Colunas
|
3 de fevereiro de 2011
|
23:58

Quando os jornalistas são notícia

Por
Sul 21
[email protected]

Acabo de falar com meu filho, Samy Adghirni, repórter da Folha de S. Paulo, enviado especial ao Egito. A narrativa, por telefone celular, é de um cenário devastador. Do sétimo andar do hotel Hilton, ele assistiu, na varanda do quarto, os enfrentamentos violentos entre as forças antagônicas ao regime decadente do ditador Mubarak: pedradas, linchamento, chuva de coquetéis molotov, incêndios, sirenes de ambulâncias, tanques em movimento, gritos de Allah Akbar (Deus é grande). “Eram duas marés humanas, que avançavam uma contra outra, sem nunca se misturar, feito água e óleo”, escreveu hoje na Folha em depoimento jornalístico. Repórter experiente com passagem por zonas de conflito como Iraque, Irã, Iêmen , Síria e Palestina, Samy disse que nunca se sentiu tão ameaçado como agora.

Depois de ter o quarto invadido e parte do material de trabalho confiscado, Samy mudou de hotel. Trocou o Hilton pelo Intercontinental. Contou que os jornalistas estão preferindo ficar na periferia, a zona central tornou-se muito perigosa. A palavra de ordem entre os profissionais é manter-se próximos, solidários, cuidar um do outro. Adeus concorrência. Nesta hora, o que importa é a vida. Sem renunciar à noticia. “Coisa de jornalista, mãe.” Nunca desistir apesar da adversidade, é o que determina a adrenalina da profissão.

A verdade é que os jornalistas estão em perigo. Houve até espancamento e facadas. Alguns foram presos e obrigados a deixar imediatamente o país como os repórteres brasileiros Corban Costa da Rádio Nacional e Gilvan Rocha da TV Brasil. No final do dia, chegou a notícia da agressão ao jornalista de Zero Hora, Luiz Antonio Araújo.

Na batalha para testemunhar e reportar os fatos, todos estão expostos à brutalidade dos agentes da repressão. Ou da guerra das facções, contra ou a favor do ditador octogenário medíocre que não faria falta a ninguém. Na praça Tahrir, pouco importa se o jornalista é americano, europeu, asiático ou árabe. Os primeiros a serem presos foram os repórteres da TV Al Jazeera, do Qatar. Ontem o canal saudita Al Arabiya fez um apelo para que o exército egípcio protegesse seus escritórios e seus jornalistas. Diante da situação de risco, a palavra de ordem é dissimular a identidade. Nunca revelar que é jornalista. Esconder câmaras e gravadores.

O governo egípcio, que tenta desesperadamente se manter no poder, nega as agressões mas é evidente que há uma campanha aberta para intimidar a imprensa. Velha fórmula que data do império romano: se as notícias não são boas, mate o mensageiro.

Sexta feira, dia de oração para os muçulmanos, será pior do que hoje avisa Samy, pronto para começar mais um dia. Quando as mesquitas estiverem cheias, os líderes aproveitarão para incitar os ânimos. Desconfiem do silêncio da Irmandade Muçulmana, a maior organização religiosa do mundo árabe. Nada de dialogar com o regime, nem de mediar uma transição. Como na Argélia ou no Irã, os religiosos sabem esperar a hora certa para entrar em cena. É o que atemoriza Estados Unidos e Israel, tradicionais aliados do Egito. O antecessor de Mubarak, Anouar el Sadate, que em 1978 ganhou o prêmio Nobel da Paz juntamente com o primeiro ministro israelense Menhaem Begin por ter assinado um acordo de paz com Israel, morreu assassinado por um oficial do Exército. O imam Omar Abderrahame, que apoiou o atentado, teve papel fundamental no ataque às torres gêmeas nos Estados Unidos, em 2001.

Não é normal que jornalistas virem notícias, eles são pagos para fazer notícias. E notícia é tudo aquilo que quebra a superfície lisa do cotidiano. É o desvio, não o padrão. É o homem mordendo o cachorro. No Egito de hoje, o boicote aos correspondentes é notícia porque revela uma das faces mais hediondas dos regimes não democráticos: a censura aos meios de comunicação.

Se os repórteres sofrem com dez dias de rebelião, imaginem o que isto significa para 80 milhões de egípcios que vivem sob o jugo de Mubarak há mais de 30 anos. Na verdade, pouco importa para este povo oprimido o que acontece com os estrangeiros, jornalistas ou não. O alvo é outro. Mesmo que isto custe uma guerra civil.

Leio e escuto notícias sobre o Egito todo dia. Mas preciso falar diariamente com meu repórter preferido.

“Volte meu filho”, é o pedido natural de qualquer mãe, mesmo sendo mãe jornalista. Aproveite que seu hotel está perto do aeroporto. Mas ele quer ficar, é o seu trabalho, sua paixão. Ou sua missão?

Esqueci de ensinar ao meu filho o que ensino aos meus alunos da Universidade de Brasília: O jornalismo é uma profissão altamente letal. Cuidado!


* Jornalista, mãe de jornalista e professora da Universidade de Brasília


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora