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1 de outubro de 2012
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08:55

Um passado que ficou às margens?

Por
Sul 21
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O passado colonial brasileiro é quase sempre lembrado como uma vivência amigável entre portugueses, índios e negros, miticamente considerados como as raças fundadoras da brasilidade. Assim, é com surpresa que o espectador se depara com a violência que emerge no olhar ao passado que Adriana Varejão expõe em “Histórias às margens”, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. A artista se enfrenta com a violência escondida sob um discurso civilizatório nesses séculos de vida colonial, perguntando-se: como assumi-la de forma crítica e através das imagens?

Adriana Varejão que surgiu no bojo da chamada “Geração 80”, retomando a pintura como possibilidade experimental é hoje uma das artistas brasileiras mais prestigiadas e bem cotadas no meio de arte nacional e internacional. Uma de suas telas “Parede com Incisões à Fontana” foi arrematada, num leilão da Christie’s, de Londres, em 2011, por R$ 3 milhões. Esse sucesso de mercado também é acompanhado de um reconhecimento da crítica especializada. Segundo Paulo Herkenhoff, na obra de Adriana Varejão “a história da arte serve para rever criticamente a pretensa totalidade da história que molda e é moldada pela arte”. Assim, colocando em crise o papel da arte como meta-discursos, a artista evidencia as contradições do modelo colonial. Apropriando-se de uma iconografia barroca, ela expõe as feridas e a volúpia em recortes complexos, que correspondam a novas proposições narrativas. A artista não constrói discursos, mas abre fendas na superfície desta realidade ficcional que é a história oficial, para que cada espectador possa construir sua própria versão desse passado.

Adriana Varejão, Carne à Moda de Franz Post (1996) | Foto: Vicente de Mello

Na mostra, que pode ser visitada no MAM de São Paulo até 16 de dezembro, estão expostas 39 obras, oriundas de vários acervos e instituições no mundo, além de três especialmente realizadas para essa exposição. São elas, um autorretrato em prato, um painel de 18 metros com 52 telas pintadas com motivos de plantas carnívoras, além de um panorama da baía da Guanabara em estilo chinês. Através da apropriação de elementos visuais incorporados à cultura brasileira pela colonização, como a pintura de azulejos portugueses, ou os temas chineses, a artista discute relações paradoxais entre sensualidade e dor, violência e exuberância. Em suas telas, ela fragmenta o espaço pictórico numa atividade obsessiva de desconstruçãoreconstrução, fazendo emergir os sentimentos contraditórios que estiveram envolvidos nesse processo histórico. Sentimentos que, presentes ainda hoje no imaginário da sociedade brasileira, justificam as dificuldades encontradas pelos historiadores em sua abordagem. Suas imagens falam de emoções contraditórias, de uma forma muito mais intensa e complexa do que o conseguem as análises de documentos de época. Impactante e sem oferecer versões definitivas, sua obra inspira explorações reflexivas.

Adriana Varejão, mural Carnívoras, 2012 (foto Sergio Guerini) | Clique para ampliar
Adriana Varejão, Panorama da Guanabara, 2012 (foto Sergio Guerini) | Clique para ampliar
Adriana Varejão, sem título, 2012 | Foto: Sergio Guerini | Clique para ampliar

Pode-se afirmar que, de alguma maneira, a perversa cadeia de dominação, que faz das elites locais, ao mesmo tempo, senhores e servos, se materializa na carne contorcida e fragmentada que emerge do interior de paredes que assépticos azulejos tentam esconder. As imagens, que aparentemente deveriam mostrar cenas de serenidade e beleza, não escondem a violência de acontecimentos que envolveram a exploração humana das mais diferentes formas. Pelo contrário, eles emergem pulsantes, sob as superfícies pintadas. A questão da sexualidade e da violência é latente em seu trabalho, o que impõe indagar sobre sua presença nesta sociedade e em seu imaginário. Ela torna visíveis os traumas que, socialmente, muitos se esforçam por esquecer, mostra de alguma maneira como a arte, enquanto representação – dispositivo imaginário – pode processar esta violência real de lembranças que se tornaram perversas e destruidoras pelo recalque de uma amnésia coletiva.

A obra de Varejão abre ao olhar do espectador um passado de dependência e dominação, no qual, ao mesmo tempo, as elites locais exerciam uma coerção implacável sobre os povos indígenas e africanos, e submetiam-se a uma subalternidade humilhante em relação aos seus pares europeus. Ela traz à tona um mundo colonial em que muitos povos foram dominados em uma cadeia perversa de sujeição e exploração. Processo que condicionou, no universo ideológico das elites, a aceitação do conchavo e do apadrinhamento como práticas louváveis, além de uma passiva aceitação da condição de periferia. Um passado construído sobre a exploração do trabalho escravo, que procura esconder a negritude da maioria da população, sob mascarados preconceitos raciais, que ocultam verdadeiras discriminações sociais. Dominação que ensinou a convivência com níveis de exploração do trabalho e de violência em relação ao ser humano que justificam uma presença, quotidiana, da miséria e da degradação. Escravidão, que construiu no imaginário social um desvalor do trabalho manual, com consequências funestas na estrutura produtiva e nas práticas artísticas.

Adriana Varejão, Cena de interior II, 1994 (foto Vicente de Mello)

Seus trabalhos encantam e repulsam, atraem e espantam. A artista, de forma capiciosa, aborda questões tradicionais da pintura, como cor, textura e perspectiva, com originalidade e com excelente qualidade técnica, ao mesmo tempo em que nos apresenta um passado que aprisiona o olhar e obriga a ver o que a maioria gostaria que não houvesse ocorrido. Adriana Varejão encontra-se entre os artistas que exercem o trabalho da falha e do lapso, reivindicando para a arte a presença do olhar. Tenta introduzir na simbolização um outro sentido, um outro endereçamento, recuperando seu papel na constituição do sujeito, a nível individual e social. Ela cria uma imagem ambígua, lidando com o que mostra e com o que esconde de seus sentidos. Nada está evidente,os sentidos somente se mostram em um segundo ou terceiro olhar.

A força expressiva das imagens supera qualquer relato descritivo dos fatos, e explorando à exaustão as ambiguidades do mundo colonial português a artista renova a tradição da pintura histórica, introduzido uma crítica radical, que se constrói através da fragmentação das imagens e da volumetria que faz surgir das entranhas das telas, como fendas na memória, de onde o recalcado emerge com toda a sua força.


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