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2 de janeiro de 2019
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14:20

Meus inimigos estão no poder

Por
Sul 21
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Meus inimigos estão no poder
Meus inimigos estão no poder
Jair Bolsonaro chega ao Congresso para solenidade de posse | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Mauri Cruz (*)

Meus inimigos estão no poder. Mas ainda não é possível saber quanto mal eles pretendem e podem fazer. O que fizemos e prá quem fizemos, ainda está e estão aí. Há uma retórica da maldade mas me atrevo a crer que não será assim, de supetão, pelo discurso do ódio e da eliminação que as coisas irão acontecer. É certo que estão em risco a saúde, a educação, a assistência social, a soberania de nosso território, a segurança alimentar e os direitos das trabalhadoras e trabalhadores. Mas será preciso um processo real de desmonte e de eliminação de tudo o que foi construído. Isso dá trabalho e leva tempo. E enfrentará nossas resistências.

Meus inimigos estão no poder. Mas, afinal, quem são eles? Terão todos as mesmas capacidades, os mesmos interesses? Haverá contradições entre eles que podem e devem ser exploradas para dividi-los? Hoje mesmo li ótimo artigo de Ângela Alonso [1] que nos alerta que este campo que pavimentou a vitória da extrema direita nas eleições de 2018 é amplo e sedimentado. Está na base da sociedade brasileira há vários anos. Não é um movimento passageiro e tem um ativismo forte em todas as classes sociais. Apesar disto, não é tudo a mesma coisa e nem mesmo o bloco político que assumiu a presidência representa sua expressão mais consistente.

Diz que podemos identificar pelo menos três segmentos distintos que se movimentam com interesses e motivos nem sempre homogêneos. Há o bloco da moralidade e dos costumes liderado principalmente pelas igrejas e religiosos que tem no combate as agendas chamadas “liberais” seu principal alvo. Este bloco precisa de um estado que intervenha nas agendas morais, que controle as políticas culturais e da educação; há o bloco dos neoliberais que tem com centro a economia e é liderado por segmentos liberais e anarcoliberais que são contra qualquer expressão de estado, querem a redução de impostos e a privatização de todas as dimensões da vida. Não tem uma preocupação moral; e há o bloco das “instituições” liderado por militares e servidores do judiciário que tem um projeto de poder corporativo, de interesse de classe. Tem como foco, eliminar seus inimigos, as esquerdas e os movimentos sociais, e “tomar posse” da maior parte das riquezas nacionais oferecendo ao capital internacional como moeda de troca de sua permanência no poder. O que uniu estes grupos foi a narrativa antisocial, anticorrupção e antiesquerdas, ou seja, uma narrativa de negação e não de afirmação. Estes grupos estarão num mesmo governo tendo que resolver seus interesses na prática. Isso também dará trabalho, levará tempo e terá resistências.

Meus inimigos estão no poder. E meus amigos e aliados ainda estão bem confusos. Não entenderam direito o que está acontecendo e seguem agindo como se o cenário e o ambiente ainda fosse aquele anterior a 2013. É preciso reconhecer que há uma mudança qualitativa na luta de classes no Brasil e no mundo. E, parte desta mudança é que, no lado da direita, há um ativismo real nas bases das sociedades que enxerga as pautas de extrema direita como sendo a saída para seus problemas. O inimigo deles está declarado. É a agenda social, denominada como comunista e/ou socialista e os movimentos e partidos que defendem esta agenda. Ativismo quer dizer que, em todos os espaços onde eles estão, inclusive familiar, e levam sua “verdade”, sua narrativa, suas propostas. Eles não medem esforços para defender seus objetivos e interesses. A estratégia de desqualificá-los, zombar deles, tentar inferioriza-los intelectualmente, nada disso tem efeito prático. Pelo contrário, apenas consolida a divisão da sociedade. Divisão essa que, neste momento, nos coloca em posição de minoria.

Já, parte dos partidos de esquerda, não possuem mais aquele ativismo social. Há uma retórica da resistência. Vive de momentos de mobilizações ou de eleições. Isto porque muitas causas não mobilizam porque envelheceram, se desatualizaram. Há novas causas, ou antigas causas que não eram valorizadas, que não foram incorporadas ou foram apenas na retórica. A dinâmica de resistência segue sendo a mesma que resultou nas derrotas desde o impedimento da Presidenta Dilma, que não foi capaz de evitar a prisão do Presidente Lula e nem a derrota nas urnas em 2018. É preciso compreender o que está acontecendo para mudar estas estratégias de enfrentamento e sair da defensiva. E a agenda é aquela que nasce da luta de classes, a luta real por direitos. No dia-a-dia, no cotidiano das pessoas. Sim, daquelas pessoas que, iludidas, elegeram seu inimigo para governar. E, nesta hora, é preciso solidariedade e empatia e não deboche.

Meus inimigos estão no poder. E precisamos resistir. Resistir com inteligência, com unidade e força. E esta resistência precisa agregar parcela da sociedade que foi envolvida no discurso da mudança. A forma de alterar a correlação de forças é compreender onde está o centro da luta de classes e canalizar nossas energias para estes conflitos e contradições. Parece evidente que um dos conflitos centrais estão na disputa das riquezas naturais e seu papel na macro economia mundial. Há décadas a Amazônia e sua biodiversidade está sob ataque. Outras áreas com enormes jazidas de minérios nobres também. Por isso, a pressão sob as reservas indígenas e os territórios quilombolas. Da mesma forma, o controle sobre as reservas de água doce também serão um ponto de conflito. Há um grande interesse internacional sobre o aquífero Guarani e seu potencial econômico num planeta que está rumando a passos largos para um crise de água potável. Isso quer dizer que as agendas ambientais e territoriais são um elemento chave na retomada da ofensiva e há movimentos nacionais importantes que sabem disso e precisam de apoio e fortalecimento.

A luta de classes também está sendo travada nas grandes cidades. Um dos conflitos é entorno dos temas da moradia que sofre com a política dos grandes oligopólios da especulação imobiliária e de construção civil. O déficit de moradia só cresce e cada vez mais pessoas estão vivendo nas ruas. Esse contingente vai seguir ocupando espaços vazios e gerando cada vez mais conflitos e disputas concretas. Outro é a crise da mobilidade que é resultado de um complô entre a indústria automobilística com sistema financeiro que a viabiliza, a indústria do petróleo e as corporações de construção de estradas. As agendas do transporte público sob controle das grandes empresas privadas e com baixa capacidade de gestão dos poderes públicos é um elemento central. Por isso, a questão das tarifas que foi o estopim de 2013, segue sendo uma pauta potente e mobilizadora.

A luta de classes segue sendo o centro da luta feminista. Este modelo de desestatização que retira o estado da educação, da saúde e da assistência social vai querer transferir estas “tarefas” para as mulheres. Por isso, o discurso de que as mulheres devem ficar em casa. Não para serem rainhas do lar, mas para cumprirem com as tarefas que o estado capitalista não quer arcar com os custos. A agenda social, ou socialista como querem os novos donos do poder, é uma agenda que democratiza os custos dos impactos do próprio sistema capitalista. E nestas agendas, está a luta pelos direitos de igualdade das mulheres que, historicamente assumiram sozinhas as tarefas que são de responsabilidade do conjunto da sociedade. O feminismo e as lutas das mulheres nunca foram tão centrais como hoje. E as mulheres sabem disso e por isso estão na resistência.

Meus inimigos estão no poder. E a violência urbana e a pretensa luta contra o trafico de drogas é um território de luta de classes de difícil compreensão para as esquerdas. Talvez porque seja uma agenda contra os povos negros de periferia no Brasil e as populações oriundas dos povos indígenas das periferias latino-americanas. Parece óbvio que o tráfico de drogas é comandado por grupos das elites brancas e não pelos “chefes dos morros” e que não há tráfico de drogas sem algum grau de conivência dos sistemas de segurança. Manter uma agenda por segurança pública e uma classe média com medo das populações das periferias é uma necessidade para manter a dominação numa sociedade tão desigual. E é aqui que reside o centro da questão racial que não é de preconceito e sim de lugar na economia, lugar na sociedade, lugar no poder, lugar na história. A agenda racial sempre teve um papel central na luta de classes no Brasil e as esquerdas sempre tiveram muita dificuldade de entender isso. Aqui, o desafio é universalizar a luta por igualdade racial e, da mesma forma, tentar universalizar as agendas dos povos negros.

Meus inimigos estão no poder. Mas o mundo está mudando muito rápido e a revolução das tecnologias, da inteligência artificial, dos produtos e serviços sem intermediação da massa de mão de obra, muda a lógica de acumulação capitalista. Exclui milhões de seres humanos do processo produtivo. E eles não tem respostas para estas crises e suas contradições.

Meus inimigos estão no poder. Mas assumiram o poder através de um processo eleitoral e sob o manto de uma Constituição Cidadã. Eles assumiram o poder mas nenhum poder é absoluto. Há regras a serem cumpridas. Há interesses a serem atendidos. E nós continuamos aqui. E somos muitas causas. E sabemos aprender com nossos acertos e com nossos erros. Podemos construir uma frente ampla, e democrática real, com novos protagonismos. Se são novas lutas que estão no centro da luta de classes é preciso que hajam novos protagonismos.

A história da humanidade é a história da luta de classes. E, sempre, em todas as eras, houve quem escolheu aderir ao sistema de poder injusto e desigual e quem optou em lutar por uma sociedade humana para todas e todos de forma igualitária e solidária. Nosso sonho é esse. Lutamos por liberdade para todas e todos, por igualdade entre todas e todos, pelos direitos humanos básicos como o direito a vida, a alimentação saudável, a moradia digna, a saúde de qualidade com acesso universal, a proteção das pessoas que dela necessitam, a educação pública e gratuita, a manutenção e proteção de meio ambiente em harmonia com o modo de vida. Meus inimigos estão no poder, mas o projeto deles não dá conta da dimensão dos sonhos do povo brasileiro. Esse poder não vai durar prá sempre. Então temos que resistir, preparando o futuro de tal forma que não cometamos os erros de nosso passado recente.

[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/angela-alonso/2018/12/2019-nao-sera-mera-reedicao-de-1964.shtml

(*) Advogado socioambiental, especialista em direitos humanos, professor de pós graduação em direito a cidade, mobilidade urbana e gestão pública.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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