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20 de novembro de 2012
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17:29

Virginia não iria gostar

Por
Sul 21
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A grande Virginia Woolf não gostava de romances panfletários. Criticava Huxley e as escorregadas rezingonas de Charlotte Brönte sobre a condição feminina. Já eu sou historiadora e, por vezes, me é impossível negar essa condição. Acho que jamais serei capaz de avaliar um livro apenas por sua técnica, por sua narrativa ou pela história que conta. Sempre me interessa ver um livro de fora: quando foi escrito, por que foi escrito, para quem foi escrito. Não estou criticando Virginia, de forma alguma. Ela foi uma grande crítica literária, o que não sou, nem ousaria. Por outro lado, há a questão do gosto, com o qual – embora se possa discutir – deve-se mexer com muito cuidado.

Acho que nesse ponto a formação tem um papel importante, e ainda maior do que lhe concedemos. O processo formativo, educacional, pode até ser transmutado ao longo de nossa trajetória, mas sempre haverá aquele canto que é impossível de se alterar. Se Virginia caminhou sempre na literatura, eu vim da história e isso muda radicalmente nossas percepções sobre os romances políticos, panfletários, que falam daquilo que (num dado momento) a sociedade – a meu ver – tem de ouvir ou, melhor dizendo, ler.

Por atentar a isso, os romances com apelo ao panfletário, não raro, me emocionam. Não leia isto acreditando que pretendo desmerecer as narrativas que não possuam esta pauta, o que seria uma tolice e uma inverdade. Porém, não nego que me encanta perceber nos romances panfletários o esforço de compreensão de uma época inteira e a definição de objetivos claros, o que (convenhamos) apenas uma minoria dos romances possui. Seus autores captam minha ternura, mas não pense que os vejo em menor qualidade, de forma alguma! É claro, admito que existam os que fazem isso com maior ou menor graciosidade: há os que são chatíssimos e há aqueles que os anos acabam por apagar a parte mais importante de seus textos: o seu contexto. Contudo, há os que permanecem imortais, como Dickens; outros são interessantes porque o estudo histórico de sua época, os complementa e eleva, como é o caso de Bernardo de Guimarães e sua Isaura.

E há ainda os que criam sobre sua paleta literária uma distopia que pega nosso cotidiano, distorce-o ao possível e o projeta. Há Fahrenheit 451. Há os 60 anos que nos separam de sua escrita. Há o futuro e o daqui pra frente.

Neste futuro, gente como eu, apaixonada por livros, é vista como fora de contexto. Existem os tablets, ora! Por que bibliotecas maiores nas escolas? Por que implantar o PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) nos municípios? Temos de estabelecer um computador por aluno, temos é de nos preocupar em preparar as crianças para seus futuros emprego e o que será exigido delas para operarem suas máquinas digitais! Ora, livros! No que eles ajudariam?

Em agosto concedi uma entrevista a um aluno do jornalismo e ele estampou na manchete: Nikelen Witter diz que os livros são elitistas. Não foi o que eu disse exatamente, é claro. Os livros não são elitistas. As pessoas é que os veem assim. É possível que o menino a quem concedi a entrevista tenha a vida inteira os percebido assim, porque desta maneira é que lhe foi dado a perceber. Tristemente, nossos administradores veem os livros de forma semelhante. É claro que você não os ouvirá dizendo isso em voz alta ou num discurso, ou mesmo por escrito. Porém, quando alguém defende computadores nas escolas antes dos livros, pra mim, é isso que ele está dizendo: os livros são supérfluos, coisa para quem pode dispor do ócio; são passatempos e, para isso, já temos as TVs e os jogos, que podem até ser educativos (ora, veja só!); livros ocupam espaço; as crianças não gostam de livros; os professores mal abrem todos os que o governo compra. Ora, dona Nikelen, você está querendo ler a vida dos alunos das escolas públicas a partir de sua confortável posição de classe média, de professora universitária. Os meninos e meninas de hoje precisam se preparar é para um mundo que exige trabalhadores qualificados. Livros? Livros pra quê, dona Nikelen?

A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e a língua são abolidas, gramática, ortografia pouco a pouco negligenciadas. A vida é imediata, o emprego é que conta, o prazer está em toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?” Fahrenheit 451, p. 85.

Ah, interlocutor, se tu soubesses o poder que dá um livro. Completá-lo, lê-lo de cabo a rabo, possuí-lo totalmente, gravá-lo em sua mente e carregá-lo a qualquer lugar. Observe uma criança de periferia, a maioria delas tem uma auto-estima baixíssima, acreditam que nada merecem, que não irão a lugar algum além da vida difícil dos pais. Faça-os ler, interlocutor. Faça-os ler e verá o que os livros podem fazer por eles. Porque, interlocutor, nada é mais revolucionário do que ampliar os sonhos e os livros fazem isso com uma eficiência que os computadores – meros instrumentos – tentam copiar sem ainda conseguir. Mas, é claro, ninguém quer revoluções, não é mesmo?

Resumos de resumos, resumos de resumos de resumos. Política? Uma coluna, duas frases, uma manchete! Depois, no ar, tudo se dissolve! A mente humana entra em turbilhão sob as mãos dos editores, exploradores, locutores de rádio, tão depressa que a centrífuga joga fora todo pensamento desnecessário, desperdiçador de tempo! Fahrenheit 451, p. 85.

Não foi o governo ou um decreto, explica um personagem de Fahrenheit. Os livros se foram porque as pessoas deixaram de julgá-los importantes, tomadas pelo turbilhão da vida alucinada. Porque passaram a vê-los como supérfluos, como algo que tirava as pessoas do conforto de suas mentes.

Nada mais simples e fácil de explicar! Com a escola formando mais corredores, fundistas, remendadores, agarradores, detetives, aviadores e nadadores no lugar de examinadores, conhecedores, criadores imaginativos, a palavra ‘intelectual’, é claro, tornou-se o palavrão que merecia ser. Por certo você se lembra do menino da sua escola que era excepcionalmente ‘brilhante’, era quem sempre recitava e dava as respostas, enquanto os outros ficavam sentados com cara de cretinos, odiando-o. E não era esse sabichão que vocês pegavam pra cristo depois da aula? Claro que era. Todos devemos ser iguais. Nem todos nascem livres e iguais, como diz a constituição, todos se fizeram iguais. Cada homem é a imagem de seu semelhante e, com isso, todos ficam contentes, pois não há nenhuma montanha que os diminua, contra a qual se avaliar. Isso mesmo! Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. Queime-o.” Fahrenheit 451, p. 89.

Amo Virginia Woolf, mas não posso concordar com sua opinião sobre a literatura panfletária. Precisamos dela. Precisamos dessas utopias e distopias que nos fazem pensar. Isso, porque, quando elas nos calam tão fundo quanto livro de Ray Bradbury em mim, é porque nossos piores demônios são libertados e saem à luz do dia. Eu queimaria com meus livros como a mulher da primeira parte do romance. Não pelos livros, em si – estes que são ditos supérfluos e destinados às elites com tempo para o ócio –, mas por não saber viver num mundo que não os tolerasse. Depois de sessenta anos, leio Fahrenheit 451 e sinto-me à beira da falésia, à margem deste precipício que Bradbury descreveu. Não pelos livros, não, não por eles. Mas pelos leitores. Pela falta que eles podem fazer ao mundo. Sem eles, os livros são meros objetos. Podemos queimá-los então.


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