50 anos do Golpe Civil-Militar
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28 de março de 2014
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10:53

“Aconteça o que acontecer, realizei o que queria”, afirma Jango na Central do Brasil

Por
Sul 21
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A escolha da Praça da República para o comício foi estratégica, porque ali poderiam desembarcar milhares de pessoas transportadas pelos trens da Central do Brasil | Foto: politica3unifesp.wordpress.com
A escolha da Praça da República para o comício foi estratégica, porque ali poderiam desembarcar milhares de pessoas transportadas pelos trens da Central do Brasil | Foto: politica3unifesp.wordpress.com

Rui Felten

Quando se colocou frente a uma multidão que chegou a ser calculada em mais de 200 mil pessoas, na noite de 13 de março de 1964, para proferir na Praça da República, em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, o comício em que anunciou um conjunto de reformas políticas, econômicas e sociais que pretendia fazer, João Goulart estava detonando um último tiro no próprio pé, que, enfim, o derrubaria do poder dezoito dias depois. O teor do discurso daquele evento – que tinha Leonel Brizola como mentor – ficaria para a História como o estopim para que os militares contrários ao governo de Jango se posicionassem na trincheira para golpeá-lo de vez e assumir o comando do Brasil, no dia 31 de março, em nome da reordenação econômica, da restauração da disciplina e do enfrentamento a uma suposta ameaça comunista da qual o país precisaria ser protegido.

Leia também: As tentativas que acabaram no golpe de 1964

Leia na segunda-feira (31): Militares dão o golpe sem enfrentar reação

A escolha da Praça da República para o comício foi estratégica, porque ali poderiam desembarcar milhares de pessoas transportadas pelos trens da Central do Brasil. A intenção de Jango era fazer deste o primeiro de uma série de grandes comícios. O último estava programado para o dia 1º de maio, em São Paulo, com a previsão de reunir 1 milhão de trabalhadores.

Jango falou depois de 15 oradores. O mais radical de todos foi Leonel Brizola
jango falou depois de 15 oradores. O mais radical de todos foi Leonel Brizola

Eram 19h44min quando João Goulart começou a falar, depois de 15 oradores – o último deles fora Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul e então deputado federal pelo PTB do Rio de Janeiro. Para a imensa plateia que se aglomerou em volta do palanque de 1,60m de altura para ouvi-lo, o presidente João Goulart declarou a determinação de desapropriar as refinarias privadas de petróleo e nacionalizar as empresas estrangeiras do setor, além dos segmentos de energia elétrica e químico-farmacêutico. Assegurou também a expropriação de terras improdutivas acima de 500 hectares e a desapropriação de terras de até 30 hectares localizadas a uma distância de até dez quilômetros das margens de ferrovias, rodovias e áreas públicas de irrigação de açudes, para viabilizar o plano de reforma agrária. “Como garantir o direito de propriedade autêntico, quando, dos 15 milhões de brasileiros que trabalham a terra no Brasil, apenas 2 milhões e meio são proprietários?”, destacou.

João Goulart desejava também a realização de um plebiscito, com o qual queria ver legitimada a convocação de uma nova Constituinte. Propunha ainda as reformas tributária (de modo a equilibrar a cobrança de impostos de ricos e pobres), urbana (com a desapropriação de imóveis que não estivessem sendo ocupados, para assentar a população carente), educacional (para combater o analfabetismo com a utilização do método Paulo Freire), universitária (eliminando a cátedra vitalícia), bancária (para garantir mais crédito aos produtores rurais) e eleitoral (assegurando o direito de voto aos analfabetos e aos militares de baixa patente, além da legalização do Partido Comunista Brasileiro).

Celso Furtado, então ministro do Planejamento, liderava a implementação das reformas de base | Foto: ebape.fgv.br
Celso Furtado, então ministro do Planejamento, liderava a implementação das reformas de base | Foto: ebape.fgv.br

Todas essas medidas faziam parte das chamadas reformas de base e contavam com a liderança do então ministro do Planejamento, o economista Celso Furtado, para serem executadas. Eram ações que atendiam às expectativas de uma parcela da população (especialmente esquerdista) e afrontavam os segmentos conservadores, onde se alinhavam militares e empresários.

Uma reforma administrativa pensada por Jango contemplava também o acesso de camadas mais pobres da população (e com menor escolaridade) a cargos públicos, como forma de oferecer a estas a chance de ascensão social. Isso tudo só reforçava a imagem de comunista que havia se desenhado em torno dele. No imaginário coletivo, disseminava-se a ideia de que Jango ameaçava instaurar no Brasil uma república socialista-sindical.

O filósofo, jurista e político brasileiro Roland Corbisier (1914-2005), que foi um defensor do desenvolvimento nacionalista e autor de Reforma ou Revolução (1968), entre outras publicações, escreveu que havia uma lógica e uma cronologia nas propostas das reformas de base. “Além de estarem inter-relacionadas, propondo uma reforma estrutural do Estado de forma integrada, havia uma ordem em que tais reformas deveriam ser implementadas para que todas fossem bem-sucedidas. A cronologia era a seguinte: reforma eleitoral, administrativa, tributária, agrária, urbana, bancária, cambial e, por último, a reforma universitária”, observa Thiago Aguiar de Moraes, ao citar Corbisier na monografia Os Discursos da Classe Empresarial Brasileira na Revista Democracia e Empresa do Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais do Rio Grande do Sul (1962-1964), que elaborou ao concluir, em 2009, o bacharelado em História na PUCRS.

Limite à remessa de lucros de empresas estrangeiras

Jango já havia estabelecido que as empresas estrangeiras instaladas no Brasil não poderiam remeter aos países de origem mais do que 8% do lucro obtido. O restante deveria ser investido aqui. Dessa forma, ele queria fortalecer o capital nacional e reduzir a participação estrangeira na economia. Era uma tendência com a qual os brasileiros já tinham convivido durante o governo de Getúlio Vargas e que logo depois, na gestão de Juscelino Kubitschek, havia cedido lugar a uma maior aceitação do capital internacional como fator de desenvolvimento.

No governo de JK, o capital internacional passou a ser aceito como fator de desenvolvimento | Foto: www.projetomemoria.art.br
No governo de JK, o capital internacional passou a ser aceito como fator de desenvolvimento | Foto: www.projetomemoria.art.br

Ao trazer de volta uma política com forte inclinação econômica nacionalista, Jango estava batendo de frente principalmente com os Estados Unidos, que terminaram oferecendo suporte ao movimento golpista contra ele – conforme atestam documentos da política norte-americana e de operações da CIA revelados em 2004. O ano de 1964 fazia parte de uma época em que se propagava que o que era bom para os Estados Unidos era bom para o Brasil. “E naquele momento, praticamente 20 anos depois de Getúlio, Jango estava retomando a política de nacionalização de setores importantes de infraestrutura, como a produção energética, que eram estratégicos para a economia estrangeira”, analisa o professor Enrique Serra Padrós, do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs).

Para Padrós, o que Jango defendia era um nacionalismo reformista, que nada tinha a ver com socialismo ou comunismo. Ou, pelo menos, esta não era uma questão concreta naquele momento. Na visão de Padrós, eram reformas que apontavam para o fortalecimento de diretrizes em busca de mudanças no perfil administrativo, econômico e educacional. E, sobretudo, para a reforma agrária, que sempre foi um tema polêmico no país, pela alta concentração de áreas rurais em propriedade de poucos – seguindo uma tradição que remete ao poder dos coronéis, como eram chamados os fazendeiros abastados que passaram a controlar a política a partir do início do período republicano, no final do século 19.

Para o historiador Enrique Padrós,  o que Jango defendia era um nacionalismo reformista, que nada tinha a ver com socialismo ou comunismo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Para o historiador Enrique Padrós, o que Jango defendia era um nacionalismo reformista, que nada tinha a ver com socialismo ou comunismo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Jango vislumbrava a reforma agrária como saída para garantir pedaços de terra aos camponeses que não tinham onde trabalhar e para conter a migração de pessoas do campo para as cidades. Não havia, no entanto, dinheiro público para compensar quem tivesse as terras desapropriadas. Foi enviado então ao Congresso Nacional um projeto de indenizações em bônus públicos federais, com base em avaliações dos imóveis. Mas o Congresso foi protelando a decisão.

“Aquilo era visto como extremamente agressivo, gerou incertezas e mobilizou as classes mais conservadoras”, diz Padrós. Ele acrescenta: “A reforma agrária, na verdade, representava uma dívida histórica do trabalhismo de Getúlio Vargas, que ajudou na inclusão do trabalhador urbano, com o reconhecimento de direitos, mas deixou para trás os camponeses. Essa dívida começava a ser resgatada com o governo Jango e, curiosamente, seria complementada no período da ditadura, quando se consolida o estatuto da terra iniciado no governo Goulart.”

Ergueram-se resistências também contra a reforma urbana. O projeto destinava-se a assegurar moradia adequada à população miserável que vinha se multiplicando há duas décadas em zonas urbanas. Mas, do mesmo modo que a reforma agrária, a possibilidade de desapropriação de imóveis desocupados para a realocação de pessoas carentes era recebida como ameaça à propriedade privada.

Leitura do discurso cede lugar ao improviso e à emoção

Logo que subiu ao palanque na noite de 13 de março, Jango enfatizou que era o presidente de 80 milhões de brasileiros e afirmou que desejava que suas palavras fossem bem entendidas por todos. “Vou falar em linguagem que poderá ser rude, mas sincera e sem subterfúgios. Será também uma linguagem de esperança de quem quer inspirar confiança no futuro e tem a coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade do presente”, avisou. Prosseguindo, disse que ali estavam os seus “amigos trabalhadores, vencendo uma campanha de terror ideológico e sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização deste memorável encontro entre o povo e o seu presidente, na presença das mais significativas organizações operárias e lideranças populares deste país”.

Maria Teresa Goulart lembra que Jango passou mal, ao acabar o discurso, e foi levado para o Palácio Laranjeiras | Foto: Ramiro Furquim
Maria Teresa Goulart lembra que Jango passou mal, ao acabar o discurso, e foi levado para o Palácio Laranjeiras | Foto: Ramiro Furquim

Ao encerrar sua fala no comício, Jango virou-se para a esposa, Maria Tereza Goulart, e disse: “Aconteça o que acontecer, eu realizei o que queria”. Às 21h15, ele se sentiu mal e foi levado para o Palácio Laranjeiras, deitado no banco traseiro do carro oficial e com a cabeça apoiada no colo da primeira-dama. Pouco antes de começar a falar, Jango já teria sentido um mal-estar, mas se recusado a obedecer à recomendação médica de que o melhor seria desistir e repousar. “O comício era uma vontade de que ele não abriria mão”, segundo Maria Tereza, que permaneceu ao lado do marido passando-lhe as páginas em que lia o pronunciamento. Ela recorda que, a certa altura do discurso, ele dispensou o texto e começou a falar de improviso. “Foi aí que falou com a alma sobre as reformas que pretendia para beneficiar as classes mais humildes”, lembra.

Por trás da expressão “aconteça o que acontecer”, usada por Jango ao concluir o discurso, estava o sentimento inevitável de que as reformas de base anunciadas só reforçariam o embate dos opositores à maneira como ele vinha conduzindo o país. E os conservadores e temerosos de que a identificação de Jango com o comunismo levasse o Brasil a ser acometido por uma revolução como a que ocorreu em Cuba, em janeiro de 1959, não demorariam mesmo a reagir.

O comício em frente à Central do Brasil ocorreu em um momento em que o ambiente nacional já se revelava mais favorável a uma derrota do que à vitória das pretensões de Jango e da possibilidade de levar o governo adiante. A inflação crescente elevava o custo de vida e gerava crise econômica. Trabalhadores faziam greves e as ruas eram tomadas por passeatas de protesto. Enquanto isso, o movimento estudantil também ocupava espaço nessa onda de rebelião, só que levantando voz a favor de um governo declaradamente de esquerda. “O movimento universitário entusiasticamente se voltava para a esquerda e o trabalhismo, e passava a gozar uma ascensão política. A União Nacional dos Estudantes (UNE) se engajava em um amplo espectro de atividades políticas, tomando posição em toda questão que aparecesse, desde as diretrizes políticas segregacionistas (apartheid) da África do Sul até a necessidade de reforma agrária”, escreveu René Armand Dreifuss em 1964: A Conquista do Estado – Ação Política, Poder e Golpe de Classe, uma tese de doutorado defendida por ele na Universidade de Glasgow (Reino Unido) e que resultou de uma pesquisa realizada entre 1976 e 1980.

Entre os apoiadores de Jango, estavam os estudantes universitários,  representados pela UNE
Entre os apoiadores de Jango, estavam os estudantes universitários, representados pela UNE

Nesse cenário, a insatisfação popular foi crescendo, até parecer incontrolável. Explodiu então uma campanha contra Jango, com a participação de partidos políticos, entidades representativas do empresariado, da igreja e da imprensa. Um fator, entretanto, contribuiu especialmente para que a convulsão avançasse para o golpe, segundo o professor Enrique Padrós: a interpretação de que a mensagem de Jango era de que as Forças Armadas deveriam ser reformadas e redemocratizadas.

“Nessa leitura – que já antecedia o comício -, havia a aposta na sindicalização e na organização política das baixas patentes militares. Faziam parte desse processo as mobilizações que vinham ocorrendo desde 1963, envolvendo marinheiros, cabos e sargentos do Exército”, afirma o professor. “Iniciaram-se ali movimentos de questionamento da falta de diálogo dentro das Forças Armadas, com a ideia de que existia uma cúpula que impunha o silêncio às instâncias hierarquicamente inferiores. João Goulart assume a luta dessas lideranças, e isso faz com que os militares de escalões mais altos que ainda não estavam do lado golpista passem a considerar o risco de intervenção do Executivo dentro da estrutura militar e migrem para o lado dos opositores a Jango.”

Testemunho de quem esteve ao lado do presidente no comício

O tenente-coronel da reserva Ernani Corrêa de Azambuja, 86 anos, esteve ao lado de Jango durante o comício de 13 de março de 1964. Na época, era capitão do Exército e um dos quatro ajudantes de ordens do presidente. Naquela noite, foi escalado para se encarregar da segurança de Jango. Mas não precisou intervir em nenhum momento, porque, conforme recorda, foi uma noite sem incidentes. “Muito me orgulho de ter estado lá. Foi um acontecimento muito forte, ainda mais pelo fato de o comício ter sido realizado em frente à sede do Ministério da Guerra. Jango estava inflamado e com a língua solta. Discursou muito bem, e o povo aplaudia freneticamente as reformas de base”, lembra Azambuja, que guarda até hoje bilhetes enviados pelo ex-presidente durante o período de exílio depois de ter sido deposto.

Ney Ortiz Borges esteve no comício da Central do Brasil: “Nunca vi coisa igual na minha vida" | Foto: Ramiro Furquim / Sul21
Ney Ortiz Borges esteve no comício da Central do Brasil: “Nunca vi coisa igual na minha vida” | Foto: Ramiro Furquim / Sul21

Também ao lado de Jango enquanto ele discursava, esteve o então deputado federal Ney Ortiz Borges, eleito pelo Rio Grande do Sul e líder da bancada gaúcha do PTB na Câmara. Hoje, aos 89 anos (completará 90 em 25 de junho), ele diz: “Nunca vi coisa igual na minha vida. Cheguei lá às 19h, e havia uma imensidão de gente. Foi lindo”.

Ele conta que, dias antes de Jango enviar ao Congresso Nacional uma mensagem solicitando estudo sobre as reformas de base propostas, recebeu pessoalmente do presidente uma cópia do documento. O papel é conservado como relíquia. Sobre as reformas pretendidas por João Goulart, o ex-deputado afirma: “Como é que Jango poderia ser comunista, como diziam, se era um dos maiores fazendeiros do país? O que ele queria era mudar as estruturas sociais e econômicas em benefício das classes mais pobres”.

Reforma agrária ganha destaque na reação contra reformas no Rio Grande do Sul

As reformas de base desenhadas por João Goulart geraram polêmica de Norte a Sul do Brasil. Mas no Rio Grande do Sul, por ser um estado ruralista, o debate em torno da reforma agrária ganhou uma dimensão particular. Conforme apontam os registros históricos, já no período pré-1964, a Farsul (Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul), entidade representativa da categoria patronal dos proprietários rurais, havia realizado a Concentração Rural de Santa Maria, para discutir o tema e elaborar propostas para a questão fundiária. Delegações de associações rurais de todo o Estado reuniram-se na Escola Olavo Billac, em Santa Maria, nos dias 6 e 7 de janeiro de 1962. Estimativas indicam que teriam comparecido mais de mil participantes.

As ideias da Revolução Cubana eram temidas pelos setores conservadores, como a Farsul
As ideias da Revolução Cubana eram temidas pelos setores conservadores, como a Farsul

“A Federação irá apresentar ali um projeto que vinha ao encontro das mudanças táticas que vinham ocorrendo, nas quais os setores das classes dirigentes, tanto norte-americanas quanto latino-americanas, em um contexto de aprofundamento da chamada Guerra Fria, reforçado pela Revolução Cubana, passaram a defender a reforma agrária como forma de solucionar os problemas fundiários. Contudo, defenderam [os ruralistas gaúchos] que esta deveria ter um caráter modernizante, e não distributivo, ou seja, preconizaram uma modernização da grande propriedade, e não uma distribuição de terras. Além disso, apontaram uma saída que visava à ocupação de terras públicas nas áreas com baixa densidade populacional”, escreveu Flávio Correia Nardy em um estudo universitário com o título Estado, Poder e Sociedade Civil: a Farsul e a Reforma Agrária na Concentração Rural de Santa Maria.

O trabalho, elaborado para conclusão do curso de graduação em História na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi orientado pelo professor Diorge Konrad, o Programa de Pós-Graduação, Licenciatura Plena e Bacharelado em História e do Departamento de História da instituição. Konrad, que é doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp, escreveu em um artigo intitulado Campanha da Legalidade, Luta de Classes e Golpe de Estado no Rio Grande do Sul (1961-1964), assinado em conjunto com Rafael Fantinel Lameira e publicado na Revista do Programa de Pós-Graduação em História, da Ufrgs, que a reforma agrária, certamente, foi o tema mais controverso em termos de debates acerca das reformas sociais que seriam chamadas de reformas de base.

Diorge Konrad: Farsul foi um dos setores fundamentais nas campanhas contra os comunistas e seus supostos cúmplices, Leonel Brizola e João Goulart
Diorge Konrad: Farsul foi um dos setores fundamentais nas campanhas contra os comunistas e seus supostos cúmplices, Leonel Brizola e João Goulart

Com relação a isso, os autores afirmam no artigo: “Não é difícil imaginar por quê. No caso do Rio Grande do Sul, estado que tem sua formação histórica, tanto econômica quanto política e culturalmente, baseada no latifúndio e na grande propriedade da terra, havia uma classe dominante ruralista muito bem organizada em torno do seu órgão de representação, a Farsul, entidade modelo e destaque na organização nacional, junto à Confederação Rural Brasileira (CRB). Aliás, a consciência dos interesses comuns, tanto dos latifundiários, que se autorreconheciam como ruralistas, quanto das classes dominantes no Estado são notáveis. Estes foram setores fundamentais nas campanhas contra os comunistas e seus supostos cúmplices, Leonel Brizola e João Goulart”.

Oposição a Jango predomina na imprensa gaúcha

As manchetes e os editoriais publicados pelos jornais de Porto Alegre, nos dias que antecederam o comício de João Goulart em frente à Central do Brasil e logo após o evento de 13 de março de 1964, também dão uma amostra de como as reformas programadas por João Goulart repercutiram no Rio Grande do Sul. O Diário de Notícias, pertencente ao grupo Diários Associados (de Assis Chateaubriand) colocou-se sempre em oposição às propostas de Jango. Já Última Hora, fundado por Samuel Wainer no Rio Janeiro,  e que era produzido e circulava também em outras cidades, como São Paulo e Porto Alegre, aprovava os projetos do presidente – como extensão do apoio ao trabalhismo de Getúlio Vargas, adotado pela linha editorial do jornal desde o primeiro número, em 12 de junho de 1951.

Três dias antes do comício, o Diário de Notícias afirmava se tratar de um chamamento à população organizado pelo Partido Comunista, o que soava como perigo aos olhos dos segmentos oponentes a Jango e dos leitores temerosos de que viesse a acontecer no país uma revolução semelhante à que ocorrera em Cuba cinco anos antes, quando Fidel Castro assumiu o poder.  Enquanto isso, no mesmo dia, Última Hora exibia na capa a manchete: Jango – revolução financeira para o progresso do Brasil, enaltecendo as medidas idealizadas por João Goulart.

Dia 12 de março, véspera do comício, o Diário de Notícias ataca as reformas de base em seu editorial, classificando-as de “extremamente perigosas para a ordem social”, e destaca como manchete:  Quase metade do Rio Grande do Sul está sujeita à desapropriação.  Segundo a matéria com este título, o Estado tinha 41,9% de terras em risco de serem expropriadas pelo governo de Jango.

Como contraponto, a Última Hora de Samuel Wayner novamente intercederia a favor das ações no dia seguinte, quando elas seriam anunciadas no comício. O jornal publicava em destaque, na primeira página, que a presença popular na Praça da República, onde Jango discursaria, teria proteção assegurada pelo Exército. “Mais uma vez, o povo em geral e as classes trabalhadoras, em particular, irão hoje à praça pública para defender as reformas sem as quais o Brasil não poderá avançar no caminho da emancipação e do progresso”, dizia o texto.

Última HOra - O povo com Jango começa as reformas

Após o comício, no dia 14, o título da matéria de cobertura do Diário de Notícias repetiu o tom amedrontador que vinha adotando em referência às reformas de base: Encampadas todas as refinarias. A Última Hora, por sua vez, chegou às bancas com a manchete: O povo, com Jango, começa a reforma.

Em uma análise das manchetes dessa época, que resultou na publicação de um artigo com o título A Imprensa Jornalística Porto-Alegrense e os Últimos Dias do Governo João Goulart, publicado na Revista do Historiador, o autor, Marcos Emílio Ekman Faber, escreve: “Os dois jornais porto-alegrenses eram representantes de formas distintas de pensar a política brasileira. O Diário de Notícias, representante das camadas conservadoras, combatia o regime com todos os argumentos possíveis e, por outro lado, o jornal Última Hora, defensor da política populista-nacionalista, apoiava o regime em vigor, pois era temeroso do que enfrentaria no caso da derrota do regime democrático, como de fato ocorreu, pois poucos meses depois do golpe de 64, o jornal fechou as portas”. A Revista do Historiador é uma publicação que divulga artigos baseados em pesquisas realizadas por estudantes de graduação e pós-graduação da Faculdade Porto-Alegrense (Fapa), oferecendo espaço também para trabalhos de alunos de outras instituições de ensino superior.

Breno Caldas : hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola| Foto: Reprodução
Breno Caldas : hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola| Foto: Reprodução

Com relação à empresa jornalística Caldas Júnior, o jornalista gaúcho Luiz Cláudio Cunha – ganhador de diversos prêmios pela cobertura de episódios políticos na imprensa brasileira e autor de livros com enfoques na ditadura militar – destaca: “Breno Caldas [então proprietário da empresa] cultivava uma previsível hostilidade contra as reformas de base de João Goulart e antipatia ainda maior contra o cunhado do presidente, Leonel Brizola, que na crise de 1961 requisitou sua rádio Guaíba para montar em torno dela a Rede da Legalidade, que brecou o golpe militar e garantiu a posse de Jango”.

Luiz Cláudio Cunha recorda que, em entrevista concedida ao jornalista José Antônio Pinheiro Machado em 1987, dois anos antes de falecer, Breno Caldas reconheceu publicamente que a tomada do poder pelos militares contou com a participação, “ou pelo menos com a simpatia”, da Caldas Júnior. “O pessoal que foi ao poder em 1964, não é que fosse ligado a nós – não tínhamos ligações políticas com ninguém –, mas eram pessoas afinadas conosco, estávamos no mesmo caminho”, revelou o empresário.


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