![Estudantes estiveram mobilizados contra Novo Ensino Médio em todo o País. Foto: Roven Rosa/Agência Brasil](https://sul21.com.br/wp-content/uploads/2023/10/img_9484-450x300.jpg)
A reforma do Novo Ensino Médio teve sua última versão aprovada na Câmara dos Deputados nesta terça-feira (9). O texto segue agora para a sanção presidencial, com diversos ajustes feitos em nove meses de tramitação. O texto amplia a carga horária voltada a conteúdos da formação básica curricular, mas nem todas as reivindicações de estudantes e educadores foram acatadas na reformulação da política educacional que entrou em vigor no ano de 2022.
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Para entender o que muda na prática com o projeto aprovado, o Sul21 conversou com a pesquisadora Ângela Chagas, do Observatório do Ensino Médio do Rio Grande do Sul.
Leia a entrevista na íntegra:
Sul21: O projeto que vai para sanção do presidente Lula amplia a parcela de conteúdos da formação básica curricular, mas não retira os itinerários formativos. É possível dizer que, com a reforma, o Ensino Médio volta a ser igual ao antigo, acrescido de formação para carreira?
Ângela Chagas: Desde que essa reforma foi apresentada lá em 2016, na forma de uma medida provisória – que é um formato muito autoritário, não houve ampla discussão com estudantes e educadores –, os pesquisadores já vinham alertando sobre os problemas desse modelo. No ano passado, tivemos uma série de protestos e pressão da comunidade acadêmica para que houvesse uma revogação. Porque essa reforma limitou significativamente o conhecimento escolar: houve uma redução da carga horária das disciplinas tradicionais para inserção dos itinerários formativos.
Esse novo projeto é uma tentativa de minimizar os prejuízos que essa reforma trouxe para os estudantes, principalmente das escolas públicas, que representam a grande maioria do contingente de alunos do Ensino Médio no Brasil. O projeto amplia, de 1,8 mil horas para 2,4 mil horas, a formação geral. Os estudantes vão voltar a ter mais aula das disciplinas escolares – português, química, história, etc. E isso é importante, é fundamental, é resultado da pressão dos estudantes que foram às ruas dizer que essa reforma não fazia sentido e prejudicava a formação deles.
Só que o projeto aprovado mantém vários problemas do novo Ensino Médio. Um dos problemas também está relacionado à carga horária, porque vai haver 2,4 mil horas para quem está no Ensino Médio regular, que chamamos de propedêutico – mas quem fizer ensino técnico vai ter uma carga horária menor [de formação básica]. Então, estaremos aprofundando as desigualdades. Porque o estudante trabalhador, que vai procurar uma formação técnica, vai ter essa parte da formação geral reduzida em relação aos que vão fazer o Ensino Médio propedêutico e que terão mais chance de ingressar numa universidade pública por meio do Enem.
A proposta dos educadores é que fosse a mesma carga horária de 2,4 mil horas de formação básica[para todos os estudantes]. O projeto aprovado no senado trazia isso, mas na Câmara dos Deputados – numa votação muito questionável, porque não teve nem o tempo de debate para os parlamentares – isso foi vetado.
Eu e outros pesquisadores não somos contra haver uma parte diversificada no currículo – é importante, o próprio PL que havia sido apresentado no começo do ano passado por pesquisadores da área já trazia a proposta de 2,4 mil horas para todos e 600 horas de uma parte diversificada. Mas não nessa perspectiva dos itinerários formativos. Temos observado que esse modelo fragmenta o currículo do Ensino Médio e também não está conectado com as necessidades, com os interesses das comunidades escolares, que não têm autonomia na construção das suas políticas curriculares, porque elas vêm impostas de cima pelas secretarias de educação. No Rio Grande do Sul, tivemos a criação de mais de 100 novos componentes curriculares por causa dessas trilhas do novo Ensino Médio. E os estudantes não veem sentido nessas novas matérias, que estão desconectadas das necessidades da sua formação.
Outro ponto que nosso grupo de pesquisa aponta é que um dos pilares desse novo Ensino Médio é a liberdade de escolha dos estudantes. Só que, na prática, isso não está acontecendo. Na rede estadual do RS, há escolas que oferecem apenas uma trilha, um itinerário formativo aos estudantes. Temos 83 pequenos municípios no estado que só têm uma escola de Ensino Médio e, nessa uma escola, só se oferta uma trilha. Então, é uma situação ainda mais grave: em cidades pequenas, para fazer uma trilha diferente da que é oferecida no seu município, o aluno teria que se deslocar para outra cidade. Na prática, a liberdade de escolha é muito limitada.
Também tem a questão dos estudantes que estudam à noite. Em 40% das escolas que têm o [ensino] noturno, existe apenas uma trilha disponível para esses estudantes. São estudantes trabalhadores que não têm nenhuma possibilidade de escolha.
Então essa reforma é uma falácia. Os problemas foram parcialmente enfrentados, mas vamos continuar discutindo mudanças no Ensino Médio.
Sul21: Nesses dois anos de Novo Ensino Médio, foram oferecidas formações aos professores para que pudessem lecionar os itinerários formativos?
Ângela Chagas: Um dos pontos de crítica dos professores na pesquisa que eu fiz em escolas da rede estadual do RS é justamente a ausência de uma política efetiva de formação de professores para trabalhar com essa mudança curricular. Principalmente para trabalhar com esses itinerários formativos que estão desconectadas da sua formação inicial – química, física, geografia e assim por diante. Os profissionais formados nestas disciplinas estão tendo que dar aula de componentes que eles não tiveram formação.
A formação continuada oferecida pela Secretaria de Educação é muito limitada, em sua maioria por meio de aulas online, palestras oferecidas pelo Youtube da Seduc ou de cursos online conduzidos por fundações empresariais. Essas instituições hoje são responsáveis pela política educacional juntamente com a Seduc, porque as próprias universidades públicas não têm sido convidadas a participar das discussões sobre o planejamento curricular e dar formações aos professores.
Sul21: A partir de 2027, serão cobrados no Enem conteúdos dos itinerários formativos – o próprio Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) criticou a proposta. Por quê?
Ângela Chagas: A mudança [no projeto] que havia sido feita no Senado previa que o Enem iria seguir a formação geral básica, que é o que o Inep já tinha manifestado que há condições de fazer: uma prova do Enem baseada nos conteúdos das disciplinas escolares. E agora não, se o projeto for sancionado sem vetos, teremos um Enem em 2027 que vai contemplar os itinerários formativos. A grande questão é como o Inep vai trabalhar essa parte diversificada se o próprio Instituto disse que isso não seria possível. Porque temos uma diversidade muito grande dentro desses itinerários formativos – como vai ser construída uma prova com tantas opções?
Sul21: O texto que segue para sanção prevê apenas o inglês como língua estrangeira obrigatória. Como era o antigo Ensino Médio em relação à língua estrangeira?
Ângela Chagas: Antes da reforma do Ensino Médio, já havia uma lei que trazia a obrigatoriedade do ensino do espanhol. Com o novo Ensino Médio, tivemos a obrigatoriedade apenas do inglês, e ainda tinha outro problema: obrigatório mesmo, no Ensino Médio, era apenas português, matemática e inglês. Todas as outras matérias não eram obrigatórias, tanto que a gente teve um enxugamento da sociologia, da filosofia e das artes por conta da reforma. Agora temos a retomada da obrigatoriedade [das demais disciplinas básicas], mas o espanhol ficou de fora. E num país que tem fronteira com países de língua espanhola – aqui no RS as escolas já tinham oferta do espanhol e do inglês – é muito prejudicial para o desenvolvimento do estado, para essas relações com os países da América do Sul e para a própria formação dos estudantes.
Também há um contingente de professores que, que nos últimos anos, foram formados para dar aula de espanhol porque havia essa obrigatoriedade da oferta nas escolas, tendo em vista a compreensão da importância dos estudantes terem essa formação. Esses profissionais, que fizeram curso superior com foco na língua espanhola, agora estão sem a garantia de ter o seu trabalho.
Sul21: O que é considerado uma vitória nesse novo projeto e o que continuará sendo reivindicado? Houve diálogo do governo com estudantes e educadores?
Ângela Chagas: Tivemos uma vitória, que foi a ampliação da carga horária da formação geral básica, e essa vitória é dos estudantes, dos professores, dos pesquisadores e movimentos sociais que se mobilizaram nos últimos anos para garantir a formação integral dos estudantes, principalmente das escolas públicas. As escolas privadas, em sua maioria, não enxugaram os conhecimentos para inserção dessa parte dos itinerários formativos. Tivemos uma restrição muito significativa na escola pública. Nesse sentido, houve uma vitória importante.
A pressão dos estudantes e educadores levou o MEC, no ano passado, a realizar uma consulta pública para ouvi-los. Foram apontados vários problemas no novo Ensino Médio, parcialmente contemplados no projeto de lei. Houve avanço no Senado, mas que infelizmente não foi reconhecido pela Câmara dos Deputados. Num golpe comandado pelo presidente Arthur Lira, houve uma votação simbólica – sem que os deputados tivessem espaço para argumentar e propor mudanças nesse projeto. Mas a luta por um Ensino Médio de qualidade vai continuar, nós vamos continuar defendendo mudanças que contemplem demandas dos estudantes e educadores.