Por Raul Ellwanger (do livro Nas Velas do Violão)
Eu e muitos outros músicos fizemos inumeráveis apresentações de solidariedade latino-americana, em muitos países, muitos momentos, muitas situações. Ironicamente, a primeira em que participei foi de apoio à democracia no Brasil, realizada na semana de 7 de setembro de 1971, na Peña de los Parra, na Calle Carmen, em Santiago do Chile. Entre o Rio da Prata e o Caribe, tivemos muito material que cantar devido às mazelas sociais e políticas, assim como nossos cartunistas tiveram muito material para ironizar as ditaduras locais.
Esta canção nasce do espírito desses encontros, sempre feitos a pulmão por voluntários e sem cachês profissionais. Cantamos e tocamos nela um total de sete músicos de cinco países, plasmando num fonograma, se isto é possível, nosso abraço fraterno mais além das fronteiras físicas. Chamados em 1985 para o festival da cidade de La Paz, em Canelones, no Uruguai, tivemos o privilégio de por algumas horas estar reunidos no estúdio La Batuta, sob a liderança do poeta Atilio “Macunaíma” Pérez Da Cunha.
Devoto, poeta e contestador, Ernesto Cardenal é o verdadeiro tema literário da música, em cujo início a burocracia da igreja já leva sua cutucada. Logo o sacerdote é pintado no seu recolhimento, orando pela pátria agredida à força desde dentro e desde fora, naquele momento sofrendo uma guerra civil insuflada do exterior, após anos de combates pela liberdade. Sua opção pelos pobres, seu cargo de ministro, sua ação pastoral de adagas afiadas, traçam um pouco o perfil desse fascinante cidadão da América. Segue a invocação do refrão, que ao final será cantado por todos na forma poderosa de cânone, como convém quando tratamos com sacerdotes, com exclamações pacifistas ao fundo.
Paz pra Nicarágua
Raul Ellwanger
Gosto do Senhor Cardenal
Um padre que luta contra a força burra da igreja oficial
No silêncio do claustro, está rezando exausto
Pedindo a deuses e santos, pedindo a homens e astros
Paz pra Nicarágua, paz pra Nicarágua
Gosto do senhor ministro
Cantador dos pobres que nos paços nobres
É muito mal visto
Gosto desta faísca, deste risco de luz,
Viva o padre que arrisca, como Cristo Jesus
Paz pra Nicarágua, paz pra Nicarágua
Imaginemos Manágua
Cercada de bombas, marines e contras, sem pão e sem nada
E o pastor das navalhas afiando as palavras
O sacristão das adagas
Derrotando as batalhas
Paz pra Nicarágua