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23 de dezembro de 2011
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19:11

Museu sensível, exposição feminista, arte de mulheres

Por
Sul 21
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É com curiosidade e expectativa que se percorre a mostra O Museu sensível, que se inaugurou dia 19 de dezembro, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, MARGS. Organizada no âmbito do projeto curatorial da nova diretoria, segue o mesmo modelo de grande coletiva, não cronológica, linear ou hierárquica das duas anteriormente realizadas. Esse tipo de proposta abre ao público inúmeras possibilidades de leitura, colocando-o em contato com uma diversidade de linguagens e tempos, o que exige um esforço reflexivo para obter uma melhor compreensão do que está sendo visto.

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A exposição, que propõe uma reavaliação da atual coleção do Museu, conta com obras de 132 artistas mulheres, todas pertencentes exclusivamente ao acervo do MARGS. Embora o curador, Gaudêncio Fidelis, afirme que o título da mostra está “longe de relacionar o feminino com características culturais historicamente construídas”, é impossível não conectar seu significado em relação às mulheres e suas obras. Como posicionar-se quanto a essas rotulações culturalmente estabelecidas? Negá-las, assumi-las ou buscar um caminho de superação dessas estereotipias?

A temática da ausência da participação feminina no campo artístico é bem antiga e tem grandes repercussões, principalmente nos EUA, onde os movimentos feministas denunciam essa situação com veemência. Um texto clássico desta discussão é Why Have There Been No Great Women Artists, de Linda Nochlin. Nesse texto a conclusão final da autora é de que a arte não é uma atividade livre, autônoma de um indivíduo super-dotado, mas sim negociada e determinada pelas instituições sociais específicas, sejam elas academias de arte, sistemas de patrocínio e mitos do campo artístico. As mulheres estão sujeitas a essas estruturas, e, assim como os demais indivíduos as condições de participação delas nessas estruturas passam pelo espaço que conseguem obter na sociedade como um todo.

Segundo o crítico de arte Paulo Herkenhof, entretanto, essa discussão não tem lugar no Brasil por que, aqui, a história da arte não pode ser escrita sem referenciar as grandes artistas mulheres que foram fundamentais nesse percurso, como Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Ligia Clark entre outras. A participação das mulheres em diferentes campos de trabalho tem uma larga trajetória de dificuldades e resistências, é possível que fato do meio de arte nacional ser pouco estruturado em termos profissionais tenha propiciado a significativa participação das mulheres. Afinal, não sendo este um campo muito concorrido, o sexo feminino encontrou menos competição e discriminação do que em outros.

A mostra do MARGS está, segundo o curador, centrada em obras e não em individualidades. A ideia é abrir espaço e valorizar a presença feminina no meio artístico gaúcho, apesar deste conjunto tão amplo e diversificado correr o risco de criar homogeneidades que simplificam a compreensão de produções ricas e complexas. A exposição exige do público uma visita atenta, com leitura detalhada das etiquetas de informação que acompanham cada trabalho, para evitar abordagens superficiais. Buscar o comprometimento do espectador pode ser uma interessante estratégia da instituição, entretanto, cabe ao público assumir esse desafio.

Diferentes tempos, categorias e tendências estilísticas convivem ao longo de qualquer percurso escolhido, numa afirmação da contínua e permanente participação das mulheres no universo da arte local. A exposição também documenta o crescimento no acervo do MARGS em 2011, com obras, em sua maioria, doadas pelas próprias artistas, como é já característico desta coleção desde a sua formação. A doação de artistas sempre foi a grande fonte de obras para o Museu – já em 1959, João Fahrion doou as duas excelentes gravuras de Käthe Kollwitz que se encontram expostas. Este fato evidencia a inexistência de políticas públicas de aquisição, diferentemente de muitos países onde a compra de obras é uma prática rotineira. Os artistas vivem, ou deveriam viver, de seu trabalho, pois sem essa possibilidade, a dedicação à arte é quase sempre descontínua.

Uma importante característica da mostra é a diversidade de categorias artísticas, com a predominância numérica da cerâmica, da tapeçaria e dos trabalhos sobre papel (desenho, gravura e fotografia). Considerando que, desde o Renascimento, a pintura e a escultura detêm uma posição hegemônica, sendo consideradas “artes maiores”, chama a atenção o pequeno número destas. É como se às mulheres coubessem as artes menores, que elas tornam maior com sua dedicação e competência.

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Na tapeçaria se destacam os trabalhos de Berenice Gorini e Zoravia Betiol, ambas de grande porte e datadas de 1977, dando um testemunho da importância que essa categoria artística teve na época. Em cerâmica os trabalhos de Tania Resmini e Marlies Riter, incorporados ao acervo em 2011, mostram a atualidade desta técnica tradicional. As gravuras documentam diferentes épocas, desde a já citada Käthe Kollwitz, passando por Rose Lutzenberger, obra de 1976, Suzana Sommer, de 1982, Maristela Salvatori, de 1982, Nilza Haertel, de 1984, Marta Loguercio, de 1990, Miriam Tolpolar, de 1991 e Maria Lucia Cattani, de 1993. Essa categoria tem um destaque histórico na produção artística do estado e os trabalhos apresentados evidenciam sua importância, embora, necessariamente, não sejam o que de melhor as artistas expostas produziram.

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No desenho, uma categoria bastante contemporânea, destacam-se os trabalhos de 2011, de Teresa Poester e Gisela Waetge, e os mais antigos de Maria Tomaselli, 1978 e Ana Alegria, de 1981. Algumas obras em fotografia se encaminham para a linha conceitual, como é o caso de “Epidermic Scapes”, de Vera Chaves Barcelos, “Noturnos”, de Dione Veiga Vieira, e “Mapa”, de Marina Camargo. A pintura tem pouca presença, como já se comentou, com destaques para Karin Lambrecht, com uma tela de 1986, e Lenir de Miranda, com tela de 2005, e uma mais antiga, de Maria Lìdia Magliani, de 1978. Observam-se, ainda, importantes derivações na escultura, que, fugindo à tradição, desenvolve-se como o objeto pop de Romanita Disconzi, de 1981, e as atuais obras de Elaine Tedesco e Lia Menna Barreto.

A participação de artistas do Rio e de São Paulo evidencia diálogos que o MARGS estabelece, ao longo de sua trajetória, com instâncias desses importantes polos de legitimação artística no país. Os nomes presentes na mostra/acervo têm bastante representatividade no panorama nacional, como Tarsila do Amaral, Maria Bonomi, Renina Katz, Mira Schendel, Regina Silveira, Tomie Ohtake, Jac Lerner, Beatriz Milhazes, Gilda Vogt e Lygia Pape. Chama a atenção que a maior parte destes trabalhos foram doações de instituições, diferentemente dos locais, na sua maioria recebidas das próprias artistas.

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Com tantos nomes fica difícil dar destaques e importantes artistas, com certeza, ficaram de fora destes comentários, em que se procurou pontuar algumas referências para os visitantes. Mostras coletivas de grande porte como esta sempre dificultam a apreensão do trabalho de cada participante. Abordar categorias artísticas tem suas restrições, uma vez que a arte contemporânea tende a diluir fronteiras e mesclar técnicas, mas nesta exposição elas ainda funcionam como importante informação. A melhor proposta, entretanto, é que cada visitante viva a experiência estética como uma aventura, em que pode fazer seu próprio percurso e suas próprias descobertas.


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