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11 de maio de 2011
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19:45

“Os gaúchos empunharam a bandeira da democracia”

Por
Sul 21
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“Os gaúchos empunharam a bandeira da democracia”
“Os gaúchos empunharam a bandeira da democracia”
Educação: a grande meta de Brizola - Foto: Reprodução

João Batista Aveline

Pertenço a um partido político, o Partido Comunista Brasileiro, que nas eleições que levaram Leonel Brizola ao governo do Rio Grande do Sul, em 1958, orientou seus militantes, amigos e simpatizantes no sentido de que votassem no candidato do PTB de então, que nada tem a ver com o PTB de hoje, já que tem como sucessor o PDT, tudo por obra das articulações de um certo senhor chamado Golbery do Couto e Silva, segundo dizem.

Na época, era moda repudiar os votos dos comunistas. Segundo as opiniões dominantes, os comunistas davam votos por um lado e tiravam por outro. Havia até políticos que pediam nossos votos mas queriam que tudo fosse feito às escondidas, como se pudessem haver campanhas eleitorais secretas. Leonel Brizola repudiou os nossos votos, como mandava o figurino mais reacionário daquele tempo. Foi mais além Leonel Brizola. Vencedor, recebeu várias manifestações de felicitação e regozijo pela sua vitória. Entre tais manifestações, estava o telegrama da direção do PCB, que o novo governador devolveu solenemente.

Na resposta ao repúdio, os comunistas disseram que seus votos independiam da vontade de Leonel Brizola, e que era do interesse do povo gaúcho a sua eleição, isto porque ele, como político, estava situado dentro de um esquema de forças que era o que mais convinha aos interesses do Estado. O Rio Grande do Sul, seguindo uma velha tradição política, se dividia, então, em dois grandes blocos: de um lado a chamada Frente Democrática, integrada pela UDN, a velha e matreira União Democrática Nacional, raposa aparentemente moderna, mas no fundo bastante conservadora; o Partido Social Democrático (vejam bem: não é democrático social), o manhoso PSD (o PSD mineiro foi a requintes. Segundo alguns cronistas políticos da época, nunca começava uma reunião, sem que antes tudo estivesse resolvido), rural e reacionário, embora discreto; e o Partido Libertador, de Raul Pila, um partido carrancudo que colocava a salvação do Brasil na dependência da adoção do sistema parlamentar de governo.

Na outra ponta desta política bipolarizada, estava o bloco populista integrado pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o velho PTB; o PSP, Partido Social Progressista, de Ademar de Barros; e o Partido de Representação Popular, o PRP, direita juramentada, herdeiro da antiga Ação Integralista Brasileira, que depois da democratização do País em 1945, após a guerra e a derrota do nazi-fascismo com a participação da Força Expedicionária do Brasil, não teve coragem de vestir novamente a camisa verde do fascismo caboclo, mudando de nome, mas conservando nas direções os mesmos quadros do anterior movimento dos galinhas verdes, assim apelidado pelo povo. O PRP, além de reacionário, era o que de melhor existia em matéria de oportunismo político. De quatro em quatro anos mudava de lado. Assim, serviu o governo Brizola, como antes havia servido o de Ildo Meneghetti. A tática era a mesma. Quando o governo, onde estavam, ia chegando ao fim, os integralistas divergiam e passavam para a oposição. Em seguida, subiam nos palanques junto com
as novas forças políticas que iam ocupar o Palácio da Praça da Matriz. A Secretaria predileta era a da Administração. E uma ou outra Autarquia.

Além dos dois blocos corriam por fora socialistas e comunistas, sem grandes chances. Naquele ano de 1958, o PCB, clandestino, decidiu apoiar Brizola pelas razões já expostas. De nossa parte, mesmo com o repúdio e a indelicadeza da devolução do telegrama de felicitações, não houve nenhum motivo para arrependimento pelo voto dado ao governador eleito. Pelo contrário, o próprio Leonel Brizola tratou de provar que o voto comunista tinha sido correto, pelo governo que realizou e pelos seus resultados. Não bastasse esse dado, há um outro muito forte sobre o qual falaremos agora.

Era o mês de agosto. Um mês que por tradição era ruim para o País. Dentro destes 30 dias de agosto aconteciam as coisas no Brasil, geralmente golpes de Estado, crises políticas e ameaças. O mês era tão propício para a confusão, que no fim dos anos 50 e início dos anos 60, Carlos Lacerda, o mais autorizado porta-voz do golpismo udenista, lançou um slogan: “Agosto vem aí …”

Pois bem, naquele agosto de 1961, Jânio Quadros, que havia sido eleito presidente da República com uma espetacular votação, depois de sete meses, em pleno delírio, renunciou ao cargo no dia 25, Dia do Soldado. A crise envolveu a Nação inteira. Jango era o vice-presidente, consequentemente, o substituto legal, sem discussão, se não estivéssemos em pleno agosto e numa República sul-americana. O vice-presidente João Goulart estava na China, cumprindo missão do governo brasileiro. Os três ministros militares, Odilio Denys (Guerra), Sílvio Heck (Marinha) e Grün Moss (Aeronáutica), fincaram pé: “Jango não assume”. Foi aí que Brizola passou a ser personagem da história, comandando a resistência, num combate que uniu a Pátria brasileira.

Mata-Borrão: local de inscrição de voluntários na luta pela legalidade constitucional - Foto: João Alberto Fonseca da Silva/CMPA

A cidadela da resistência era o Palácio Piratini. Era o símbolo. Entretanto, em todos os quadrantes do Estado a luta era uma só. A palavra de ordem: resistir. Os gaúchos empunharam a bandeira da democracia. Brizola criou a “Cadeia da Legalidade”. Dela participaram todas as emissoras gaúchas. Algumas nacionais também se tornaram porta-vozes. Nos porões do Palácio Piratini, na sala de imprensa, funcionava a redação. Dali saiam os comunicados, as notícias, as entrevistas. Brizola periodicamente ocupava o microfone. Na técnica, o engenheiro Homero Simon, um excelente profissional da engenharia eletrônica. Também locutores e jornalistas se colocaram a serviço da Legalidade. Não há exagero se dissermos que quase ninguém de rádio e jornal ficou de fora. Mesmo alguns que tinham divergências com Brizola entenderam que acima das diferenças, o que estava em jogo era a democracia. A legalidade constitucional precisava ser mantida a qualquer custo. Isto acontecia, este apoio dos profissionais de imprensa, as tarefas que cumpriam no Piratini, se davam sem prejuízo dos afazeres nos seus jornais ou rádios (televisão, naquele tempo, não existia no Rio Grande do Sul). Durante vários dias foi um sarilho. A gente ia lá de manhã. Checava as notícias que tinha colhido nas redações com as que chegavam ao Piratini. Depois voltava ao trabalho assalariado. Cumpria as obrigações e durante a tarde entrava e saía do Palácio.

Numa dessas andanças, à meia tarde, cheguei no portão principal e ouvi do oficial da Brigada Militar que controlava a entrada: “Está proibido o ingresso no Palácio”. Mostrei a minha credencial fornecida pela “Cadeia da Legalidade”, assinada pelo meu velho, querido e saudoso amigo Hamilton Chaves, dos bastidores da Rede, mas o oficial explicou: “Temos informações que o Palácio vai ser bombardeado e a ordem é para não entrar ninguém. Ou, então, se entrar, não sai”. Não sei se era bem esta a ordem. O fato é que o militar completou, expllcltando bem: o entra-e-sai não podia continuar. Quem estava dentro podia ir embora. Os da porta, advertidos. Deixou claro que o que não podia acontecer era entrar e depois pedir para sair.

Diante disso, só me restava entrar. Se não o fizesse, provavelmente iria me sentir constrangido no outro dia, pela manhã, na hora de fazer a barba (naquele tempo era com bastante espuma, navalha ou gilete, tudo na frente do espelho). E mais: se entrasse não teria cara de voltar mais tarde e dizer ao mesmo oficial que queria sair.

Foi assim que, naqueles dias de agosto de 1961, passei uma noite no Palácio Piratini. Dá para entender que naquele casarão, em tempo de guerra, repleto de jornalistas, a boataria era o ingrediente mais gostoso que fervilhava no caldeirão da resistência democrática.

Tancredo e Jango

A noite passou rápida. O ronco de um ou outro avião na madrugada fria de agosto não chegava a assustar. Nos primeiros clarões do dia que começava, parece que o ar da manhã tinha cheiro de vitória. De fato, naquele dia seguinte, subia as escadarias de mármore do Palácio Piratini o general Machado Lopes, comandante do III Exército, que, sensível aos sentimentos do povo brasileiro e à determinação dos gaúchos, vinha dizer a Brizola que ele também estava do lado da legalidade. A batalha estava começando a ser ganha. Jango, da China, voou para o Uruguai. E foi em Montevidéu, na Embaixada brasileira, que recebeu de Tancredo Neves a solução para o impasse: seria adotado o parlamentarismo. Isto significava que João Goulart governaria sem poderes. Estes o povo devolveu a Jango no histórico plebiscito em que mais de 90% do eleitorado brasileiro disse não aos golpístas e sim a João Goulart.

A desmobilização começou. O Palácio Piratini foi se esvaziando. Do Mata-Borrão (prédio de madeira com formato de mata-borrão antigo, daqueles que balançavam sobre as escrivaninhas dos nossos avós) eram retirados móveis, mesas e cadeiras, camas de campanha, e os livros de alistamento militar voluntário “para uma nova arrancada de 30”, conforme prognosticavam alguns.

O desfecho não contentou a todos. Muitos criticaram João Goulart. Chamaram-no de conciliador. Foi a saída que ele aceitou trazida de
Brasília por Tancredo Neves, este mesmo Tancredo que, recentemente, foi o homem em torno do qual se aglutinaram todas as forças democráticas do País, atribuindo a ele, na praça pública, pelo clamor do povo, a missão de ocupar a Presidência da República pela via do Colégio Eleitoral.

No plebiscito de seis de janeiro de 1963, que devolveu os poderes presidenciais a Jango, está claro que o povo concordou com a solução do parlamentarismo provisório de 1961. Era a maneira de contornar a crise e fraudar os objetivos golpistas das elites brasileiras mancomunadas com o imperialismo norte-americano.

A solução de Jango aparou o golpe de I 961 , que viria a ser desfechado em 1964 e que tantos prejuízos causou à Nação. Pelo menos retardou por três anos a desgraça que se abateu sobre o povo brasileiro.

Manifestão em frente ao Piratini - Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa

A grande experiência histórica desta jornada em favor da democracia é que só a mobilização popular pode conter o braço armado dos golpistas. O povo, a classe operária e seus “Batalhões de Trabalhadores” desfilando pelas ruas de Porto Alegre, as manifestações da Praça da Matriz, as multidões nas ruas, foram capazes de arrefecer a brutalidade das forças retrógradas encasteladas nas cúpulas das elites dirigentes brasileiras. Até mesmo o que se chamou de conciliação de Jango e Tancredo, só foi possível porque os generais perceberam que atrás dos negociadores estava o povo disposto a evitar que a democracia fosse violada. Em resumo: os trabalhadores, a juventude, as mulheres foram a figura central deste episódio que já está nas páginas da nossa história. E este capítulo foi escrito nas ruas, no rnovirnento, nas lutas, na mobilização de todos. Isto aconteceu outras vezes, recentemente. E um de seus atores principais foi o mesmo Tancredo Neves, o que revela um povo lúcido, sabento capitalizar experiências e aplicando-as quando se faz necessário.

* Na época, João Batista Aveline, já falecido, era editor sindical da Última Hora. Trabalhou em diversos jornais de Porto Alegre. Foi um dos editores de Zero Hora e editor responsável da Voz Operária.

Este texto foi publicado no livro Legalidade — 25 anos, a Resistêcia Popular que Levou Jango ao Poder, editado pela Redactor, em 1986


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