Economia
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12 de junho de 2022
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09:11

Livro que denuncia ‘complô’ da dívida pública para enriquecimento de elites vai virar filme

Por
Luís Gomes
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Hermes Zaneti (Foto: Carol Ferraz)
Hermes Zaneti (Foto: Carol Ferraz)

Desde 1988, o ex-deputado constituinte Hermes Zaneti vem dedicando parte de sua vida para denunciar que pequenas mudanças de redação de alguns artigos e a exclusão de outros da Constituição brasileira resultaram em uma explosiva dívida pública, tanto para a União como para os estados, que se transformou em um mecanismo de enriquecimento de elites financeiras. Em 2017, ele publicou o livro “O Complô: como o sistema financeiro e seus agentes políticos sequestraram a economia brasileira”, que explica como foram construídos os mecanismos da dívida e impostas barreiras para o seu questionamento. Agora, movimentos sindicais querem transformar o livro em um curta-metragem, que irá misturar elementos documentais com ficção.

O livro “O Complô” fala sobre o processo de captura da política pelo mercado financeiro e como artigos da Constituição criados para controlar o sistema bancário nunca foram cumpridos ou foram descaracterizados. A obra lembra que os deputados constituintes estabeleceram que a dívida da União deveria passar por um processo de perícia, o que, apesar de formada uma comissão posterior para debater as regras dessa auditoria, nunca foi feito e o debate judicial sobre a questão, que originou uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2004, segue dormente desde então no Supremo Tribunal Federal.

Outro ponto de destaque o livro é a exclusão do artigo 192 da Constituição, que tinha o objetivo de fixar a taxa de juros reais cobrados no Brasil em 12% ao ano, mas, na véspera da promulgação da Carta Magna, o então presidente José Sarney (MDB) se reuniu com o seu consultor-geral Saulo Ramos e determinou a produção de um parecer que justificasse a retirada desse artigo.

Um terceiro eixo do complô que ainda advém do período constituinte é a alteração da letra b, no item II do terceiro parágrafo do artigo 166. Esta mudança indica que emendas ao projeto de lei do orçamento anual somente podem ser aprovadas “caso indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa”, excluindo, como consta na letra b, o que incida sobre o serviço da dívida. Isto é, garantindo a prevalência do pagamento da dívida sobre outras despesas da União.

A atual dívida pública da União, que supera os R$ 7 trilhões, seria justamente uma consequência das alterações dos artigos originais e do não cumprimento de outros. Somente em 2021, as despesas da União com o serviço da dívida cresceram R$ 136 bilhões em relação ao ano anterior, chegando a R$ 448,3 bilhões.

Impulsionado por movimentos sindicais, o cineasta Luiz Alberto Cassol está organizando um financiamento coletivo, com meta de arrecadação de R$ 330 mil, para transformar a livro em documentário, com o objetivo de popularizar a discussão sobre o endividamento. Interessados podem colaborar doando qualquer valor via PIX ([email protected]) ou pela plataforma Valeu.Art! (confira aqui). Os doadores receberão como recompensa o e-book do livro “O Complô” e terão o nome inserido nos créditos finais do filme, na lista de incentivadores.

Em conversa com o Sul21, Hermes Zaneti destaca que está, formalmente, há 35 anos na luta para denunciar as distorções que envolvem a dívida pública brasileira e diz estar “exultante de alegria” com a proposta de transformar o tema em filme.

“A OAB Nacional, em 2004, entrou com uma ação buscando a efetivação do artigo 26 do ato das exposições constitucionais transitórias, que é de minha autoria, prevendo a análise analítica e pericial dos atos e fatos constitutivos do endividamento público. E, desde 2004, essa ação da OAB Nacional está dormindo no Supremo Tribunal Federal. Imagina você, 18 anos sem que o Supremo julgue e o Supremo não julga porque ele não tem alternativa. Se ele julgar, tem que mandar fazer, como ocorreu, por exemplo, com uma ação promovida pela Auditoria Cidadã da Dívida, aqui em Brasília. Eu visitei o juiz entreguei meu livro a ele e o juiz da causa leu o livro, deu a sentença e me mandou até uma cópia. Nessa sentença, ele determina por liminar que o Congresso Nacional faça a auditoria prevista lá na Constituição. Você sabe que nessa sentença ele determina uma multa de R$ 100 mil por dia para o presidente do Congresso Nacional, na época era o Eunício de Oliveira, caso não cumprisse a decisão. Sabe quanto durou essa liminar? Menos de 24 horas, foi cassada pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região, então é disso que se trata”, diz.

Zaneti pontua também que o tema do endividamento público deveria estar, mais do que nunca, no centro do debate político, especialmente no Rio Grande do Sul, que recentemente deu os últimos passos para a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), que renegocia a dívida do Estado com a União, que hoje supera a casa dos R$ 74 bilhões.

“Tudo o que os estados pagam ao longo do tempo a título de dívida pública com a União, todos esses valores são carreados para a dívida pública federal e esse é o grande problema que eu fui demonstrar aí na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul no dia 18 de maio, porque, no dia 17, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o último item que faltava para a adesão do governo do Estado do Rio Grande do Sul ao Regime de Recuperação Fiscal. É uma piada. Como é que você pode admitir que vai sair de um regime de recuperação fiscal botando o teto nos investimentos? Ou seja, se você não tem crescimento, você não tem como sair do buraco. E isso é o que os deputados aí do Rio Grande do Sul aprovaram naquele dia. Então, é um quadro caótico”, diz.

O ex-deputado constituinte destaca que, por outro lado, é a União que deveria ter uma grande dívida com o Estado, uma vez que a maior parte da dívida do RS, que era originalmente de R$ 9,7 bilhões quando da renegociação em 1998, é composta por juros que incidem sobre juros, o que ele interpreta que não é permitido pela Constituição. O governo estadual tinha uma ação em tramitação no Supremo Tribunal Federal que questionava a cobrança de juros sobre juros, chamada de anatocismo. A ação era o que garantia a suspensão do pagamento das parcelas desde 2017, mas o governo abriu mão como contrapartida para aderir ao RRF.

No entanto, se a tese da ação fosse considerada como vitoriosa, isso representaria que o Estado já teria quitado a dívida em original em 2013 e teria pago R$ 10 bilhões a mais do que deveria. E, além disso, seria ele credor da União em mais de R$ 67 bilhões em razão de perdas da Lei Kandir (que zerou a cobrança de ICMS nas exportações) não compensadas desde 1996, quando a lei foi editada.

“Eu tenho aqui comigo um estudo de dentro da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul, datado de julho de 2019, portanto já na vigência do atual governo, que mostra que o Rio Grande do Sul tem um crédito de R$ 67 bilhões, em julho de 2019, em relação à União por causa da Lei Kandir. Sabe o que ocorreu? O governador Eduardo Leite assinou um compromisso abrindo mão dos R$ 67 bilhões para receber R$ 5 bilhões. Só que tem um detalhe, esses R$ 5 bilhões, o Rio Grande vai receber em 17 anos, até 2038. E esse estudo mostra que R$ 5 bilhões é o que o Rio Grande do Sul perde por ano em função da lei Kandir. Então, nós estamos falando de uma diferença entre o que a União quer e o que o Estado tem direito de R$ 165 bilhões. Ou seja, ou nós enfrentamos isso ou Rio Grande não tem futuro. Essa é a questão de fundo que tá em debate aí”, afirma.

Apesar de as últimas decisões do governo sinalizarem que o RS estaria abdicando da luta, Zaneti saúda o fato de que seis pré-candidatos ao governo do Estado, incluindo Onyx Lorenzoni (PL) e Luiz Carlos Heinze (PP), aliados do presidente Jair Bolsonaro, se manifestaram contrários à adesão ao RRF.

“Para a minha felicidade, eu vi que dos nove candidatos a governador aí do Rio Grande do Sul, seis deles estão se dando conta que não vão governar o Estado se forem eleitos, porque quem vai governar é a União através de três mandaletes, que, se tivessem a competência que dizem ter, o Brasil não estaria nessa situação que está vivendo. Agora, é a União, com essa eficiência toda de gestão, que está mandando três mandaletes governar o Estado. Eu penso que já é uma avanço que seis candidatos tenham o entendimento de que, nas condições postas, estão mentindo à população os que dizem que vão cuidar da Saúde, da Educação, do Transporte. Tudo isso, nós todos sabemos, exige dinheiro e dinheiro é o que o Estado não vai ter se aderir ao regime de recuperação fiscal”, diz.


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