Educação
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2 de agosto de 2022
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08:08

Escolha para quem? Novo Ensino Médio aprofunda abismo entre redes pública e privada

Por
Luís Gomes
[email protected]
Arte: Matheus Leal/Sul21
Arte: Matheus Leal/Sul21

*Colaborou Duda Romagna

Ao ser apresentado, em 2016, no início do governo de Michel Temer (MDB), o Novo Ensino Médio prometia ser uma oportunidade aos alunos, permitindo escolher quais disciplinas iriam cursar ao longo dos três últimos anos de sua vida escolar. Na prática, o que se viu quando os novos currículos entraram em vigor, neste ano de 2022, foi um abismo crescente entre estudantes das redes pública e privada. Expressões como “autonomia” e “flexibilidade”, usadas pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc) para descrever o novo currículo, parecem, na realidade, omitir a ausência de diretrizes e recurso ofertados às escolas públicas, enquanto instituições privadas aproveitam a oportunidade para garantir ensino de excelência, mas acessível a pouquíssimos.

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A matriz curricular implementada pela Seduc para o Novo Ensino Médio estabelece que os estudantes terão, ao longo dos três anos da etapa, 1.800 horas de Formação Geral Básica — composta pelas disciplinas das áreas de conhecimento tradicionais — e 1.200 horas de currículo diversificado, onde entram os chamados Itinerários Formativos.

Estes itinerários são divididos em componentes obrigatórios (as disciplinas de Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura e Tecnologias Digitais e Iniciação Científica), trilhas de aprofundamento curricular (divididas em duas áreas de conhecimento e um componente de formação técnica e profissional) e disciplinas eletivas.

O aprofundamento curricular consiste em priorização de disciplinas em duas das quatro áreas de conhecimento oferecidas na rede: Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. O estudante também terá disciplinas de educação profissional, que inicialmente serão oferecidas pela rede estadual em quatro áreas: Informática, Administração, Eletrotécnica e Agropecuária.

A principal  escolha a ser feita pelos alunos está justamente no aprofundamento curricular. De acordo com a matriz curricular, cada área de conhecimento é dividida em duas temáticas. Com isso, ao menos em tese, os estudantes da rede pública poderiam optar por realizar o aprofundamento curricular em oito áreas: Cidadania e Relações Interpessoais, Empreendedorismo, Expressão Corporal, Expressões Culturais, Sustentabilidade, Saúde, Educação Financeira e Tecnologia. Na prática, o que se viu nas 264 escolas-piloto, onde o Novo Ensino Médio começou a ser implantando em 2020, é que cada instituição oferecia duas opções de aprofundamento para os alunos.

Um documento disponibilizado no site da Seduc — retirado do ar em julho em razão das restrições eleitorais para a comunicação oficial — aponta as opções de aprofundamento em cada uma dessas escolas em 2021 (ver abaixo).

 

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Marcio Koehn de Freitas é diretor da Escola Estadual de Educação Básica Presidente Roosevelt, de Porto Alegre, uma das escolas-piloto que implementaram o modelo do Novo Ensino Médio em 2020 e, em 2022, tem as primeiras turmas concluindo o novo formato. Ele conta que, inicialmente, a Secretaria de Educação demonstrou interesse na construção conjunta dos currículos com a comunidade escolar. No entanto, ele avalia que o processo de participação ficou muito aquém do ideal. “Fizeram uma escuta da comunidade, mas muito pouco divulgada, depois enviaram questionários para as escolas, também muito em cima da hora, poucos alunos entregaram, querendo saber quais eram os interesses, como se isso fosse servir de base para uma organização curricular nova”, diz.

Segundo Marcio, a Seduc realizou uma gincana na escola, com alunos do 9º ano do Ensino Médio ao 3º ano do Ensino Médio. “Os alunos se dividiram por áreas de interesse sugeridas pela Seduc, não lembro de todas as 10, mas tinha áreas culturais, áreas voltadas para a saúde, áreas voltadas para o empreendedorismo, que por sinal não foi muito bem votado, e agora tá sendo imposto. Aqui na Roosevelt, o que tirou o primeiro lugar foi a parte da Expressão Corporal, esporte, dança, teatro. A Seduc não gostou nada porque não estava nos planos deles que isso aparecesse, mas, como era o piloto, o coordenador da época estava de acordo com o que a comunidade escolheu”, relata.

Em 2020, a primeira turma de Expressão Corporal teve início. Então, de acordo com o diretor, a Seduc enviou um comunicado expressando a necessidade de que a escola disponibilizasse outro itinerário formativo. Após nova votação com os alunos, foi definido então que esse novo itinerário seria Empreendedorismo. No entanto, Marcio avalia que a implantação concomitante dos dois itinerários exigiria da escola realizar um novo processo de matrícula com o ano já em andamento. “A logística é absurda, como fazer uma rematrícula.”

Ainda assim, foram implementados entre o final de fevereiro e o início de março de 2020. Semanas depois as aulas foram suspensas em razão da pandemia de covid-19, retornando posteriormente apenas no formato a distância.

Márcio avalia que, na prática, os alunos da Presidente Roosevelt não tiveram ao longo dos três anos do Novo Ensino Médio liberdade de escolha de disciplinas eletivas e do itinerário. “Teve um papo que teria escolha, que o aluno poderia escolher, poderia optar, inclusive ele poderia se matricular aqui, mas cursar as eletivas em outras escolas se ele quisesse um itinerário que a escola não atende. Os itinerários agora são impostos e essa questão da troca, eles dizem que o aluno vai poder optar, mas já vai acabar o primeiro semestre e eles não dizem como vai ser esse processo de opção e de troca. Por enquanto, o que efetivamente existe é que o aluno se matricula onde tem vaga. E ele aceita o itinerário que está sendo ofertado naquela turma”, diz o diretor.

 

Presidente Roosevelt ofereceu o aprofundamento em Expressão Corporal nos espaços abertos da escola |  Foto: Luiza Castro/Sul21

Além disso, ele pontua que mesmo a escola fazendo parte do projeto piloto e tendo recebido da Seduc a definição de qual itinerário deveria ofertar aos estudantes, não houve repasse algum de materiais didáticos para os professores, que também não foram direcionados a nenhuma disciplina específica, nem ocorreram novas contratações ou concursos para a nova carga horária. “Só criaram as disciplinas e o professor se vira para buscar o conteúdo, para buscar as estratégias para dar em aula, é o que tem acontecido ultimamente. Os professores não sabem o que tratar em aula. Fica mais ou menos no senso comum. Por exemplo, tem Legislação e Cidadania, professores de História e de Geografia trabalham dando esse itinerário no entendimento deles, eles buscam matérias para tratar em sala de aula.”

A professora Mariângela Bairros, coordenadora do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS, que estuda a implantação do Novo Ensino Médio no Estado, avalia que um dos problemas mais graves do formato é justamente o fato de ter delegado às escolas a responsabilidade de organizar os itinerários formativos.

“A secretária Raquel Teixeira vem falando amplamente que basta o aluno querer, basta o aluno sonhar. Mas é um crime contra a juventude o que está ocorrendo hoje no Rio Grande do Sul, porque tudo isso que nós estamos falando é do ponto de vista da proposta, da implementação, mas nós vamos para as escolas e não temos laboratórios de informática, não temos laboratórios de ciências, não temos a infraestrutura. Nós temos professores com baixos salários, até recentemente com salários atrasados, falta de professores, inclusive de Português e Matemática. Isso não é dito nesta reforma. Não há um objetivo de recuperar a estrutura das escolas, mas coloca sobre os jovens que basta eles escolherem”, diz.

Mariângela avalia que, quando a reforma foi proposta, criou-se uma ilusão de que o aluno poderia, de fato, escolher o que iria cursar a partir de seus interesses. Poderia, por exemplo, cursar “Design de Games”, como no caso do Farroupilha, mas essa realidade está longe de se materializar na rede pública estadual, onde a oferta de disciplinas é voltada, basicamente, para uma proposta de Empreendedorismo. “Neste momento, eu digo, sem medo de errar, a partir das pesquisas que nós temos acompanhado nas escolas, que o futuro dos jovens está comprometido. O empreendedorismo é o menino subir na sua bicicleta, ser entregador. Esse é o empreendedorismo em vigor neste momento”, diz.

Por sua vez, a realidade na rede privada parece ser bem diferente. Daiane Modelski, coordenadora de ensino no Colégio Farroupilha, conta que a instituição começou a construir a proposta inicial de implementação do Novo Ensino Médio anos antes do novo currículo entrar em vigor. Uma das etapas de construção foi uma consulta aos estudantes realizada ao longo do ano de 2021 para identificar quais as áreas de interesse deles, o que ajudaria a moldar os itinerários formativos e as eletivas a serem oferecidos pela escola.

A ideia, diz, era de que os alunos se sentissem “pertencentes” ao novo modelo e que não fosse algo desconhecido. A partir das conversas, o Farroupilha optou por trabalhar, em 2022, a Formação Geral Básica, isto é, o currículo comum que todos os estudantes devem cursar, e deixar a escolha dos itinerários formativos para 2023, quando os primeiros estudantes do Novo Ensino Médio estiverem começando o segundo ano. Contudo, para já preparar os alunos para o momento de “fazer escolhas”, o colégio implantou em seu currículo a necessidade deles cursarem duas disciplinas eletivas ao longo deste ano.

 

Estudantes do Farroupilha têm acesso a laboratórios de ciências e outras disciplinas | Foto: Luiza Castro/Sul21

“A partir do próximo ano, na segunda e terceira série, além das eletivas, eles fazem a escolha do itinerário de aprofundamento, que é um pouco mais direcionada. Mas, como é uma novidade para o aluno fazer uma escolha, a escola também se preocupou em preparar o estudante de forma gradativa para isso”, explica Daiane, acrescentando que as escolas privadas têm autonomia para escolherem os componentes flexíveis do novo currículo.

O Farroupilha disponibilizou, então, dez eletivas para os estudantes escolherem quais cursar no primeiro semestre: Estatística aplicada à pesquisa científica; Comunicação e expressão; Ateliê de linguagens visuais; Escape Room: atualidades por meio da gamificação; Ciência forense; Cultura maker e prototipagem digital; Programação e desenvolvimento de web+games; Inovação e Saúde; Escrita criativa; e Poder e território: a construção da sociedade ocidental.

Para o segundo semestre, a grade de eletivas sofreu algumas modificações. Foram oferecidas: Ciência forense; Comida de verdade; Comunicação digital e redes sociais; Comunicação e expressão; Desenvolvimento mobile; Estatística aplicada à pesquisa científica; Inovação e saúde; Lógica: mentes humanas vs. inteligência artificial (ministrada em inglês); e Poder e território: a construção da sociedade ocidental.

 

Material disponibilizado pelo Farroupilha sobre disciplinas eletivas | Foto: Reprodução

Daiane explica que a maioria das disciplinas são ministradas por professores que já faziam parte do quadro de funcionários da escola e receberam treinamento para elas. Porém, há algumas disciplinas que são ministradas em parceria com instituições de ensino superior, como é o caso de Inovação e Saúde, oferecida em parceria com a Unisinos.

A ideia do Farroupilha é aumentar gradativamente o número de disciplinas oferecidas e, a partir do segundo ano, adotar a configuração multisseriada, com o aprofundamento em uma mesma área. Por exemplo, oferecendo Ciência forense II.

“As eletivas têm dois objetivos. Um deles é que os alunos tenham a possibilidade de desenvolver habilidades específicas e ampliar suas possibilidades. Por exemplo, eu quero Medicina, mas vou fazer uma disciplina de Comunicação e expressão, porque talvez ele entenda que precisa se desenvolver nessa área. Então, ele pode buscar algumas eletivas para aprimoramento de algumas habilidades ou para conhecer a área. Não é um único objetivo profissional, não”, diz Daiane.

Ela avalia que a implementação do Novo Ensino Médio no Colégio Farroupilha tem sido “muito positiva”. “Eu acho que especialmente a parte flexível do currículo é muito importante para a gente trabalhar o protagonismo estudantil, a autonomia do estudante, que era algo que a gente buscava muito. E, agora, com essa flexibilidade do currículo, isso está permitindo que as escola possam personalizar melhor as trajetórias dos estudantes. Então, eu vejo de forma muito positiva, minha única preocupação é que as escolas públicas também tenham essas mesmas possibilidades de personalização, para que todos tenham acesso a isso.”

Além de uma ampla oferta de disciplinas, os estudantes do Farroupilha têm à disposição laboratórios e salas de aula multimídia adequadas para os novos componentes curriculares, com notebooks de última geração. Já a escola estadual Presidente Roosevelt conta com um único laboratório de informática, cujos computadores foram doados em 2008 e não acompanham as necessidades do Novo Ensino Médio.

 

Salas multimídia do Colégio Farroupilha são equipadas com computadores modernos | Foto: Luiza Castro/Sul21
Único laboratório de Informática da escola Presidente Roosevelt tem equipamentos obsoletos | Foto: Luiza Castro/Sul21

Outro tradicional colégio particular de Porto Alegre, o Anchieta ofereceu em seu novo currículo em 2022 o que chamou de quatro Trilhas dos Itinerários, cada uma delas dividida em dois temas. São elas: Inovação, Tecnologias e Pesquisa Científica (dividida em Inteligência financeira e Ciência e tecnologia); Saúde e Bem-Estar Social (dividida em Saúde individual e coletiva e Química do cotidiano); Humanidades e Desenvolvimento Pessoal (dividida em Política, direito e sociedade e Cidadania global em inglês); e Processos Criativos (Linguagens artísticas e Pensamento computacional).

Além das trilhas, o Anchieta ofereceu nesta ano as disciplinas eletivas de Cinema e História; Esportes/práticas corporais; Teatro; Música e neurociência; Jogos digitais; Dança e saúde mental; e Geopolítica.

 

Componentes de aprofundamento oferecidos no Colégio Anchieta | Foto: Reprodução

Na escola escola Tuiuti, de Gravataí, não há oferta de disciplinas eletivas para o primeiro ano do Novo Ensino Médio. O currículo prevê a implementação de matérias que os alunos poderão escolher a partir do segundo ano, mas a diretora Geovana Rosa Affeldt avalia que, hoje, a escola não tem condições de oferecê-las. “Essa questão dos alunos poderem optar por áreas não têm como acontecer aqui, porque nós não temos professor, não temos espaço para isso”, diz a diretora.

Geovana aponta ainda que a formação oferecida aos professores pela Seduc consistiu na disponibilização de conteúdos em plataformas digitais, como o projeto Aprende Mais. Contudo, ela enxerga que os professores não têm nenhum incentivo para buscarem essa formação ou sequer tem tempo para isso.

“O professor faz 16 períodos de 50 minutos a cada 20 horas. O que sobra para a formação, para que ele assista um vídeo? Não tem, a carga horária do professor é praticamente toda ocupada em sala de aula, não existe espaço para fazer uma construção, para fazer uma análise, para fazer uma crítica, porque é tudo ocupado com sala de aula”, diz.

A respeito dos itinerários formativos e das eletivas, a professora Marina Vargas, da Escola Estadual Walter Jobim, de Viamão, pontua que as escolas se prepararam para uma “realidade que não está acontecendo”. Ela esperava por exemplo que, pelo fato de a cidade de Viamão ter uma vocação agrícola importante, escolas localizadas em bairros de perfil mais rural pudessem oferecer aos alunos itinerários voltados para a questão agroecológica. O mesmo para a região de Itapuã, que poderia, por exemplo, tratar da temática indígena, e assim por diante. “Só que isso não está acontecendo, porque a gente não consegue nem ter professor para dar o principal, que dirá dividir em eletivo”, diz. “O que a gente vê na privada é que eles já estão preparados, já estão organizados”, complementa.

Marina conta que a coordenadoria de educação que atende a região solicitou que a escola fizesse um levantamento de currículos, em que fossem elencadas, além das graduações e pós-graduações, a experiência profissional dos professores. A ideia seria organizar os itinerários, que começarão na escola em 2023, a partir dessa experiência.

“Tem um colega que teve uma loja, que foi administrador e trabalhou um tempo, ele vai entrar no itinerário da Administração, mas não está acontecendo ainda”, diz. “A gente tem na Walter Jobim um professor que é perito criminal. Poderia aproveitar esta experiência dele, mas aí vai depender da escola que vai ter um professor, entendeu?”, diz.

Questionada pela reportagem sobre como pretendia equiparar a oferta de conteúdos entre as redes pública e privada, a Seduc respondeu, por meio de nota, que cada rede de educação do sistema estadual de Ensino possui autonomia para a definição dos seus Itinerários Formativos a partir das diretrizes estabelecidas. “No caso da Rede Estadual de Educação do RS, serão ofertados 29 Itinerários Formativos, sendo 24 Trilhas de Aprofundamento Propedêuticas, contemplando as quatro áreas de conhecimento (Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Matemática e suas Tecnologias) e 5 Trilhas de Formação Técnica, Profissional e Profissionalizante. Isso significa um impacto de, aproximadamente, 190 novos componentes curriculares”, diz apenas a resposta da Seduc.

A secretaria pontuou ainda que a experiência das escolas-piloto é relevante para o processo de construção das Trilhas de Aprofundamento que serão ofertadas em toda a rede estadual. “Com as experiências compartilhadas pelas 264 escolas-piloto, aprendemos a trabalhar o planejamento pedagógico de forma integrada e por área de conhecimento, identificando assim os aspectos necessários de melhoria”, diz a nota.

Presidente interino do Cpers, Alex Saratt avalia que, na prática, o que está se vendo é a composição de um “ensino dualista”. Isto é, há dois modelos de ensino que são concomitantemente aplicados no Brasil. “Uma escola de excelência acessível para poucos, a gente sabe quem são esses poucos. E uma escola de uma formação geral muito básica, no sentido digamos pejorativo da palavra básica, muito supérflua, sem aprofundamento, sem criticidade, condicionando apenas a formação do trabalhador obediente e submisso, não do cidadão ativo, compromissado e consciente”, diz.

Ele pontua que essa separação entre uma escola de excelência, a ser aplicada na rede privada e em algumas poucas unidades da educação pública, e uma escola básica para a maioria dos estudantes, já havia sido discutida, mas derrotada, nos anos 1990, quando se tratou da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Apesar de existir um abismo entre as redes, garantiu-se, então, que a proposta de escola privada e pública seria a mesma. Com o Novo Ensino Médio, diz, abriram-se novamente as portas para a diferenciação.

“O que nós temos hoje com o Novo Ensino Médio é justamente um sistema onde as escolas públicas são vistas como gasto dentro da lógica do ajuste fiscal, dentro da lógica da austeridade, dentro da lógica da precarização do serviço do público, uma lógica que contrasta com o que o movimento educacional brasileiro vem dizendo há décadas”, diz Saratt.

Saratt avalia que, por trás da reforma, está uma proposta de que a escola pública deve formar apenas profissionais, enquanto ele acredita que a sociedade atual exige uma formação polivalente, que abranja vários temas, a fim de preparar os estudantes para um mundo do trabalho constantemente impactado por revoluções tecnológicas. No entanto, ele crê que o Novo Ensino Médio, até o momento, não está apto para preparar os estudantes “nem para uma coisa, nem para outra”, no Rio Grande do Sul.

Marcio Freitas conta que a recepção dos estudantes que estão concluindo o terceiro ano do Novo Ensino Médio na escola Presidente Roosevelt é negativa e que as reclamações giram em torno da falta de preparação para o Enem e para vestibulares, em razão da redução da carga horária de disciplinas como Química, Física e Biologia. “Os alunos, em geral, não gostam, eles prefeririam ter o Ensino Médio tradicional. Então eles aceitam, a gente fala que não é uma coisa da escola, que todas as escolas agora a partir de 2022 estão implantando e que se quiserem trocar de escola vai ser igual, mas eles não gostam, é mau humor, apatia bastante grande. Eles sentem que perdem disciplinas para inclusão do itinerário que, no ponto de vista imediatista do aluno, não vai ter função nenhuma, porque eles querem o Enem e o vestibular da UFRGS. Os professores não têm culpa de não saber o que dar de matéria, muitos acabam fazendo algum projeto extracurricular que não foi aprovado pela secretaria.”

 

Professores e diretores de escolas púbicas relatam que instituições não têm espaços adequados para ministrarem disciplinas eletivas e das trilhas de aprofundamento curricular | Foto: Luiza Castro/Sul21

Marina Vargas pontua que um complicador da avaliação do Novo Ensino Médio é que os alunos não sabem dizer se preferem este modelo ou o anterior, pelo fato óbvio de que não passaram pela etapa anteriormente. Ela diz que chegou a fazer essa pergunta em sala de aula e ouviu como resposta que, no caso de sua disciplina, achavam interessante o fato de ela estar permanente tentando trazer conteúdos novos, mas, ao mesmo tempo, se sentem perdidos em outras cadeiras.

“Um menino que veio transferido de outra escola e chegou agora, ele disse assim: ‘pois é, professora, isso que a senhora fala em Mundo do Trabalho, da inteligência artificial, eu já tive toda a história até chegar nisso em Cultura e Tecnologias Digitais’. Só que aqui na nossa escola, o pessoal não teve nada dessa disciplina ainda, então fica completamente desparelho. Uma coisa que é para ser padronizado, dar um caminho, não tem conexão uma escola com a outra, isso dentro do mesmo município”, diz.

A diretora Geovana Affeldt, da escola estadual Tuiuti, avalia que, neste cenário, falar em melhoria do Ensino Médio seria uma “falácia”, pois os alunos não estão recebendo a formação adequada nas novas disciplinas ao mesmo tempo em que perderam qualidade nas disciplinas antigas que tiveram redução de carga horária.

“Aqui, na prática, no chão da escola, a fala do Novo Ensino Médio de mudança para atender melhor os alunos é uma falácia. Não existe a menor possibilidade de ter nenhuma melhoria se algo mais básico não for resolvido. Sem falar da questão da ideologia das disciplinas que poderiam preparar melhor os alunos para ascender numa carreira, para fazer uma faculdade, e isso está sendo destruído com o novo Ensino Médio, que incorpora esses novos componentes curriculares que nós não temos pessoas especializadas para dar. A base está sendo destruída. Eles não vão ter base e também não vão ter essas novas disciplinas de qualidade, porque nós não vamos ter quem as dê”, diz.

Contudo, Geovana ressalta que não é contrária à ideia do Novo Ensino Médio em absoluto, o que ela lamenta é que não foram oferecidas condições à escola de colocar em prática a nova matriz curricular de forma adequada. “A gente não tem a possibilidade de colocar em prática o Novo Ensino Médio para ver se ele vai dar certo, a gente não consegue chegar lá.”

Ela ainda pondera que a nova matriz curricular não foi pensada para se adaptar a questões básicas da realidade dos alunos da rede pública, como a ampliação do horário que levou à antecipação do início das aulas noturnas para o final da tarde. “Eu tenho muitos alunos que vão para a escola direto do trabalho. Com o aumento da carga horária, como os alunos vão fazer para cumprir?”, questiona. “Não tem como. Já tive aluno que me disse que não tem como. ‘Meu horário já era queimadinho às 19h, como é que eu vou chegar às cinco e pouco’”, relata a diretora.

Na prática, a alternativa encontrada pelos professores para lidar com estes alunos foi deixar atividades em plataforma digital, como leituras, para que conteúdos ministrados no início do turno possam ser recuperados. “O Novo Ensino Médio não contempla a realidade das escolas públicas. Ele não foi feito para as escolas públicas, talvez as escolas particulares sim. Mas todas as escolas públicas que eu tenho contato, ninguém está conseguindo cumprir minimamente as mudanças em função da falta de condições”, diz Geovana.


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