Últimas Notícias > Geral > Noticias
|
16 de setembro de 2011
|
18:47

MPM aponta como réu soldado que denunciou ter sido estuprado em Santa Maria

Por
Sul 21
[email protected]

Igor Natusch

Depois de meses de silêncio, começam a surgir os resultados do inquérito militar que trata do suposto estupro de um soldado por outros quatro colegas, ocorrido dentro de um quartel em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Após as diligências, o Ministério Público Militar chegou a uma conclusão que não confere com o depoimento do jovem ou com o parecer dos especialistas que acompanham seu caso. O estupro seria, na visão dos militares, uma relação sexual consentida entre os soldados. O jovem, que denunciou ter sido estuprado por colegas, pode acabar virando réu se a versão do inquérito for acatada pela Justiça Militar.

Leia mais:
– Pais de soldado pedem justiça: “Quando isso terminar, vamos embora”
– Laudo diz que soldado estuprado em Santa Maria não poderia prestar serviço militar

O jovem denunciou ter sido violentado por outros quatro colegas, enquanto cumpria pena por ausência em uma vigília. Segundo o relato dos pais do jovem, reproduzido pelo Sul21, o soldado era frequentemente ameaçado e submetido a situações humilhantes dentro do quartel. Na noite de 17 de maio deste ano, foi agarrado à força pelos soldados, que se revezaram na violência enquanto os demais o seguravam. Pelo menos outros 20 soldados estavam no alojamento quando do ataque, sem que nenhum deles se mobilizasse para ajudá-lo. Após o ataque, passou mais de uma semana no Hospital de Guarnição, incomunicável, sem que nem seus pais soubessem que ele se encontrava internado ou o que tinha acontecido com ele.

Nada disso, aparentemente, foi levado em conta pelo inquérito militar. “Os autos não evidenciaram a ocorrência do emprego de violência ou grave ameaça”, afirmou o promotor de Justiça Militar de Santa Maria, Jorge Cesar de Assis. Em resposta a pedido de esclarecimentos por parte do deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), o promotor confirmou que o inquérito militar enquadra todos os envolvidos no artigo 235 do Código Penal Militar, que trata de atos libidinosos ou pederastia. Ou seja, tanto o jovem de 19 anos quanto os outros quatro soldados são, para o Exército, culpados do mesmo crime: fazer sexo dentro do quartel.

Um sexto militar foi incluído no rol dos acusados por, estando de vigia durante o ataque, não ter feito a denúncia a seus superiores, o que caracteriza crime de omissão relevante. O documento segue inacessível, já que está coberto pelas leis militares de sigilo em crimes de ordem sexual. Isso “não impede, todavia, que a autoridade judicial, entendendo pertinente, possa fazê-lo”, diz o promotor.

O jovem que denuncia ter sido violentado prestou, ao todo, três depoimentos – no primeiro deles, logo após o ataque, sequer dispunha da presença de um advogado, conforme denuncia a família. Durante todo o decorrer do inquérito, os advogados da família criticaram a postura dos militares, que não estariam informando adequadamente sobre os desdobramentos da investigação. Exames de lesões corporais foram igualmente mantidos em sigilo, e a família denuncia a disposição dos militares em abafar o caso, com pressões sobre os pais e sobre o próprio jovem, mantido sob intensa vigilância durante o período de internação.

Agora, o juiz tem prazo de 15 dias para decidir se acolhe ou não a denúncia apresentada pela promotoria militar. O caso veio à tona depois que o próprio jovem revelou a um sargento ter sofrido a violência dentro do alojamento. Caso a denúncia seja aceita, o processo transformaria o denunciante, na prática, em acusado do crime que ele próprio denunciou.

Laudo diz que jovem jamais poderia ter ingressado no Exército

Paralelamente, os representantes do jovem violentado, que se veem na iminência de serem transformados em advogados de defesa, receberam laudo psiquiátrico que afirma, com todas as letras, que o soldado não poderia sequer ter sido admitido para serviço militar. O motivo: é portador de retardo mental moderado, associado a déficit de atenção e hiperatividade. “Não se trata de personalidade histriônica ou com desvio de conduta, e sim de antecedentes de hiperatividade e mente imatura por atraso em seu desenvolvimento mental normal”, acentua o documento, obtido com exclusividade pelo Sul21.

De acordo com o laudo, o jovem apresentava desde a infância sintomas de hiperatividade e dificuldades na escola, coerentes com o quadro de um jovem com o transtorno. Não foi, porém, diagnosticado na época como portador de deficiência, ainda que relatórios solicitados junto às escolas que frequentou comprovem que ele era “imaturo para a idade”, não aceitando as repreensões dos professores e sendo reprovado em praticamente todas as disciplinas.

A inadequação do soldado mostrou-se desde os primeiros dias no quartel: ainda que se esforçasse, era incapaz de cumprir as tarefas designadas, o que acarretava punições a todo o grupo, dentro da lógica da caserna. As punições, aliadas ao retraimento do soldado e o preconceito pelas roupas que gostava de vestir, fizeram com que sofresse uma série de abusos e ameaças. “Refere que, no campo, errava tudo”, diz o laudo médico, usando expressões do próprio soldado. “Relata que muitos soldados passavam lhe chamando de gay, alguns passavam a mão em suas nádegas, que ia pagar por fazer todo o pelotão pagar pelos erros dele. Está com muito medo, medo de sair para a rua, o que vão pensar dele, que vão rir da cara dele, de não querer mais voltar ao quartel e não querer mais ser militar”. Há relatos de tratamento humilhante, como situações em que o jovem teve que usar roupas encharcadas ou rastejar no barro após falhar no cumprimento de tarefas.

Pedindo exames mais aprofundados para confirmar o diagnóstico de forma definitiva, o laudo diz que o soldado violentado é incapaz “em definitivo” de exercer atividades da vida militar. Isso, de acordo com o psiquiatra responsável pelo laudo, “deveria ter sido identificado desde o início de sua inclusão nas fileiras do Exército, em fevereiro deste ano. Certamente que não foi encaminhado para avaliação médica, assim como foi ignorado que o mesmo tinha alteração em seu desenvolvimento mental, conforme verificado com pareceres das escolas (que frequentou)”.

A partir do laudo, os advogados pleitearão que o jovem é inimputável, já que não apresenta condições mentais de enfrentar julgamento. Além disso, entrarão com ação na Justiça comum contra o Exército e a União, sustentando a versão que trazem desde o início: de que o soldado de 19 anos foi violentado pelos colegas e que o caso foi abafado pelo MPM. A ação independe da existência de outro processo na Justiça Militar.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora