Donos da Cidade
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6 de novembro de 2023
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15:35

Entre vetos da população e denúncias de lobby, complexo Pontal saiu do papel após quase 20 anos 

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Sul 21
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Complexo Pontal, inaugurado em abril deste ano. Foto: Luiza Castro/Sul21
Complexo Pontal, inaugurado em abril deste ano. Foto: Luiza Castro/Sul21

O Complexo Pontal, inaugurado em abril deste ano, foi projetado pela incorporadora Melnick em parceria com a BM Par Empreendimentos Imobiliários. Dividido em shopping, hotel, escritórios, consultórios médicos, centro de eventos, estacionamento, loja de material de construção e um parque público – este último era uma obrigação urbanística a ser entregue pelo empreendedor. A execução do projeto, contudo, só foi possível após modificação na legislação que alterou o padrão de construção permitido no local para tornar o negócio mais atrativo aos compradores.

A área pública, de 42 mil metros quadrados, que até 1995 estava cedida à fábrica de navios Estaleiro Só, passou por disputas ao longo de vários anos. Após a falência da empresa, o terreno voltou para o poder público municipal. Na década seguinte, a Prefeitura tentou leiloá-lo algumas vezes, mas só conseguiu após o então prefeito Tarso Genro (PT) sancionar a Lei Complementar 470/2002, que retirou a restrição de atividade exclusivamente naval do local.

Avaliado em R$ 17 milhões [em valores da época], acabou arrematado pelo lance mínimo de R$ 7,2 milhões pelo empresário Saul Boff, dono da SVB Participações – única empresa a se interessar pelo negócio. O empreendedor então apresentou à Prefeitura o projeto Pontal do Estaleiro, que previa, além de imóveis comerciais, edifícios residenciais, o que contrariava a lei complementar de 2002. “A ideia era fazer um empreendimento misto, para isso eu teria de mudar a lei porque, na época, só podia construir área comercial”, declarou Boff em entrevista à GZH.

Os interesses do empresário foram, novamente, levados a plenário e, em novembro de 2008, a Câmara Municipal aprovou mais uma vez a alteração da legislação autorizando o uso residencial, mas uma denúncia de pagamento de propina acabou com os planos de Boff. “Recebi oferta de ajuda para minha campanha eleitoral por um emissário da BM Par”, revelou o ex-vereador Cláudio Sebenelo (PSDB) em entrevista ao jornalista Juremir Machado da Silva para o jornal Correio do Povo. Segundo ele, um envelope de dinheiro chegou a ser colocado em sua mesa.

O advogado da empresa, Milton Terra Machado, negou ter havido suborno. “A oferta de doação não se vinculou a um pedido de aprovação do projeto”, disse à Folha de São Paulo. Segundo ele, o vereador tucano era amigo de um diretor da BM Par. O Ministério Público gaúcho alegou falta de provas e arquivou o processo.

Para encerrar a polêmica, o ex-prefeito José Fogaça (PMDB) decidiu realizar um plebiscito e chamar a população para definir o destino da área. Em agosto de 2009, 22.619 mil eleitores compareceram às urnas e 18.212 mil decidiram que o local deveria continuar público e que não poderia receber prédios residenciais, obrigando a empresa a mudar o projeto. As obras, entretanto, só começaram em 2019, com o documento de Licença de Instalação entregue em cerimônia promovida pelo ex-prefeito Nelson Marchezan Junior (PSDB). De acordo com o empresário, a demora se deu por cautela. “Claro, todo mundo com medo que desse algum problema”.

Na assinatura do Termo de Compromisso – contrato que estabelece as obrigações do empreendedor com o Município –, a empresa assumiu um conjunto de 24 medidas para atenuar os impactos negativos à região decorrentes da instalação do empreendimento de grande porte. 14 delas foram obras de infraestrutura viária, como ruas de acesso ao empreendimento e passagem para pedestre. As demais resumiram-se à implantação de duas paradas de transporte coletivo, uma próxima ao Museu Iberê Camargo, que em 2022 foi substituída por “doar e implantar paradas na Avenida Tronco”, e outra junto ao Parque do Pontal. A empresa também deveria executar readequações na Estação de Bombeamento de Esgoto para suportar o novo fluxo local e obras de proteção contra cheias.

A Procuradoria-Geral do Município – responsável por monitorar a entrega das obrigações – informou que somente o plano cicloviário permanece em aberto, mas não forneceu as documentações que comprovam a execução das obras.

A propriedade, mesmo privada, está localizada na orla do Guaíba, uma das regiões mais nobres da cidade por ter grande interesse ambiental. As margens do rio estão sob a proteção da Lei Orgânica do Município – Art. 245, inciso V – e do Código Florestal Ambiental – Art. 4º, inciso I, que consideram as orlas, Áreas de Preservação Permanente. A última revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto Alegre (Lei Complementar 434/1999), no Art. 154, inciso XVI estabeleceu o prazo de 12 meses para o Município realizar o zoneamento ambiental da orla do Guaíba, dando indícios de que a região deveria ser protegida, o que nunca foi feito.

As belezas naturais do Guaíba alavancaram os negócios das empresas Melnick e BM Par que puderam comercializar o “primeiro complexo multiuso privado banhado pelo Guaíba”. Todo o complexo hoteleiro foi disponibilizado para investidores, que poderiam comprar suítes inteiras ou “partes ideais” – quando um imóvel tem vários donos. Em junho de 2020, conforme tabela de valores da incorporadora Melnick, uma suíte de 31 m² podia ser adquirida por cerca de R$ 968 mil.

As salas de escritórios e consultórios médicos da Torre Pontal foram postas à venda ainda na fase de construção do empreendimento por R$ 742 mil. De acordo com a última apresentação de resultados da empresa, 90% das 237 unidades comerciais foram vendidas, além de 94% do hotel. As 163 lojas do shopping foram disponibilizadas para aluguel.


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