Opinião
|
11 de março de 2017
|
03:00

Marchezan, tire suas mãos dos cobradores! (por Jorge Barcellos)

Por
Sul 21
[email protected]

As primeiras referências a cobradores no transporte público de Porto Alegre remontam ao Regulamento Interno da Cia Carris Porto Alegrense publicado pela Livraria Americana em 1929. Um dos raros exemplares disponíveis na capital é preservado no acervo histórico do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre e revela que os chamados de “condutores”, em oposição aos motoristas, denominados “motorneiros”, tinham como função principal “atender a perfeita comodidade todos os passageiros”. Isso significava arriar as cortinas em caso de chuva, atender os desejos e reclamações, dar atenção na hora do desembarque, cuidar dos “inconvenientes” e dar o sinal de parada e partida para o motorneiro.

Foto: EBC

A descrição das atribuições mostra que nas origens da função do cobrador está a ética do culdado: o cobrador nasce para cuidar do passageiro que habita o ônibus. Cuidar deriva do latim cogitare, que significa colocar atenção, mostrar interesse, modo que funda as relações entre pessoas e coisas, no caso, o serviço de transporte público e seu usuário. Nunca se tratou apenas de “dar o troco”, mas de uma sociabilidade semelhante as artes do fazer de que falam Michel de Certeau e Richard Sennet.

Por isso é revoltante a notícia de que o Prefeito Nelson Marquezan Jr quer extinguir o ofício, mais do velho projeto ultraneoliberal de demissão em massa e precarização dos serviços públicos sob a ilusão de redução de custos. Em São Paulo, o Prefeito João Doria também associa o aumento da tarifa a possibilidade de extinção dos cobradores dos ônibus, ideia que vem na cidade desde a administração Paulo Maluf (1993-1996), mas que, graças a resistência da categoria, nunca saiu do papel. Em São Paulo, há cerca de 20 mil cobradores. Para os sindicatos, a extinção do cobrador só vai piorar o transporte coletivo porque irá sobrecarregar os motoristas. Para Valdevan Noventa, presidente do sindicato de motoristas e cobradores de São Paulo, as viagens vão demorar bem mais porque o motorista terá atender aos passageiros no ônibus, uma das funções dos cobradores “estão só olhando o aspecto financeiro”, sentencia. (FSP, 6/2/2017).

Em nenhum momento Marchezan considera o aspecto humano da proposta. Para Dirceu Rodrigues Alves Jr, diretor de comunicação e do departamento de medicina de tráfego ocupacional Associação Brasileira de Medicina de Tráfego, o fim do cargo de cobrador só piora o sistema de transporte: “A economia do empresário reduzindo o número de funcionários joga no pobre motorista uma carga de trabalho, responsabilidade e susceptibilidade para desenvolver sinais, sintomas e doenças. Em curto espaço de tempo os mais resistentes estarão buscando os ambulatórios médicos com queixas as mais variadas. Certamente serão detectados distúrbios físicos, psicológicos, sociais e em consequência a necessidade de tratamento específico, bem como a necessidade de afastamento do trabalho. Aumenta o absenteísmo, surgem doenças ocupacionais… Combatemos a desatenção na direção veicular. Não só as desatenções produzidas pela tecnologia introduzida nos veículos que são responsáveis por acidentes. Torna-se impossível imaginarmos o motorista de um coletivo tendo sua atenção voltada para cobrar passagem. Receber dinheiro, notas ou moedas, contá-las, dar troco, preocupado para não errar, observar a subida e descida de passageiros são coisas incompatíveis que levam o homem a tensão, estresse e acidente.” – disse em artigo da associação.

Chama a atenção a indiferença do Prefeito a demissão dos trabalhadores. Esse enorme custo social é a demonstração da sua identificação com os interesses dos proprietários das empresas e não dos trabalhadores de transporte. Não é verdade que os cobradores ficam ociosos após a instalação de bilhetagem eletrônica: os cobradores ainda são importantes para auxiliar o motorista em manobras e para todo o tipo de ação. Não mudou muito sua função desde que foi criado há quase cem anos. Para o Adair Silva, do Sindicato dos Rodoviários de Porto Alegre, a função do cobrador vai além da fiscalização do pagamento. “Não tem condições. Nos ônibus diretos é uma coisa, nos que têm duas entradas, não tem como”, quer dizer, sobrecarrega do motorista que tem que se preocupar com quem pagou ou não passagem. E finaliza: “O cobrador ajuda quando tem cadeirante. Se não tiver cobrador, o motorista vai ter que descer do ônibus para ajudar?”, questiona. Machezan não desanima:”Minha pauta é o transporte público. Minha pauta não é gerar emprego”, assinala matéria no site Porto Alegre 24horas, afirmação que reforça a ideia de que seu objetivo é apenas reduzir o custo das empresas, melhorando suas margens de lucro.

Ônibus precisam de cobradores como no passado bondes precisavam de condutores porque é preciso cuidar dos passageiros no transporte público: motoristas não podem fazer tudo. É só ver os motoristas de lotações tendo de dirigir e atender ao mesmo tempo. Terminar com todos os empregos possíveis para ampliar o lucro é o sonho perverso do capital. O Regimento Interno da Carris, cuja existência este artigo revela ao público, é um documento notável para provar que não se trata apenas de cobrar a passagem: o cobrador é mais do que uma função qualquer, o documento prova que integra o elenco dos ofícios antigos da cidade de Porto Alegre e que inclui atividades como afiador de facas, relojoeiros, sapateiros, alfaiates, entre outros ofícios. Como os demais, ameaçados pelo processo de industrialização e consumo fácil e que lutam por sua sobrevivência, agora, soma-se a eles o oficio de cobrador, que vive seu momento de extermínio nas mãos do Prefeito Marchezan.

É o oficio do cobrador precisa ser preservado. Afirmo que tem raízes históricas na vida da cidade e defendo aqui que se trata de uma profissão integrante do patrimônio cultural urbano de Porto Alegre: por esta razão precisa ser preservado porque possui uma rica história a ser difundida composta por narrativas, histórias, tradições de solidariedade com o passageiro, episódios singulares ocorridos no interior do transporte e a visão da evolução deste sistema na cidade que só quem está no interior dos ônibus é capaz de registrar. Incentivar os cidadãos a valorizar os aspectos humanos do oficio é algo que não pode ser separado de uma visão patrimonialista “as máquinas se quebram ao perder o controle, ao passo que as pessoas fazem descobertas”, afirma o sociólogo Richard Sennet em sua obra O Artesão (2008).

É ingenuidade pensar que o capital irá diminuir o preço da passagem após as demissões, ele continuará aumentando para aumentar os lucros dos empresários. A extinção dos cobradores só trará problemas porque é um processo galopante de desumanização do transporte público. Perderemos um oficio que testemunhou a evolução urbana da cidade. È isso que queremos? Devemos lutar para surgirem empregos e não faze-los desaparecer como quer o Prefeito Marchezan. Nem tudo é economia. Cobradores cuidam de passageiros e motoristas dirigem. Se hoje permitirmos sua extinção, amanhã será a vez dos enfermeiros, cuidadores, aeromoças, etc. Aonde isso irá parar?

.oOo.

Jorge Barcellos – Doutor em Educação, autor de “Educação e Poder Legislativo”(Aedos Editora, 2014). Colaborador de Sul21, mantém a página Politica e Democracia no Jornal Estado de Direito.

Sul21 reserva este espaço para seus leitores. Envie sua colaboração para o e-mail [email protected], com nome e profissão.

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal, sendo de inteira responsabilidade de seus autores.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora