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27 de dezembro de 2011
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18:50

Primavera Árabe sob a perspectiva da Revolução Islâmica iraniana

Por
Sul 21
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Série de revoltas nos países árabes levou a mudanças de governo na Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen | Foto: Lilian Wagdy/Flickr

Renatho Costa
Especial para o Sul21

Nesse ano de 2011, os países árabes do norte da África e Oriente Médio estiveram sob o foco de analistas internacionais e, por conseguinte, a dita Primavera Árabe foi “desvendada” a partir de vários aspectos. Contudo, dificilmente essa série de manifestações poderá ser entendida considerando apenas uma variável. O fato motriz dos acontecimentos tem suas peculiaridades em cada Estado, ainda que exista uma raiz econômica, política e social que permeia todos esses países e que encontrou nesses movimentos uma forma de vazão.

Assim, ao analisarmos os efeitos da Primavera Árabe, um ano após o início dos primeiros movimentos populares na Tunísia, duas questões muito simples se impõem. Primeiro, será que os “revolucionários” conseguiram alcançar o resultado que pretendiam? E em segundo lugar, será que a queda dos governantes da Tunísia, Líbia e Egito, além da promessa de o presidente ieminita de deixar o cargo em fevereiro de 2012, podem ser considerados elementos significativos para a mudança de trajetória dos países dessa região?

O brotar da primavera

A partir desses questionamentos, é possível entender que o ato do jovem tunisiano, Mohammed Bouazizi, de atear fogo em seu corpo como sinal de repúdio à corrupção instalada no país não foi apenas o indicativo de que a Tunísia deveria simplesmente rever sua estrutura político-administrativa, mas sim de que o modelo que vinha excluindo grande parte da sociedade há décadas estava estrangulado e não suportaria por muito mais tempo. Com isso, o que Bouazizi fez foi semear o árido solo árabe com o desejo de romper com as amarras do modelo ditatorial de governo que estava instaurado no país desde 1956, ocasião em que ocorreu sua independência da Itália. Mas seu ato não estava fundamentado numa perspectiva marxista ou mesmo ancorado em ambições democráticas neoliberais — foi, simplesmente, a válvula de escape de um modelo de exploração do território africano que estava ligado aos interesses de uma pequena elite local e pautava-se pela lógica da economia mundial.

Assim, como a grande maioria dos países que vivenciou o processo de descolonização, aqueles do norte da África não fogem à regra, ou seja, a idealização da independência como um processo libertário e que proporcionaria soberania e real autonomia nunca chegou a ocorrer de fato devido à relação muito próxima às potências ocidentais. E, se considerarmos os tão aclamados valores democráticos, mais ainda estaremos longe da realidade vivenciada por países como a Tunísia. Ali, a partir de 1959, Habib Bourguiba se transformou em presidente vitalício e somente veio a ser substituído por Zine El Abidine Ben Ali, que permaneceu no cargo até o início de 2011.

Nasser Nouri
Protestos na Tunísia levaram à queda de Zine El Abidine Ben Ali | Foto: Nasser Nouri

Para a manutenção de Ben Ali no poder houve a necessidade de criar um sistema amplo, em que se privilegiava a corrupção e a repressão, além da supressão de manifestações populares. Nesse sentido, enquanto Túnis se configurava no paraíso para os turistas europeus em férias e possuía toda a infra-estrutura necessária para atendê-los, o restante do país carecia de elementos básicos para a subsistência.

A menção à Túnis como paraíso é importante porque, do mesmo modo que Ben Ali seccionou o país e mostrava aos estrangeiros apenas o que eles queriam ver, os governantes europeus, que mantinham relações próximas com o ditador tunisiano, tinham pouco ou nenhum interesse no modus operandi que Ben Ali utilizava para preservar-se no poder. No que tange à ausência de democracia na Tunísia, esse era um tema que nunca entrava na agenda dos líderes europeus e mesmo dos Estados Unidos.

Mesmo diante desse “esquecimento” por parte do mundo, a situação interna no país tornou-se insustentável e as revoltas levaram à queda de Ben Ali. Por ser a primeira etapa da Primavera Árabe, o sistema de comunicação – através da internet – entre os manifestantes não chegou a ser o fator preponderante para que se alcançasse a queda do ditador. O elemento surpresa foi o diferencial. Mas e depois?

Antes de continuarmos trilhando o caminho tunisiano, cabe trazermos para a análise os demais atores que participaram dessa primeira etapa da Primavera. Após a queda de Ben Ali os ventos sopraram na direção de vários países árabes. O Egito foi o primeiro a sucumbir diante das manifestações populares. Hosni Mubarak, que governava o país desde 1981, além de atuar de forma semelhante a Ben Ali, no que tange à repressão contra a população e à passividade frente à corrupção instalada, ainda exercia um papel chave na manutenção da geopolítica local.

O Egito, desde a assinatura do acordo de paz com o Estado de Israel (1979) tornou-se o grande aliado dos Estados Unidos na região, e o governo estadunidense passou a investir milhões de dólares no país e, por conseguinte, na manutenção do sistema corrupto instaurado por Mubarak. Novamente, o Ocidente não tinha interesse em aprofundar seu olhar sobre o modelo de governo egípcio, tampouco ouvir as vozes dos dissidentes que deixavam o país por não conseguirem manifestar-se democraticamente.

Regime de Hosni Mubarak caiu, mas confrontos entre manifestantes e forças do Exército seguem ocorrendo no Egito | Foto: Lilian Wagdy/Flickr

Na etapa egípcia de mobilização popular, é possível perceber que a utilização de redes sociais na internet foi fundamental para que os eventos obtivessem sucesso. No entanto, o Ocidente ainda mantinha-se reticente com relação à forte retaliação que ocorria por parte dos correligionários de Mubarak, apesar de as imagens da repressão correrem o mundo pelos canais virtuais da internet e mesmo diante das lentes da Al-Jazeera. A perspectiva geopolítica prevalecia a qualquer outro interesse democrático, humanitário, etc.

Mesmo assim, com a população mantendo-se mobilizada na Praça Tahrir e com a perda de apoio dos militares, Mubarak optou por deixar o país mesmo sem construir arranjos para garantir a sucessão ao seu filho. Caiu Mubarak, mas e depois?

O florescer da primavera

Com a queda de Mubarak, os ventos sopraram com mais força ainda na direção de outros estados do Oriente Médio — e a Líbia acabou ganhando ênfase nesse processo porque Muammar Kadafi sempre foi um líder que inspirara cuidados por parte do Ocidente. Assim, quando movimentos insurgentes iniciaram suas atividades na Líbia e Kadafi os suprimiu, a resposta do Ocidente foi criar condições para que a OTAN pudesse intervir no conflito e patrocinar os “rebeldes”. Legitimava-se a ajuda humanitária suprimindo uma liderança árabe considerada problemática para os Estados Unidos e aliados europeus. E, como prêmio de consolação, obtém-se o controle de toda a riqueza mineral líbia… pelo menos essa era a intenção dos patrocinadores da queda de Kadafi. Mas e depois?

Líbios comemoram a queda de Muammar Kadafi na embaixada da Líbia na Tunísia | Foto: Al Jazeera English

O processo de alastramento da Primavera Árabe, depois de ter conseguido derrubar um ditador como Kadafi, que encontrava-se no poder desde 1969, parecia que seria avassalador e nada mais poderia impedi-lo. No entanto, encontrou na Síria uma barreira um tanto mais complicada de ser transposta, exatamente pelos arranjos geopolíticos da região.

A Síria consegue manter certa autonomia porque fora aliada da União Soviética durante a Guerra Fria (1947-1981) e posteriormente preservou seus laços com a Rússia. Além disso, com a aproximação ao Irã pós-Revolução Iraniana, passou a ser um ator fortalecido, devido à capacidade de articular-se ao Hezbollah – organização libanesa, considerada terrorista por vários países ocidentais, mas reconhecido como partido político no Líbano e apoiado pelo Irã na luta contra o Estado de Israel – e Hamas – organização palestina, também considerada terrorista pela grande maioria dos países ocidentais.

Na Síria, ao contrário do caso da Líbia, há uma grande dificuldade de utilização da OTAN. Isso porque Kadafi era uma liderança desarticulada da comunidade árabe. Sua importância foi considerável durante a década de 1970 e 1980, quando utilizou as riquezas de seu país para patrocinar ações da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e mesmo a criação do Hezbollah. Contudo, sua perseguição aos grupos fundamentalista na Líbia fez com que perdesse parte desse apoio. Assim, Kadafi isolou-se, enquanto as articulações de Assad e a importância da Síria no mundo árabe cresceram. A deposição de Kadafi, apesar de trazer suspeitas por parte de outros regimes ditatoriais da região de que o mesmo possa acontecer em seus países, não levou a objeções incisivas.

Assim, mesmo diante da forte repressão que os opositores ao governo de Assad vêm sofrendo, dificilmente a OTAN conseguirá intervir no país. E os embargos impostos ao país acabam não alcançando o resultado esperado porque há o suporte de Rússia, China e Irã, que suprem algumas necessidades da Síria.

Bashar al-Assad, governante da Síria | Foto: Reprodução

Assad, de certa forma, ainda consegue manter uma base de apoio em seu país e no exterior, pois a perspectiva de derrubada do ditador também sinalizaria para uma intervenção estrangeira – direta ou indiretamente – no país, o que acaba não sendo interessante para a população síria. Desse modo, para entender porque Assad ainda permanecerá no poder para fazer a transição é preciso levar em conta o fato de o governante sírio estar conseguindo preservar o apoio de parte das Forças Armadas – elemento significativo para analisar a razão pela qual Ben Ali e Mubarak foram depostos – e também devido à fórmula de intervenção utilizada na Líbia e que em nada atenderia os interesses dos sírios. Agrega-se a isso o risco de ali ser empregado o mesmo modelo de intervenção adotado contra o Iraque. Por outro lado, porém, Assad ainda não conseguiu criar as condições necessárias para fazer a transição que possa preservar seu status quo e acalmar a oposição. Com isso, cria-se um grande imbróglio.

“Primavera Árabe” e “Revolução Islâmica Iraniana”

A partir da breve exposição proposta nessa análise, é possível perceber que o movimento revolucionário – surgido basicamente entre jovens árabes – conseguiu derrubar alguns ditadores e colocar outros em xeque. Ainda, outros países do Oriente Médio que vivenciam esse movimento tiveram a flexibilização de seus regimes ou iniciaram o processo de transição política, como no caso do Iêmen. No entanto, no que tange às questões formuladas durante o transcorrer dessa análise, caberia a utilização da Revolução Islâmica no Irã como parâmetro para entender as possibilidades de sucesso dos países que vivem o momento de transição, principalmente Egito, Líbia e Tunísia.

O que os países que constituíram esses movimentos revolucionários têm em comum? 1) Tanto o Irã quanto os países da Primavera Árabe sofreram com a atuação das potências ocidentais durante o século XX – seja devido ao modelo colonialista ou à intervenção direta e/ou indireta em sua soberania política e econômica; 2) todos os países viviam sob ditaduras até que ocorresse a ruptura; 3) os ditadores, se não recebiam apoio das potências ocidentais diretamente, contavam com seu beneplácito; 4) a situação econômica nesses países gerou concentração de riquezas nas mãos de um pequeno grupo ligado ao poder e empobrecimento da maior parcela da população; 5) a repressão política era muito violenta. Poderíamos citar ainda outras similaridades, se fosse o caso.

O que poderíamos perceber como principal fator incomum? A Revolução islâmica iraniana tinha o elemento religioso como balizador para a construção de um novo modelo de governo e sociedade. Nele, os princípios islâmicos significavam a redenção do povo e a ruptura com um modelo ocidental falido e que não atendia ao interesse da população. Por outro lado, a Primavera Árabe nasce com uma proposta “clara” de derrubar uma ditadura em prol do estabelecimento de um regime democrático — entretanto, não há a ruptura com a estrutura de poder previamente estabelecida.

Os revolucionários iranianos desmontaram a estrutura do estado anterior e a construíram sob um novo modelo de governo. Mas nesse caso o elemento religioso já exigia essa mudança, fato esse que não ocorreu nos países que vivenciaram a Primavera Árabe. Egito e Tunísia ainda lutam para implementar um modelo democrático — contudo, as antigas elites que usufruíram das benesses do poder têm dificuldade para permitir isso e tentam corromper o processo, no intuito de assegurarem suas vantagens.

Aiatolá Khomeini | Foto: Reprodução
Aiatolá Khomeini | Foto: Reprodução

Ainda, sem haver uma figura consensual para comandar o processo pós-Revolução, como foi o caso do aiatolá Khomeini no Irã, e, tendo sido desconstituídas todas as instituições democráticas durante os longos períodos ditatoriais nos países árabes, a possibilidade de que haja um consenso entre os grupos que estão sendo formados reduz-se consideravelmente.

A essa dificuldade, agrega-se o fato de que durante a Revolução Iraniana o elemento religioso não representava um perigo real para o Ocidente, vindo a configurar-se como tal apenas posteriormente. Por isso, não sofreu qualquer represália. Inclusive foi tratado como inovador por intelectuais, como Foucault. Ao passo que, atualmente, todos os partidos que apresentem inclinações “fundamentalistas” são vistos como perigosos para a “construção da democracia” no país. Ou seja, a democracia já nasce limitando a participação democrática a partir de interesses externos.

A partir dessas considerações, é possível aventar a possibilidade de que os países que vivenciaram a Primavera Árabe, se não conseguirem romper com as antigas estruturas de poder e se afastarem da égide dos Estados Unidos e países europeus, correm o risco de entrarem no modelo cíclico de dominação que perdurou até o início dos movimentos em dezembro de 2010. Ou seja, com um verniz democrático, esses países poderão eleger governantes comprometidos com a política externa dos aliados ocidentais e não com seus nacionais. A partir daí a tendência natural será aproximarem-se do que foram os governos de Mubarak ou Ben Ali, algo que tem sido muito frequente na história desses países.

Desse modo, a Primavera Árabe que nasceu do clamor dos jovens – que em alguns aspectos lembra os manifestantes de 1968 – por mudanças políticas, econômicas e sociais, corre o risco de se transformar em uma nova Primavera de Praga. Quem sabe, impondo a dominação a partir de outras estruturas democraticamente mais “aceitáveis” que os tanques soviéticos que invadiram a antiga capital da Tchecoslováquia.


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