A acusação de assédio sexual registrada pela filha da deputada Bruna Rodrigues (PCdoB) contra um funcionário do consulado americano em Porto Alegre trouxe à tona um outro caso. Como noticiado nesta terça-feira pelo Sul21, a parlamentar informou que já existia uma denúncia de estupro cometido por outro servidor da organização no início deste ano. Em conversa com a reportagem, Rita*, de 44 anos, conta que foi dopada e violentada pelo homem na casa dele, em janeiro.
“Eu havia procurado a deputada Bruna quando ela publicou um post sobre o atendimento prestado pela Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam). O meu caso foi bem pesado, pois um funcionário do consulado americano me drogou e me violentou. Quando começa a ficar recorrente, não dá para ficar calada, esperando que eles façam novas vítimas. Se o consulado já tivesse tomado alguma ação quando eu fiz a denúncia, a Kamily [filha de Bruna] não estaria passando por isso”, disse Rita por e-mail.
A vítima afirma que conheceu o agressor por um aplicativo de relacionamento e que eles começaram a conversar em inglês. Os dois se encontraram pessoalmente no dia 18 de janeiro e foram para um café no bairro Bela Vista. “Durante todo o tempo em que estivemos lá, ele não demonstrou nenhum interesse por mim, nem tocou em mim. Dei uma carona para ele na volta. Quando entramos no carro, ele me beijou, mas eu fiquei constrangida e ele também. Chegamos em frente ao edifício dele, localizado no bairro Bela Vista, e ele me convidou pra subir. Achei que seria o momento de esclarecer o mal entendido do beijo, porque ele parecia ser um homem legal. Achei que ele queria só minha amizade”, relembra.
Rita conta que, já no apartamento, o homem perguntou se ela queria algo para beber e ela pediu uma bebida sem álcool, já que estava dirigindo. “Ele me deu uma água com gás que devia ter algum medicamento, pois logo em seguida meu corpo ficou sem reação. Ele tirou minha roupa, me levou para o quarto dele e me violentou. Eu não conseguia reagir, apesar de não ter apagado, e não conseguia me defender. Ele me bateu, me estrangulou e não usou preservativo. Ele virou um monstro”.
A mulher teria ficado inconsciente por alguns instantes e diz ter sido “praticamente expulsa” da residência quando acordou. “Eu me dei conta de que algo errado aconteceu, ainda questionei se aquilo foi violência. Ele disse que aquele tipo de relação era normal nos Estados Unidos e que nada ia acontecer com ele pelo fato de ele ser do consulado americano”, relata. Rita conta que ficou decepcionada e com raiva, ainda tentando entender o que o homem havia feito e por quê. “Num primeiro momento, eu não quis admitir que fui violentada, eu não queria acreditar que uma pessoa que parecia ser legal, parecia ser um amigo, de repente se transformou em um monstro. Tentei achar justificativas, até pensei que ele também tivesse tomado algum medicamento”, afirma.
A vítima diz ter voltado a contatar o agressor para pedir esclarecimentos. “No início ele até falava comigo, mas muito pouco, assuntos vagos. Talvez para ganhar tempo para que eu não me desse conta ou então para que eu não o denunciasse. Mas eu já estava ciente e tinha clareza do que aconteceu e pressionei ele. Falei que sabia onde ele morava e onde ele trabalhava. Ele me bloqueou”.
A denúncia do crime foi formalizada pela vítima na Deam no dia 4 de fevereiro, 17 dias após o encontro. Rita diz ter demorado para fazer o boletim de ocorrência porque tinha medo de ser desacreditada. “Tenho provas, como a roupa que usei no dia, mas na hora do ato estávamos só eu e ele. Fiquei com vergonha, não queria me expor”.
Ela afirma que, na delegacia, houve relutância em registrar a ocorrência porque o agressor não constava nos registros da polícia. Rita passou por um exame no Instituto-Geral de Perícias (IGP) que, pelo tempo decorrido entre o crime e a denúncia, não detectou nenhuma lesão ou material genético do acusado. “E nem foi marcada a perícia psicológica. Mas estou fazendo todo o acompanhamento médico, porque durante o abuso ele não usou preservativo”, afirma.
A advogada da vítima, Patrícia Saraiva, diz que o requerimento entregue por ela na delegacia, onde pedia imagens de câmera de segurança e coleta de demais provas, foi perdido. “Nós entramos em contato com o Ministério Público porque o processo estava andando a passos de tartaruga”, detalha. “A Deam deveria ser justamente um local de acolhimento. A pessoa já chega violentada e é tratada com descaso. As coisas poderiam ter tomado outro rumo se a Deam tivesse dado andamento ao caso, feito a captura das imagens, escutado algumas testemunhas e já subido isso para o Ministério Público. No judiciário, a coisa teria outro andamento”.
Cristiane Ramos, delegada responsável pelo caso, afirma que as imagens da câmera de segurança do prédio onde mora o suspeito já não estavam mais disponíveis quando foi feita a denúncia. “A vítima demorou mais de 15 dias para registrar a ocorrência policial. As imagens se perdem geralmente entre 5 a 10 dias, porque os sistemas de monitoramento de câmera que as pessoas usam regravam por cima, então quando uma vítima deixa de registrar logo que a situação acontece, nós acabamos perdendo [as imagens]. Também pelo fato de ela ter demorado para formalizar a denúncia, não foi possível aferir qualquer questão de bebida dopada, de exame toxicológico nela, porque depois de tanto tempo a gente não consegue mais verificar isso”.
A delegada nega que a vítima tenha sido desacreditada. “O atendimento é padrão para mulheres vítimas de violência de gênero, tanto a violência doméstica quanto os crimes sexuais. São policiais treinados que têm todo um rol de perícias, de perguntas, de atendimento padronizado para fazer. Rita não nos passou nenhuma reclamação”, afirma.
Já Rita afirma ter sido tratada com deboche. “Falei que iria enviar um e-mail para a embaixada americana, elas [as servidoras da Deam] até riram, falaram que ninguém ia ler”, diz a vítima.
O e-mail foi enviado por Rita para o consulado e, no dia seguinte, ela conta que dois investigadores da organização – um cidadão norte-americano que falava português e uma funcionária brasileira – foram até a sua casa. “Eles fazem perguntas bem complicadas, ao contrário da Deam, que tenta preservar a vítima, eles perguntam coisas muito íntimas. Pediram toda uma descrição de como era a casa do agressor, que cheiro tinha, qual a cor do chão. E perguntam várias vezes a mesma coisa para ver se tu vai te contradizer”, conta.
O suspeito saiu do Brasil logo depois, assim como no caso denunciado pela filha da deputada Bruna. “O consulado tira os agressores daqui com a justificativa de que vão abrir um processo administrativo. Mas, pela legislação brasileira, passa a impressão de que o ‘tiraram’ para que ele não precisasse responder. E não sabemos como o processo corre nos Estados Unidos, ficou um limbo jurídico”, diz a advogada de Rita.
“Parece que o governo norte-americano está protegendo o agressor”, desabafa a vítima.
A delegada Cristiane afirma que, no inquérito conduzido pela Deam, falta apenas o interrogatório do acusado, que já tem um prazo para ocorrer. “Nós o identificamos logo após recebermos a ocorrência”, diz.
O Consulado-Geral dos EUA em Porto Alegre enviou a seguinte nota ao Sul21:
A Embaixada e Consulados dos EUA tratam todas as alegações de conduta inadequada com extrema seriedade. Entretanto, não comentamos sobre assuntos internos. O Departamento de Estado dos EUA possui políticas rigorosas em relação à investigação e à resposta disciplinar apropriada a alegações de conduta imprópria.
Rita conta que intensificou seu acompanhamento psicológico, que antes era quinzenal e agora acontece todas as semanas. Além disso, passou a usar dois antidepressivos. “Nos últimos dias, eu precisei acionar [a terapeuta] várias vezes. Tomei remédio para dormir nas primeiras semanas, mas o medicamento me deixa muito mal, e eu preciso trabalhar”, afirma.
A Comissão de Cidadania e Direitos Humanos (CCDH) da Assembleia Legislativa abordou tanto o caso de Rita quanto o de Kamilly, filha de Bruna Rodrigues, nesta quarta-feira (24). Para a deputada estadual Laura Sito (PT), que preside a comissão, há semelhanças na abordagem dos dois casos pelo órgão diplomático norte-americano. “A sistemática do consulado em enviar esses homens de volta aos Estados Unidos demonstra que temos uma situação além do crime, que é diplomática. Não podemos naturalizar a ideia de que nossos corpos brasileiros são acessíveis e de que esses homens não estão passíveis à resposta da lei”, disse.
A delegada responsável pelo caso afirma que a única coisa em comum entre os dois acusados é a nacionalidade estrangeira. “É uma coincidência, não existe nenhum tipo de ligação entre os casos”, afirma. Ainda segundo Cristiane, o agressor de Kamilly já foi identificado e saiu do Brasil no mesmo dia em que a vítima fez a denúncia. “Nós estamos ouvindo todas as testemunhas que a Kamilly indicou. Não posso detalhar o teor dos depoimentos em razão do sigilo desse tipo de denúncia”.
Na terça-feira (23), a CCDH encaminhou com urgência um ofício ao Ministério das Relações Exteriores, à Superintendência da Polícia Federal e também ao Consulado Geral dos Estados Unidos solicitando informações a respeito das providências sobre a agressão sexual sofrida por Kamilly. Em conjunto, na data de ontem, as parlamentares da Casa assinaram um documento via Procuradoria da Mulher solicitando que o consulado americano contribua para a investigação do caso.
*Rita é um nome fictício utilizado para preservar a identidade da fonte.