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14 de abril de 2024
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09:52

Município contrata advogado e antropólogo para contestar demarcação de terra indígena no RS

Sessão da Câmara de Vereadores de Vicente Dutra, RS, em 26 de março. No dia, os vereadores aprovaram por unanimidade o Projeto de Lei que destina R$ 140 mil de dinheiro público à associação privada. O PL foi assinado por Tomaz de Aquino Rossato, prefeito municipal.
Sessão da Câmara de Vereadores de Vicente Dutra, RS, em 26 de março. No dia, os vereadores aprovaram por unanimidade o Projeto de Lei que destina R$ 140 mil de dinheiro público à associação privada. O PL foi assinado por Tomaz de Aquino Rossato, prefeito municipal.

Desde abril de 2023, a Prefeitura de Vicente Dutra, no noroeste do Rio Grande do Sul, destinou R$ 225 mil para a contratação de advogados e antropólogo que questionam a demarcação de terras indígenas no município de menos de 5 mil habitantes.

No ano passado, a Prefeitura contratou o antropólogo Edward Mantoanelli Luz por R$ 85 mil. Neste ano, R$ 140 mil foram destinados à associação particular dos Amigos das Águas do Prado para custear advogados. Ambos os repasses ocorreram via projetos de lei aprovados por unanimidade na Câmara de Vereadores do município. Os esforços são para evitar a demarcação da Terra Indígena Rio dos Índios, que passará a ocupar 711 hectares.

 

Placa de identificação na chegada da Terra Indígena Rio dos Índios, em Vicente Dutra, RS. Foto: Foto: Claudia Weinman/A Fronte.
Placa de identificação na chegada da Terra Indígena Rio dos Índios, em Vicente Dutra, RS. Foto: Claudia Weinman/A Fronte.

Em 3 de agosto de 2023, o prefeito Tomaz de Aquino Rossato (MDB) enviou à Câmara de Vereadores o Projeto de Lei nº 2885/2023 que “autoriza a realização de despesas com contratação de serviços técnicos profissionais de antropologia, e dá outras providências”.

O art. 1º do projeto diz que “fica o Executivo Municipal autorizado a realizar despesas com a contratação de serviços técnicos profissionais de consultoria na área de antropologia para atualizar, produzir e completar todas as peças técnicas contestatórias necessárias para contestar, denunciar e combater às quatro reivindicações territoriais kaingang […]”.

Neste ano, em 21 de março, Rossato assinou o Projeto de Lei nº 2.926/2024, também enviado ao Legislativo. O PL “autoriza o Poder Executivo Municipal a celebrar Termo de Fomento com a Associação dos Amigos das Águas do Prado de Vicente Dutra, e dá outras providências”. O projeto destina R$ 140 mil para a associação “objetivando a conjugação de esforços para o custeio de despesas inerentes à promoção de ações judiciais em defesa de áreas de terras indígenas atingidas pela demarcação indígena”.

Em seus argumentos, o prefeito defende que, com a demarcação de terras indígenas, a Constituição está sendo violada e o turismo será atingido. Também afirma que a indenização proposta pela Funai é insuficiente, deixando os atingidos sem as devidas condições de se restabelecer; e que “a medida terá impacto social, econômico, judicial e até mesmo de segurança” em Vicente Dutra. No último dia 26 de março, os vereadores aprovaram por unanimidade o PL que destina R$ 140 mil de dinheiro público para que a associação privada contrate advogados. O processo visa contestar os documentos da demarcação. 

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul denunciou ao Ministério Público Federal (MPF) e ao Ministério Público Estadual (MPE) que os poderes Executivo e Legislativo do município têm se utilizado da máquina pública para realizar acordos impróprios, visando privilegiar empresas, escritórios advocatícios e pessoas físicas que estimulam os conflitos contra as comunidades indígenas.

 

Trecho do documento enviado pelo Cimi Sul ao MPF e ao MPE que denuncia o uso de dinheiro público para confrontar direitos indígenas.

De acordo com o texto da denúncia enviada ao MPE e ao MPF, “há flagrante descumprimento de finalidade em tal iniciativa, porque não cabe ao Poder Executivo Municipal, proceder o pagamento, com dinheiro dos munícipes – de todos eles, incluindo-se os indígenas – de ações judiciais de particulares, especificamente 70 (setenta) famílias”, e segue ao dizer que “essa proposta [de destinar 140 mil reais à associação], além de ser uma afronta aos indígenas e aos demais cidadãos e cidadãs de Vicente Dutra, é inconstitucional, porque financia-se com recursos municipais medidas judiciais de interesses particulares, privados, para afrontar os direitos indígenas e os interesses públicos da União.”

Um dos advogados contratados é Leocir Roque Dacroce, do escritório “LRD Advocacia”, situado no município de Palmitos (SC), a 45 km de Vicente Dutra. O escritório presta serviços advocatícios à Associação dos Amigos das Águas do Prado desde 2023, quando houve a homologação da demarcação da terra indígena, e segue de acordo com as demandas. Dacroce também é coordenador do Grupo de Defesa da Propriedade, e ligado ao agronegócio.

Em Pinhalzinho (SC), cumprimentando a todos os presentes na abertura da Itaipu Rural Show 2024, Dacroce disse que “o assunto [de sua fala], não é de muita simpatia, mas é um assunto de vital importância para a continuidade das nossas aspirações enquanto produtores rurais”. Nas palavras dele: “não vai adiantar nós investirmos tudo que temos investido, se nós não pararmos um momento para refletir sobre o futuro das nossas propriedades, sobre o futuro das gerações que nos segue”. Ele se referia à demarcação de terras indígenas.

O antropólogo contratado pela Prefeitura Municipal é Edward Mantoanelli Luz. Formado pela Universidade de Brasília, Luz diz que seu trabalho “busca um equilíbrio demarcatório”. O antropólogo foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 2013 “dada a sua postura não compatível com a ética profissional”. Apesar de repudiar denominações que não a de “antropólogo social”, Luz é conhecido em alguns meios como “antropólogo dos ruralistas”.

 

Perfil de Edward Luz na rede social X. Foto: Reprodução

 

 

Embora seu vínculo seja com a Prefeitura, ele indica que foi procurado por atingidos pela demarcação dias antes da homologação se consolidar, em meados de abril. Ao Sul21, Edward Mantoanelli Luz disse que o caso de Vicente Dutra “é só mais um dos desesperados despreparados [para enfrentar um processo demarcatório]”. Questionado sobre como foi o primeiro contato com os atingidos, ele indica que foi por mensagem e desconfia que seu nome tenha sido indicado pelo senador Luis Carlos Heinze (PP).

Trabalhando na investigação desde maio de 2023 – após uma reunião híbrida na Prefeitura de Vicente Dutra -, Luz afirma que “a fragilidade” do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), aprovado para demarcação, o motivou a aceitar a proposta. Após duas etapas presenciais na região, em julho e dezembro de 2023, ele entregou um “parecer técnico contestatório” e diz que esse documento gerou uma “vitória raríssima” na Justiça Federal. De forma direta, Edward Luz defende que o documento comprova que “não existia aldeia tradicional indígena” na região delimitada. O relatório que indicaria a suposta ausência da comunidade tradicional indígena ainda não foi tornado público. 

 

Ato de homologação de seis Terras Indígenas durante o 19º Acampamento Terra Livre (ATL), em 28 de abril de 2023.
Ato de homologação de seis Terras Indígenas durante o 19º Acampamento Terra Livre (ATL), em 28 de abril de 2023. Foto: Lohana Chaves/Funai.

Em 28 de abril de 2023, o governo federal anunciou a demarcação de seis Terras Indígenas (TI) durante o 19º Acampamento Terra Livre, em Brasília. As TIs homologadas estão localizadas nos estados de Alagoas, Ceará, Acre, Amazonas, Goiás e Rio Grande do Sul. O território indígena gaúcho a ser demarcado está localizado justamente em Vicente Dutra. Até poucos meses, a comunidade da etnia kaingang ocupava uma área de aproximadamente 2 hectares. A demarcação (feita em consideração à portaria declaratória de 2004) garantirá à comunidade uma área de 711 hectares que está sob posse de, aproximadamente, setenta famílias não indígenas. 

O processo de indenização às famílias que ocuparam de boa fé a área demarcada teve início nos meses seguintes à homologação. Durante esse processo comandado pela equipe técnica da Funai, a Associação dos Amigos das Águas do Prado e outras lideranças locais entraram com a ação pedindo o cancelamento da homologação e cessação imediata das ações indenizatórias. A Magistrada Federal da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, Dra. Maria Isabel Pezzi Klein, concedeu uma liminar suspendendo os trabalhos da Funai, que seguem interrompidos desde então. 

O conselheiro do Cimi Sul, Ivan Cima, entende que não seria tempo de questionar a demarcação, “mas, estranhamente, a Justiça Federal acatou”. O Conselho Indigenista Missionário contribui com assessoria jurídica à comunidade indígena Rio dos Índios. “O Cimi ingressou no processo a pedido da comunidade. Nossos advogados têm procuração no processo para atuar na defesa da comunidade. E a comunidade nunca foi citada adequadamente pela Justiça, porque eles sempre fizeram via whatsapp – o que não é legítimo”, explica Roberto Liebgott , coordenador regional do Conselho.

Mesmo com a interrupção, cerca de 80 hectares já estão em posse da comunidade kaingang, área indenizada pela Funai ao morador que aceitou o acordo antes da interrupção dos trabalhos. Segundo lideranças indígenas, a comunidade já fez a ocupação dessa área, mas há certa dificuldade em adaptar-se ao local, já que se trata de uma propriedade que mantinha criação de gado de corte e, por isso, a terra apresenta-se degradada.

 

Galpão em chamas em área a ser demarcada para comunidade kaingang, em Vicente Dutra. Foto: Lideranças da TI Rio dos Índios.
Galpão em chamas em área a ser demarcada para comunidade kaingang, em Vicente Dutra. Foto: Lideranças da TI Rio dos Índios.

O clima na região é tenso. Nas madrugadas de 13 e 14 de novembro de 2023, casas e galpões de famílias de agricultores que residem dentro da TI Rio dos Índios foram incendiadas. Em nota, o Cimi Sul relata que “tudo indica, pelo que consta inclusive em boletins de ocorrência registrados junto à delegacia de Polícia Civil de Vicente Dutra, que os atos são criminosos, praticados por pessoas que estão descontentes com a demarcação da terra e agem com violência como forma de retaliação às famílias que – livre e espontaneamente – estão dialogando e negociando com integrantes da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) as formas de indenização das propriedades e benfeitorias de boa-fé afetadas pela demarcação. […] Uma das propriedades atacadas por incendiários pertencia ao ex-prefeito de Vicente Dutra, Osmar da Silva. De acordo com o boletim de ocorrência, o senhor Osmar concordou em negociar e aceitou as indenizações propostas pela Funai”.

Equipes da Força Nacional foram deslocadas para a região em novembro passado, e permanecem realizando rondas no local. Atualmente, o processo de demarcação não tem data para ser retomado.

 

Restos de casa queimada no interior da TI Rio dos Índios. Relatos indicam que incêndio busca intimidar famílias que aceitaram ser indenizadas pela demarcação da terra. Foto: Lideranças da TI Rio dos Índios.
Restos de casa queimada no interior da TI Rio dos Índios. Relatos indicam que incêndio busca intimidar famílias que aceitaram ser indenizadas pela demarcação da terra. Foto: Lideranças da TI Rio dos Índios.

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