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31 de julho de 2011
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10:06

Por dentro do ‘Eixo do Mal’: Renatho Costa vai ao ‘país dos aiatolás’

Por
Sul 21
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Renatho Costa / arquivo pessoal
A República Islâmica perdura no Irã, apesar da ação contrária dos Estados Unidos | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Renatho Costa
Especial para o Sul21

Desembarquei no dia 1º de maio de 2011 no aeroporto Imã Khomeini (IKA), em Teerã, no intuito de entender melhor o que seria o Irã, esse país tão temido pelo Ocidente e objeto de inúmeros estudos. Há tempo esperava por uma oportunidade para conhecer “o país dos aiatolás” e descobrir qual seria a sensação de estar dentro do “eixo do mal”.

O Irã foi se tornando mais constante em minha vida a partir do momento que iniciei o trabalho de graduação sobre o Hezbollah (Partido de Deus) – uma organização e partido político libanês que é considerado terrorista por grande parte dos países ocidentais. Veio então, no mestrado, uma análise sobre o sistema político libanês e a atuação do Hezbollah. Enfim, quanto mais me aprofundava no estudo sobre o Hezbollah, mais era obrigado a entender sobre o xiismo e a Revolução Islâmica no Irã.

Os acontecimentos que mudaram o mundo entre 1978 e 1979 eram considerados um exemplo para os xiitas — e alguns sunitas também. Para o Ocidente, no entanto, representavam um risco. Assim, meu projeto de doutorado foi sobre o Irã: tentar desvendar a razão pela qual a República Islâmica perdura, apesar da ação contrária dos Estados Unidos e de outros atores internacionais. Nesse caso, aventei a possibilidade de que a “chave para o sucesso” da manutenção do regime islâmico estaria no sistema de governo instituído no país, o wilayat al-faqih (estrutura na qual o líder supremo do país é um religioso).

Depois de quatro anos de muito estudo bibliográfico, muita discussão sobre a participação dos religiosos na estrutura política do Estado e nenhuma oportunidade para ouvir dos próprios aiatolás o que pensam sobre o mundo, sobre o Irã, sobre o Ocidente, etc., mantive contato a Al-Mustafa International University para concluir minha pesquisa no Irã e recebi um convite para ir a Qom.

Renatho Costa / arquivo pessoal
Cidade iraniana de Qom, vista do alto de uma montanha | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Onde está o subdesenvolvimento?

Qom, para os xiitas, é como o Vaticano para os católicos. Os dois principais polos de difusão do xiismo no mundo são Qom e Najaf, no Iraque. Mas a segunda vem perdendo sua força, devido primeiramente à repressão que sofreu no período de Saddam Hussein e, posteriormente, à instabilidade política e de segurança gerada pela invasão dos EUA ao país.

Por mais que eu tivesse lido muito sobre o Irã, o país soava como algo estranho, exótico. Até mesmo pela língua local — farsi, ou persa — que utiliza caracteres do alfabeto árabe, mas tem uma cantilena muito mais suave… Sahkan, estudante russo de religião que conheci em Qom e se tornou um amigo, diria que é uma “língua feminina”; o poeta persa Ferdowsi, por sua vez, que é uma língua da poesia. Seja qual for a percepção sobre ela, o fato é que é uma língua muito complicada e eu não a compreendia.

Desembarquei de madrugada em Teerã e já havia um carro da universidade aguardando por mim. Logo pensei, “começa aqui a restrição de liberdade!” Rodrigo Jaloul, um estudante de religião no Irã, foi recepcionar-me juntamente com o primeiro sheikh iraniano que conheci, Ghasemi. Rodrigo não poderia acompanhar-me em todas as entrevistas que tinham sido programadas, então, Ghasemi, que falava muito bem inglês e “se comunicava” em espanhol, seria meu tradutor.

Renatho Costa / arquivo pessoal
Para os xiitas, Qom é como o Vaticano para os católicos | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Além da grandiosidade do aeroporto, que recebe o nome do grande mártir da Revolução, a estrada que levou-me até Qom gerou um segundo impacto. Cento e cinquenta quilômetros entre Teerã e Qom, cortando o deserto, numa estrada que lembrou-me a Rodovia dos Bandeirantes, em São Paulo. Mas minha impressão é de que era uma estrada melhor, iluminada em todo seu percurso. Onde estava o subdesenvolvimento naquilo?

Cheguei à cidade de madrugada e na manhã seguinte tive meu primeiro contato com as mulheres de chador. Num primeiro momento, a imagem é um pouco forte, pois a temperatura era de quase 40 graus e as mulheres se cobriam por inteiro, deixando apenas o rosto à mostra. Já tinha visto mulheres com essa vestimenta, mas ali era diferente, porque elas utilizavam aquilo com muita normalidade. Ali, o normal é o chador.

O santuário não é apenas para rezar

Andando pela cidade, constatei que Qom é “marrom” — uma cidade de arquitetura baixa em que predominam casas e edifícios antigos. Há uma região mais moderna, a qual convive em harmonia com vielas que parecem labirintos e ruas sem calçadas, mas o que marca a cidade é o Santuário de Fatima Mazuma (irmã do Imã Reza, oitavo na sucessão do Profeta, conforme entendimento desse ramo do xiismo), imenso, o maior templo que havia estado até então.

Renatho Costa / arquivo pessoal
Vista interna do santuário de Fatima Mazuma, em Qom | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Nesse templo pude perceber o clamor religioso se expressar — mas muito mais do que isso, tive a oportunidade de ver, por inúmeras vezes, as pessoas vivenciarem a mesquita e a religião. Percebi que as pessoas não iam ao santuário apenas para rezar: elas sentavam-se nos imensos salões e liam, estudavam e até acompanhavam as crianças engatinharem pelos tapetes. A mesquita não oprime o fiel, não restringe seus acessos. Por isso, está sempre lotada.

Na universidade, fui extremamente bem recebido e apresentei os nomes dos aiatolás que gostaria de entrevistar. Em momento algum fizeram restrições. Nunca recebi qualquer instrução para não fazer “perguntas complicadas” ou algo semelhante. De certo modo, percebi que eles gostavam da idéia de ter ali um brasileiro e, ainda por cima, cristão. Sentia-me como um visitante ilustre que as pessoas queriam muito agradar. Paralelamente à assistência da Al-Mustafa University, uma fundação que funciona dentro da universidade, chamada Friends of Islam International (dirigida por Rodrigo Jaloul) passou a auxiliar-me.

Fora as entrevistas com os aiatolás, a Universidade programou algumas sessões de debates com especialistas em história do xiismo e ciências políticas islâmicas. A ideia é que eu pudesse sanar dúvidas, ou mesmo debater sobre questões polêmicas. Foi importante, pois tive a oportunidade de conversar com colegas altamente capacitados e perceber, primeiramente, que a qualidade das instalações que tinham para trabalhar era diferente de qualquer universidade pública no Brasil. O forte investimento na educação faz parte do programa da República Islâmica para sanar o altíssimo nível de analfabetismo nos tempos do Xá. E o problema foi, realmente, sanado. Mas a educação, além de alfabetizar, proporciona a difusão da religião, já que o ensino religioso está em todas as escolas.

Percebi que a burocracia iraniana era terrível. Para se comunicarem com os escritórios dos aiatolás, era necessário cumprir uma série de formalidades, com trocas de cartas e memorandos. Para tentar agilizar o processo, meu amigo Rodrigo, que conhecia muito bem essa estrutura, passou a contatar direitamente os escritórios dos religiosos. Novamente, a grata surpresa: os aiatolás, ao saberem que se tratava de um pesquisador brasileiro, aceitavam conversar comigo sem nenhum problema.

Renatho Costa / arquivo pessoal
Aiatolá Gerami aplicando o estekhareh, após as orações noturnas dos fiéis | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Khamenei não é o líder de todos os xiitas, dizem aiatolás

Minha primeira entrevistas foi com o aiatolá Gerami, reconhecido jurisconsulto e famoso pela prática do estekhareh, que ocorre após as rezas da noite. Ao final das orações, as pessoas normalmente ficam no salão e esperam para serem atendidas. Nessas ocasiões, Gerami apenas olha para a pessoa, abre o Corão e indica se ela deve ou não tomar determinada atitude.

Seu posicionamento a favor da Revolução é inquestionável. No entanto, diferentemente do que se apregoa no Ocidente, ele afirmou categoricamente que Khamenei não é e nem pretende ser o líder de todos os xiitas, frisando que cada país deve fazer a sua revolução. Mas reiterou a importância do ensinamento e manutenção dos valores islâmicos.

Pude constatar, junto aos aiatolás, posicionamentos que divergem muito do que é apregoado no Ocidente. Para a grande maioria dos líderes religiosos que tive contato, o modelo de governo do wilayat al-faqih não é universal, e, com isso, o aiatolá Khamenei não pode ser considerado o líder de todos os xiitas. Eles ressaltam que o Irã pode servir de exemplo para os demais países islâmicos (como entendem que esteja acontecendo no mundo árabe nesse momento com a Primavera Árabe), mas que cada país deve seguir seu destino e buscar a “verdadeira justiça”.

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Mesmo sem ratificar o apoio material ao Hamas, aiatolás do Irã entendem como legítima a luta palestina | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Sobre o Hezbollah e Israel, o Irã entende que o modelo islâmico de governo é o melhor e dará apoio a quem precisar; contudo, esse apoio se limitaria à difusão da fé. Nenhum aiatolá sustentou que o Irã desse apoio material ao Hezbollah, apesar de ser algo já evidente, mas todos legitimaram a luta da organização xiita contra o Estado de Israel.

Ninguém ratifica o apoio material ao Hamas, mas entendem como legítima a luta dos palestinos. Nos debates que tive na Al-Mustafa University, notei que existe o sentimento de expropriação da terra, e que a legalização do ato pelo Ocidente em nada atende os anseios dos muçulmanos. Por isso, o Irã se sente no direito de solidarizar-se com a causa palestina.

Popularidade de Ahmadinejad está em baixa

Durante a visita, passei a prestar atenção nos iranianos para tentar entender o que pensavam sobre o Ocidente. Uma das situações mais propícias era nos táxis, pois em Qom (e no Irã de modo geral) é muito barato andar de táxi. Mas sempre é importante negociar o valor antes de fazer a corrida… Também há táxis coletivos, como lotações. Nessas ocasiões, procurava entender melhor o que os iranianos pensavam do que viviam no país.

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Os piqueniques são comuns no Irã e reúnem várias gerações | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Há diferenças substanciais quanto aos pontos de vista das pessoas de Qom e Teerã, por exemplo. Em Qom prevalece o tradicionalismo; em Teerã, já percebi a força da oposição ao governo. Mahmoud Ahmadinejad estava com sua popularidade em baixa, pois havia retirado o subsídio da gasolina e o valor do litro tinha aumentado para aproximadamente setenta centavos de dólar. Mas ele criara um cartão que permitia abastecer até uma determinada quantidade de litros por mês pelo preço de trinta centavos.

As pessoas não faziam críticas pessoais ao aiatolá Khamenei. É notável o reconhecimento de sua liderança pela grande maioria das pessoas que tive contato. E esse reconhecimento está fortemente ligado à importância de um líder para guiar a comunidade xiita — ou seja, Khamenei, assim como Khomeini, goza de legitimidade. Mesmo em uma conversa com uma professora universitária, quando retornava de Mashhad, ela não se queixou do modelo de governo, mas sim da violência excessiva da repressão dos protestos durante as eleições de 2009. Ela lamentava e dizia que os jovens têm o direito de se manifestarem. “Se por acaso ultrapassassem limites”, dizia ela, “o governo deveria tê-los prendido, não mandado força policial para matá-los! Eles eram jovens, não bandidos!”. Mesmo assim, notei que, apesar da desilusão com o governo, ela nunca colocou em dúvida os valores do xiismo.

Pensei que os protestos de 2009 seria um tema delicado para discutir com os aiatolás, mas não foi o caso. Eles, de modo geral, entendem que legitimou-se a vontade popular. Consideram que pode ter havido algum erro na contagem dos votos, mas nada que alterasse o resultado final. Para eles, a liberdade de expressão existe no Irã — e pude verificar a quantidade de jornais que lá existem e suas várias inclinações políticas. Mas a República não deve ser afetada. Quaisquer movimentos que sejam contrários à Revolução não são tolerados.

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Estabelecimentos comerciais em Qom ficam abertos até altas horas da noite, sem policiamento nas ruas | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Um país de ruas seguras e piqueniques à noite

O Irã não é só política. Conforme ia entendendo a cultura persa, mais me surpreendia e, em muitos aspectos, me divertia. Eles têm um costume chamado taruf, que nos ajuda a entender os diferenciais desse povo. O taruf é o costume de, por gentileza, recusar algo oferecido por outra pessoa, ainda que seja inevitável aceitá-lo. Meu amigo Rodrigo aprendeu sobre o taruf de modo interessante. Pegou um táxi, chegou ao destino e foi pagar pela corrida, mas o motorista disse “não posso aceitar”. Ele insistiu uma, duas, três vezes e o motorista ficava parado, com as mãos recolhidas, repetindo a mesma coisa. Muito feliz com a gentileza iraniana, Rodrigo desceu do carro e já ia embora, quando o motorista saiu do carro nervoso, gritando que ele teria de pagar pela viagem. Meu amigo pensou que tinha sido um presente do motorista, mas na verdade era taruf! É um hábito que se aplica em várias situações da vida social iraniana; não praticá-lo é uma grande falta de educação.

Devo dizer que o Irã é o país mais seguro que já estive. Não se ouve falar em criminalidade e não há policiamento ostensivo. Devido ao calor extremo, a grande maioria dos estabelecimentos comercias se fecha após a oração do meio-dia e só reabre por volta das cinco horas da tarde, seguindo aberto até onze ou meia-noite. Eu constantemente andava pelas ruas até bem tarde da noite e nunca tive qualquer receio.

A noite é o momento das pessoas irem às ruas. Fazem muitos piqueniques: ocupam quaisquer espaços em que haja um gramado, estendem uma toalha, trazem o chá e sentam-se para aproveitar a vida em família ou com os amigos. Quando estive em Isfahan, famosa por suas pontes, fui caminhar pelos belíssimos jardins às margens do rio (seco nessa época do ano) depois das onze horas da noite e encontrei famílias inteiras, desde os avós até os netos, sentadas e conversando.

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Rede de fast food Bama é como o McDonalds ou Pizza Hut, mas as atendentes usam véu | Foto: Renatho Costa / arquivo pessoal

Por fim, quando estava cansado de tanto comer arroz (prato tradicional dos iranianos e constantemente servido no restaurante da universidade), pedi para meu amigo Rodrigo me levar a algum lugar diferente. Ele me levou ao Bama, um fast food que seria uma mistura de McDonalds e Pizza Hut. Matei a saudade do hambúrguer e das batatas fritas, mas gostei da inovação deles: cogumelo frito! Até os pedidos eram feitos pelo número, ao invés do nome do prato — a única diferença é que as atendentes usavam véu.

Irã não é o “monstro” pintado pela Era Bush

Antes de voltar ao Brasil, numa conversa com um professor da universidade, comentei como tinha achado interessante ver um sheikh no fast food. Parecia algo surreal, pois essas lojas são as mais atacadas por serem diretamente relacionadas ao imperialismo ocidental. Ele disse que gostava de frequentar fast foods, mas não abria mão do tradicional arroz. E completou dizendo que a luta do Irã é pelo direito de continuar escolhendo o que comer e como viver, e que a cultura persa e islâmica são muito ricas para serem dizimadas pelos valores ocidentais. Por fim, ele me perguntou: por que será que o Irã tem conseguido sobreviver ao boicote que sofre do ocidente e ainda desenvolver-se nas mais distintas áreas? Esses resultados estariam ligados aos valores do xiismo?

Não respondi a pergunta naquele momento. Já de volta ao Brasil, ainda não tenho a resposta. O fato é que o Irã não me pareceu o monstro pintado pela Doutrina Bush. Penso que grande parte da atuação iraniana talvez seja reflexo de como as potências, historicamente falando, interferiram no país.

Nesse período em que estive dentro do “eixo do mal”, vi que a fé dos xiitas tem uma força sem igual e conseguiu mudar completamente a realidade de uma nação. Mas isso foi em 1979; hoje, talvez algum conceito necessite ser revisto. Khomeini foi visionário ao propor a Revolução; se os aiatolás quiserem preservá-la, terão de manter essa mesma perspectiva.

* Renatho Costa é professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Pampa (Unipampa), especialista em Oriente Médio e Terrorismo, e escreveu a convite do Sul21.


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