 90, as campanhas tinham todo um movimento dos governantes, artistas, cantores, era uma festa e isso levava confiança pra população. Tanto que o brasileiro acredita em vacinas porque a gente tem um histórico muito bonito.

De um tempo para cá, a gente tem tido a desinformação, as fake news, que têm abalado a confiança nas vacinas. Afeta não só as vacinas contra covid para criança, mas acaba abalando todas as outras vacinas. São recados que não são de estímulo para confiar nas vacinas. Isso agora na pandemia ficou mais evidente, muitas vezes com apoio dos próprios governantes.

Sul21: Os meios como a população se informa também mudaram muito. Isso é um problema na campanha atual?

Juares Cunha: A gente tinha peças publicitárias que eram muito estimulantes na época. Hoje as campanhas… quem fica sabendo são os profissionais da rede de saúde e, muitas vezes, pelo que é passado pela mídia. São aspectos que acabam atrapalhando. Nas redes sociais, a desinformação corre muito rápido e a gente não consegue combater.

Sul21: Várias vacinas estão com coberturas baixas, mas a poliomielite parece se destacar em função do tempo de campanha.

Juares Cunha: O que mais nos assusta no momento é a pólio, porque nós temos coberturas muito baixas. A campanha, com tudo o que foi feito aqui no Estado, a gente conseguiu com que a Defesa Civil mandasse um alerta para as pessoas, dizendo do risco da pólio voltar, mesmo assim a gente não está tendo a adesão que esperaria. Isso nos expõem ao risco que estamos correndo. Não podemos deixar ter caso de pólio no Brasil para daí ir correndo vacinar.

Nos chama muita atenção que mesmo com toda a cobertura da imprensa, usamos todas nossas redes sociais… a gente fica meio perplexo porque não sabe mais o que fazer. A gente vê as notícias do exterior da pólio voltando, não sei se as pessoas precisam ver o risco de chegar perto para daí se mobilizar. Nos assusta muito porque a gente não sabe muito bem quais estratégias mais usar. A impressão é que ficou muito abalada a questão da confiança (na vacina).

Sul21: Qual o tamanho da responsabilidade do governo federal na baixa adesão à vacinação?

Juares Cunha: O movimento antivacina sempre teve algum impacto, mas era um impacto pequeno. Eles foram empoderados e por quem? Infelizmente pelo próprio governo e o próprio Ministério da Saúde. A gente nunca teve antes uma audiência pública para discutir vacina recomendada pela Anvisa e pelo Programa Nacional de Imunização, e para ouvir justamente os grupos antivacina.

Outra coisa que tem atrapalhado é que os programas de transferência de renda, antigamente o Bolsa Família e agora o Auxílio Brasil, eram programas em que as crianças tinham que respeitar as condicionalidades. Para receber o benefício, a criança tinha que estar na escola e ter as vacinas em dia. Claro que durante a pandemia isso ficou inviável, mas essa população mais vulnerável que recebe os benefícios, é a que está mais atrasada na vacinação.

Antes tinha estratégia que propiciava colocar em dia a vacinação e, desde a pandemia, isso deixou de ser cobrado. Esse é mais um motivo pelo qual a gente não está conseguido melhorar a cobertura vacinal. É uma estratégia que a gente tem que retomar porque pega principalmente a população mais vulnerável.

Sul21: Com a campanha chegando ao fim e a cobertura ainda baixa, qual o risco de voltar a pólio no RS e no Brasil?

Juares Cunha: Um exemplo já temos, que é o sarampo, uma doença eliminada em 2016 e que retorna em 2018 e continua com baixa cobertura vacinal. Para a pólio, o alerta é ainda mais importante devido às consequências da doença. É uma doença que não tem tratamento, a única estratégia é a vacinação. A gente não quer que voltem aqueles casos de paralisia, de pessoas que ficaram paralíticas pro resto da vida, pessoas que entraram em insuficiência respiratória e morreram sem poder respirar.

Nas décadas de 1980 e 90, a gente tinha um ou dois dias de campanha por ano e vacinava 95% do público. Esse ano tivemos um mês de campanha e chegou a 30%. Foi prorrogado por mais vinte dias e a gente não vai conseguir alcançar. Temos que repensar as estratégias e modificar a forma de comunicar. É uma doença gravíssima que a gente eliminou e temos que continuar, como já conseguimos erradicar.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora