Itália diz que lutará para que Battisti volte ao país

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Cesare Battisti deixando a prisão da Papuda, após decisão do Supremo Tribunal Federal | Foto: Marcello Casal Jr. / ABr

Igor Natusch

Desde a última quarta-feira (8), o escritor e ativista italiano Cesare Battisti é, ao menos em solo brasileiro, um homem livre. Segundo os advogados que o defenderam contra a iniciativa italiana de pedir a extradição, Battisti deve receber visto de permanência no período máximo de 15 dias e já manifestou interesse em fixar moradia em São Paulo, onde pretende terminar de escrever seu próximo livro. No entanto, se depender do governo italiano, o ex-integrante do grupo armado Proletários Armados pelo Comunismo (PAC) não escapará tão fácil da condenação por 4 assassinatos que o espera na Itália. Ameaçando até ingressar junto à Corte Internacional de Haia, o governo de Silvio Berlusconi pretende ir até as últimas instâncias para que Battisti cumpra sua pena em solo italiano. Mesmo que, aparentemente, as chances de sucesso da Itália sejam reduzidas.

Depois que a decisão de Lula foi confirmada pelo STF, o governo de Silvio Berlusconi tomou atitudes que não fazem disfarce quanto a sua indignação. No final da semana, foi confirmado o retorno à Itália de Gherardo La Francesca, embaixador italiano no Brasil. O diplomata estará em Roma na segunda-feira (13), em uma missão que se destina a prestar esclarecimentos técnicos e jurídicos sobre o caso. A medida, além de demonstrar a insatisfação italiana com a decisão do Brasil, serve como uma espécie de preparação para uma eventual ação do país europeu na Corte de Haia.

Em princípio, uma decisão contrária ao Brasil no tribunal internacional não implicaria em uma obrigação de voltar atrás e entregar Cesare Battisti ao governo italiano. O principal efeito seria de constranger o governo brasileiro no exterior, já que a aceitação das leis internacionais é fundamental para qualquer país que queira reconhecimento e apoio em suas ações. No entanto, a Corte tem um perfil decisório que não parece indicar uma posição contrária ao Brasil, segundo o ministro do STF Ayres Britto. “Estou estranhando que eles (governo da Itália) queiram levar a questão para Haia”, disse o ministro, que votou a favor da imediata soltura do ativista. “O Tribunal de Haia defende os direitos humanos. Tudo faz crer que o STF fez o que lhe cabia: impedir que o extraditando tivesse os seus direitos humanos negados”.

O advogado de Cesare Battisti no Brasil, Luis Roberto Barroso, diz que não há razão para o país se submeter às decisões de Haia, uma vez que nem Brasil, nem Itália emitiram declaração reconhecendo, em termos gerais, os poderes do tribunal. Ainda de acordo com Barroso, o tratado de extradição entre Brasil e Itália não prevê a mediação da Corte de Haia em caso de discordância. “Na prática, o caso só poderia ser submetido à Corte Internacional de Justiça, com a concordância voluntária da República Federativa do Brasil”, diz o jurista, em entrevista à Agência Brasil.

A pressão italiana coincide com um momento delicado da política interna do país europeu. Entre domingo (12) e segunda-feira (13), um referendo que pode gerar dificuldades sérias para o chefe de Estado italano, Silvio Berlusconi. Em meio à decisões sobre a privatização da água e a retomada do programa nuclear italiano, há um quesito sobre a imunidade penal de autoridades do país – entre elas, a do cargo de primeiro-ministro, além dos presidentes do Senado e da Câmara. Berlusconi faz campanha para que os italianos não votem no referendo, proposto pela oposição e no qual o voto não é obrigatório. Para alguns defensores de Cesare Battisti, a intensidade das críticas feitas pelo premiê italiano ajuda a desviar a atenção do referendo – que, aliás, tem um formato curioso: ao invés de dizer “sim” ou “não” para as leis, a cédula pergunta se as leis devem ser derrubadas ou não, o que pode induzir o eleitor a erros.

Deputado italiano fala de “grande decepção” no país

O deputado Fabio Porta é um dos representantes, junto ao governo italiano, dos chamados expatriados – integrantes da comunidade italiana no exterior, divididos em 4 regiões geográficas ao redor do mundo. Porta é um dos cinco nomes, eleitos em 2008, oriundos da América do Sul. Integrante do Partido Democrático (PD), de centro-esquerda, Fabio Porta tem contato direto com os dois países envolvidos na discussão – atualmente morando em Roma, o deputado tem família brasileira, residência em São Paulo e fala português fluentemente.

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Deputado italiano Fabio Porta: permanência de Battisti no Brasil foi uma "expectativa negada" para a Itália | Foto: Divulgação

Entrevistado pelo Sul21, Fabio Porta conta que a expectativa na Itália pela extradição de Battisti era muito grande. “A quase totalidade das forças políticas estava aguardando pelo retorno dele à Itália. Foi uma expectativa negada. A atmosfera, logo após o anúncio (do STF), era de grande decepção”, revela. Na Itália, segundo o testemunho do parlamentar, Cesare Battisti é visto como um terrorista, alguém que cometeu crimes e deveria cumprir sua pena. “É difícil para as pessoas entenderem que uma pessoa que cometeu crimes e foi condenada por eles seja considerada livre em outro país”, diz Porta, que também levanta críticas ao próprio Battisti – “não é uma pessoa séria, de palavra, alguém cujas afirmações possam ser levadas em conta”.

Fabio Porta defende que o processo italiano foi justo e tramitou dentro das normas do estado de direito. Para ele, as contestações são fruto de “fantasias de alguns intelectuais”, que foram abraçadas por parte da esquerda brasileira. Da mesma forma, o deputado italiano diz que só quem não conhece a Itália atual ou dos anos 70 para acreditar que Cesare Battisti sofreu ou está sofrendo perseguição política. “Devem estar confundindo com os tempos do Mussolini”, ironiza o parlamentar. “Talvez Battisti estivesse mais seguro na Itália no que no Brasil”.

Histórico do caso

Cesare Battisti foi condenado por quatro assassinatos, cometidos há mais de 30 anos, durante os chamados anos de chumbo da Itália. Na época, ainda que o regime fosse democrático, organizações de extrema esquerda e extrema direita promoviam ataques e atentados, em uma situação à beira da guerra civil. Battisti, integrante do grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), acabou sendo responsabilizado pelos quatro crimes de morte atribuídos à organização. Teriam sido mortos pelo PAC o agente carcerário Antonio Santoro, em junho de 1978, acusado de maltratar prisioneiros; Pierluigi Torregiani, em 16 de fevereiro de 1979; Lino Sabadin, morto no mesmo dia de Torregiani; e Andrea Campagna, em abril de 1979, policial que prendeu alguns acusados do crime contra Pierluigi Torregiani. No assassinato de Torregiani, foi atingido também seu filho, então com 13 anos, que ficou paraplégico.

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Cesare Battisti recebeu status de imigrante do então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva | Foto: José Cruz/ABr

Cesare Battisti nega os crimes, e alega que nem fazia mais parte do PAC na época em que os assassinatos foram cometidos. Para fugir da condenação à prisão perpétua, Battisti cumpriu um longo roteiro de fuga, iniciado em 1981. Rumou à França, partiu para o México, retornou ao território francês e, quando o país determinou sua extradição, fugiu para o Brasil, ingressando no país por Fortaleza, em 2006. Um ano depois foi preso. Permaneceu no Presídio da Papuda, em Brasília, até a semana passada, quando foi libertado após a decisão do STF.

Em janeiro de 2009, o então ministro da Justiça,Tarso Genro, marcou posição pela não extradição de Battisti, autorizando-o a permanecer no país como refugiado político. O ex-ministro e atual governador do RS alegou possível perseguição política e irregularidades no julgamento de Battisti na Itália. O STF, no entanto, posicionou-se de forma contrária à decisão de Tarso. Por 6 votos a 5, o Supremo se opôs à apreciação do ministro, decidindo pela extradição do italiano. O voto de desempate foi do então ministro Eros Grau. No entanto, ao considerar o caso Battisti uma questão de política externa, o STF decidiu submeter a decisão à chancela do então presidente Lula.

Com base em parecer da Advocacia Geral da União (AGU), Luiz Inácio Lula da Silva decidiu negar a extradição de Cesare Battisti, dando ao escritor e ativista o status de imigrante. A soltura imediata do italiano acabou sendo adiada – primeiramente pelo recesso do STF, depois pela demora para que o assunto entrasse na pauta do Supremo. Na última quarta-feira (8), por 6 votos a 3, os ministros decidiram aceitar o pedido de soltura feito pela defesa de Battisti, ao mesmo tempo que negaram à Itália autoridade para questionar a decisão brasileira. Com isso, Cesare Battisti passou a ser, ao menos no Brasil, um homem livre.

Julgamento teve irregularidades, segundo especialistas

A definição sobre a permanência de Battisti em território brasileiro é a conclusão de uma longa jornada de julgamentos e fugas. No primeiro julgamento, ocorrido na Itália, em junho de 1979, não foram atribuídos a Battisti os assassinatos pelos quais seria posteriormente condenado. Na época, ele foi condenado a 12 anos de prisão, por participação em grupo armado, assalto e receptação de armas. Cesare Battisti fugiu da prisão em 1981, refugiando-se primeiro na França e depois no México. Motivado pela doutrina de não extradição adotada pelo então presidente francês, François Mitterrand, Battisti regressou para a França, passando a viver em Paris.

O segundo julgamento de Cesare Battisti aconteceu em 1987, e teve como principal elemento os depoimentos de ex-ativistas, que o acompanharam em suas atividades nos anos 70. Os depoentes teriam feito uso da delação premiada, em especial o ex-militante Pietro Mutti, que inclusive colaborou com a fuga de Battisti da prisão, em 1981. Segundo documentos da Justiça italiana, a delação premiada de Mutti, atribuindo a Cesare Battisti os quatro assassinatos, teria provocado “uma reviravolta radical” no caso, conduzindo à condenação do ex-integrante do PAC.

A sentença, divulgada pelo Tribunal do Júri de Milão em 1988, considerou Cesare Battisti culpado, direto ou indireto, pelas mortes de Antonio Santoro, Lino Sabbadin, Andrea Campagna e Pierluigi Torregiani. Por esses crimes, o ex-ativista foi condenado à prisão perpétua, com privação solar – uma punição que não existe em outros países, e que é qualificada por alguns juristas como “próxima da tortura”.

Uma série de circunstâncias, porém, levaram analistas de várias partes do mundo a questionar a neutralidade e a consistência do segundo julgamento de Battisti. A condenação deu-se à revelia do acusado, e foram levantadas suspeitas sobre a lisura de seu advogado de defesa, que teria feito uso de uma procuração falsificada. Além disso, provas teriam sido manipuladas, e muitos dos depoimentos teriam sido obtidos enquanto estavam em vigor as Leis Especiais, adotadas de 1974 a 1982, e abriam margem para o uso de tortura como meio de interrogatório.

O próprio uso da delação premiada, segundo alguns juristas, levanta dúvidas sobre as informações que nortearam o processo. Especialista em direito penal da Universidade de Barcelona, Mariana Ortiz afirma que os sucessivos interrogatórios de Pietro Mutti, todos eles incluídos no processo, causam “estranheza”. “Os depoimentos de testemunhas oculares e os exames de balística descritos na sentença são frágeis como meio de prova, se analisados em separado das delações premiadas”, declarou Mariana, em entrevista concedida em 2009 ao jornal Folha de S. Paulo.

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Segundo especialistas, é pouco provável que Tribunal de Haia tome posição contrária ao Brasil no caso Battisti | Foto: José Cruz/ABr

Existem questionamentos também quanto à extradição determinada pelo governo da França, em outubro de 2004, durante o governo de Jacques Chirac. Na época, Battisti residia em Paris há mais de uma década, tendo se estabelecido como escritor e até mesmo pedindo naturalização em 2001, aprovado em 2003 e anulado no ano seguinte. Como a extradição já havia sido negada pelo governo francês em 1991, a Justiça francesa teria desrespeitado um princípio fundamental do Direito, que diz que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes com base na mesma acusação.

Brasil negou extradição de outro italiano em 2004

A postura italiana é de criticar com dureza a atitude brasileira de negar a extradição, mas vários setores declaram estranheza com a insistência da Itália, que não seria coerente com posições anteriores do próprio país. No período anterior ao segundo julgamento de Battisti na França, a Itália teria feito pouco ou nenhum esforço contra a decisão do governo de François Mitterand. Apenas com a entrada de Jacques Chirac, de ideologia mais à direita, houve um pedido italiano para revisar o caso. Para alguns analistas, isso demonstra uma certa arrogância do governo italiano, que estaria pressionando o Brasil de forma desproporcional e distinta da aplicada contra um país vizinho, onde Cesare Battisti estaria bem mais ao alcance.

Além disso, a firmeza da Itália não teria sido verificada do mesmo modo em casos relacionados ao próprio Brasil. Enrico Roberto Racca, responsabilizado por 13 crimes, inclusive assassinato e bancarrota fraudulenta, teve seu retorno à Itália negado pelo STF em 2004. A alegação do Supremo foi de que os crimes, pelos quais Racca havia sido condenado a 13 anos e seis meses de prisão, já estavam prescritos. Curiosamente, o governo italiano adotou postura diferente da atual, aceitando a decisão brasileira sem insistir na liberação. Atualmente, Enrico Racca mora em Porto Alegre (RS), atuando como tradutor e professor de italiano junto a profissionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Para o deputado Fabio Porta, eleito pela comunidade italiana no exterior e integrante da oposição a Silvio Berlusconi, o governo italiano cumpre sua função de seguir todos os caminhos jurídicos possíveis para reivindicar o retorno de Battisti. Mas sem passar dos limites dos tribunais. “É muito importante deixar claro que se trata de uma divergência a ser resolvida nos tribunais, e não um quadro de guerra entre os países”, frisa. “Os povos brasileiro e italiano dividem uma história. Não faz sentido ultrapassar os limites da esfera jurídica”.

Leia mais: STF determina a libertação de Cesare Battisti, que já deixou a prisão


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