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28 de novembro de 2020
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16:48

Movimento de mulheres contra restrições ao aborto lidera onda de protestos na Polônia

Por
Sul 21
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Protestos contra restrições ao aborto legal levaram milhares de pessoas às ruas na Polônia no mês de outubro. Foto: Creative Commons

Mathias Boni

Nos últimos 30 dias, os poloneses foram às ruas para realizar as maiores manifestações populares do país nos últimos 30 anos. O estopim para esses protestos foi uma decisão do Tribunal Constitucional polonês no dia 22 de outubro, que, por influência direta do governo federal, restringiu ainda mais o direito ao aborto no país, já um dos mais restritos de toda a Europa. Nos dias que se seguiram à decisão, foram realizados protestos diários por toda a Polônia, até que no dia 28 de outubro, uma greve nacional levou centenas de milhares de pessoas às ruas de quase todas as cidades polonesas. A pressão deu resultado, e no dia 3 de novembro, o governo, que se assustou com o tamanho das manifestações, anunciou que adiaria a publicação e a validade da decisão.

Depois disso, os protestos nas ruas arrefeceram por algumas semanas, também em razão da volta do crescimento da epidemia de coronavírus no país, até que voltaram com força novamente no dia 18 de novembro. Com o intuito de aproveitar a mobilização popular para aprofundar as mudanças no país, os protestos contra o governo permanecem na rua, também com outras reinvindicações, como uma reforma no sistema jurídico do país, o respeito aos direitos fundamentais de todos, principalmente de mulheres, da população LGBTQ+ e dos imigrantes, a separação total da igreja e do estado e até a renúncia da cúpula principal do atual governo. Mas, primeiro, os poloneses seguem mobilizados para garantir a revogação total da decisão que praticamente baniu o direito ao aborto no país.

O direito ao aborto na Polônia

Em várias regiões da Polônia, mesmo antes da última decisão ser proferida, já era muito difícil fazer um aborto, mesmo legalmente. Muitas clínicas particulares, principalmente em partes do país onde a população local é mais religiosa, simplesmente se recusam a fazer o procedimento, assim como os próprios médicos, mesmo que a situação se encaixe dentro das possibilidades legais para realizar o procedimento. Há na Polônia hoje uma cultura contra o aborto, fomentada pelo governo e pelos setores mais radicais da igreja católica, que se reflete até nas atitudes dos profissionais de saúde poloneses. Contudo, isso não diminui a demanda por abortos no país, apenas deixa mais vulneráveis as mulheres que mesmo assim necessitam fazer o procedimento. O que acaba acontecendo, assim como no Brasil, é que muitas polonesas acabam optando por realizar abortos caseiros e clandestinos, o que aumenta muito os riscos para a mulher. As polonesas de famílias mais privilegiadas ainda conseguem sair do país e realizar o procedimento com mais tranquilidade em outros países da Europa, como na França, na Espanha ou mesmo na vizinha Alemanha.

Curiosamente, a Polônia tem um histórico amplamente tolerante em relação ao direito de aborto. Em 1932, o país foi um dos primeiros na Europa a legalizar o direito de aborto. Inicialmente, se aplicava apenas a casos de risco para a saúde da mulher, e, simultaneamente, a gestações fruto de atos criminais. Durante a ocupação nazista, entre 1939 e 1945, as restrições ao aborto na Polônia aumentaram, e os procedimentos diminuíram. Em 1956, durante o período comunista, o direito ao aborto foi novamente ampliado, dessa vez atendendo também mulheres em condições socialmente precárias. Nas décadas seguintes, o procedimento foi praticamente todo legalizado na Polônia, de maneira que mulheres de outros países com uma legislação mais rígida viajavam para lá com o intuito de realizar o procedimento. Essa realidade mudou logo após o fim do regime comunista, em 1989. Já em 1990, por influência da Igreja Católica no país, a legislação foi modificada para dificultar o acesso ao aborto, e, em 1993, foi definitivamente alterada, para as bases em que permaneceram até 2020.

Previamente à recente decisão que mudou o entendimento do tribunal, o aborto na Polônia era legalmente permitido em três possibilidades: em gestações geradas por estupros, em casos em que o prosseguimento da gestação acarreta risco à saúde da mãe, e, por último, em situações de malformação do feto. Essa última hipótese foi justamente a que o tribunal declarou como inconstitucional no dia 22 de outubro. Ao fazer isso, praticamente baniu o aborto legal no país, pois os procedimentos em razão de malformação do feto significavam nada menos do que cerca de 97% de todos os realizados no país. Por já ter uma das legislações mais rígidas em relação ao direito de aborto em todo o continente europeu, o número de procedimentos realizados oficialmente na Polônia soma apenas pouco mais de 1.000 por ano. Em comparação, na França, são realizados mais de 200 mil abortos legais anualmente, enquanto na Espanha e na Alemanha se realizam cerca de 100 mil.

Os números oficiais poloneses acabam escondendo uma grande quantidade de abortos realizados de forma clandestina, que estudiosos afirmam estar pelo menos na casa das dezenas de milhares. No Brasil, atualmente, a legislação que regula o aborto é muito semelhante à polonesa. As hipóteses legais foram inicialmente estabelecidas ainda na década de 1940, permitindo o procedimento em casos de estupro ou de gestação com risco à vida da mulher. Em 2012, um julgamento do STF incluiu também como hipótese legal para o aborto os casos de fetos anencefálicos. Quem realizar um aborto no Brasil fora dessas condições, legalmente estará cometendo um crime, passível de punição de um a quatro anos de detenção, tanto para gestante quanto para a pessoa que realizar o procedimento. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, cerca de 70 mil mulheres morrem anualmente em razão de complicações sofridas após a realização de abortos ilegais no mundo todo.

Strajk Kobiet é o movimento conhecido como Greve das Mulheres na Polônia. Foto: Arquivo Pessoal

Os protestos após a decisão do Tribunal Constitucional

Os protestos na Polônia surgiram espontaneamente, tanto que se desenvolveram na grande maioria das cidades do país, e tiveram a participação de diferentes gerações de poloneses. Entretanto, desde seu início, as manifestações são lideradas pelas mulheres do país, principalmente participantes do movimento social feminista chamado Greve de Todas as Mulheres Polonesas (Ogólnopolski Strajk Kobiet), mais conhecido apenas por Strajk Kobiet, ou Greve das Mulheres. O movimento surgiu em 2016, já defendendo os direitos das mulheres e lutando contra tentativas de restrição ao direito de aborto. Em 2015, o Congresso polonês quase aprovou uma proposta de banimento total do aborto no país, que por pouco foi vetada. Porém, em 2016, o Congresso nacional começou a debater, com boa chance de aprovação, uma nova proposta, que bania o aborto com a exceção da possibilidade de a gestação gerar risco de vida à mãe. Em setembro daquele ano, quando os congressistas votaram para avançar nos debates, mulheres polonesas começaram a se organizar e protestar contra a proposta, convocando todas a sair de casa usando a cor preta. Os protestos ocorreram por vários dias seguidos, até que no dia 3 de outubro, uma segunda-feira, elas organizaram uma greve feminina nacional, e centenas de milhares de manifestantes marcharam de preto nas principais cidades do país. Esse dia foi muito marcante para a história recente polonesa, e ficou conhecido na Polônia como Black Monday.

Os políticos poloneses sentiram a pressão das ruas, e no dia 6 de outubro, a proposta de reforma no direito de aborto foi rejeitada. Nos anos seguintes, o grupo continuou se reunindo em protestos contra ataques eventuais aos direitos das mulheres na Polônia. Como, por exemplo, em junho desse ano, mesmo durante a pandemia, quando o governo federal retirou o país do Acordo Internacional Istambul, que busca prevenir a violência contra a mulher em âmbito global. Poucos meses depois, com a repentina e surpreendente decisão do Tribunal Constitucional declarando inconstitucional o direito de abortar em casos de malformação do feto, banindo assim a vasta maioria dos abortos oficiais na Polônia, as manifestações nas ruas do país voltaram com força total.

Na noite do dia 22 de outubro, quando a decisão do tribunal foi anunciada, algumas pessoas já foram espontaneamente para a rua. Por mais que a Polônia seja um país com forte influência da igreja católica, a população se sensibilizou a ir às ruas protestar, justamente por esse histórico de tolerância ao direito de aborto no país e também em razão dessa trajetória recente de lutas do movimento social feminino no país. Diferentemente de 2016, os protestos desse ano tiveram uma participação maior de todos os setores da sociedade polonesa. Nos seis dias seguintes ao dia do anúncio da decisão, os poloneses foram às ruas das principais cidades do país para se manifestar. No dia 28 de outubro, pouco mais de quatro anos depois da Black Monday, as mulheres lideraram outra greve nacional na Polônia, com grande adesão da população.

Dois dias depois dessa manifestação, no dia 30, houve um protesto nacional concentrado em Varsóvia, com centenas de milhares de manifestantes nas ruas da capital polonesa. Os políticos poloneses novamente foram fortemente impactados pela pressão popular, e após os seguidos dias de protestos por todo o país, o governo polonês não teve outra alternativa, a não ser adiar a publicação da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional. A decisão seria publicada já no dia 2 de novembro, e a partir desse momento, teria validade imediata. Porém, no dia 3, o porta-voz oficial do governo polonês, Piotr Muller, comunicou a suspensão da publicação da decisão, alegando que “no momento, todos nós precisamos de paz e mais discussões sobre esse julgamento, para acalmarmos a opinião pública e fazermos mais debates entre especialistas”.

O governo do PiS e a repressão aos protestos

O governo federal nitidamente não esperava essa repercussão e se assustou com a reação popular. Andrzej Duda, presidente polonês desde 2015, é um ultranacionalista conservador, membro do PiS (sigla para Lei e Justiça em polonês), partido da extrema-direita polonesa. A chegada do PiS e de Duda ao poder na Polônia se insere no contexto global de crescimento da extrema-direita na última década. Desde que Duda se tornou presidente, o governo do país tem se caracterizado por conflitos com a União Europeia, influência crescente da igreja católica na administração, e políticas públicas de perseguição a mulheres, à população LGBTQ+ e a imigrantes. Além disso, o PiS também interfere diretamente no sistema judiciário do país; o Tribunal Constitucional polonês, formado por 15 juízes, tem simplesmente 13 indicações do partido que atualmente governa o país, e foi justamente esse tribunal que proferiu a decisão restringindo o direito de aborto no final de outubro.

Por todo esse clima hostil e persecutório que o PiS e Duda criaram, as manifestações contra a recente decisão do Tribunal Constitucional se transformaram em protestos mais amplos, de rejeição às políticas aplicadas no país desde 2015. Duda foi reeleito em junho desse ano por uma pequena margem, de pouco mais de 2%, sobre Rafal Trzaskowski, atual prefeito de Varsóvia e de uma corrente ideológica inversa. Apesar da reeleição, o apoio ao PiS e a Duda na Polônia diminuiu drasticamente depois do anúncio da decisão de restringir o direito de aborto no país. Na eleição desse ano, Trzaskoswki largou muito atrás na disputa, e por pouco não virou o pleito no fim. Ele prega uma maior proximidade com a União Europeia, e defende o respeito aos Direitos Humanos e ao direito das minorias no país. A reeleição de Duda, contudo, foi muito comemorada pelo governo federal brasileiro, que compartilha grande afinidade ideológica com o presidente polonês.

Após o anúncio da suspensão inicial da publicação da decisão, no dia 3 de novembro, as manifestações contra o governo até continuaram acontecendo, mas de forma mais local, nos bairros das grandes cidades. Isso ocorreu, também, porque os casos de covid-19 no país voltaram a crescer a partir de outubro. Entretanto, na última semana, os protestos com maior número de participantes retornaram a Varsóvia. No dia 18 de novembro, milhares de manifestantes foram protestar em frente ao Congresso nacional, pedindo o veto definitivo da decisão proferida pelo Tribunal Constitucional. Ainda, os protestos foram também à frente da sede da TVP, a emissora de televisão estatal, que foi altamente aparelhada pelo governo federal nos últimos anos e hoje é uma das principais máquinas de propaganda do PiS na Polônia. Enquanto os manifestantes protestavam em frente ao prédio da TVP, foram encurralados e agredidos pela polícia polonesa, que ainda acabou levando pelo menos 13 pessoas detidas.

Segundo a Anistia Internacional, desde que os recentes protestos começaram no país, no dia 22 de outubro, mais de 100 manifestantes já foram presos de forma arbitrária pela polícia polonesa. Além de ter de enfrentar o governo federal, o sistema judiciário do país e a repressão policial, as manifestantes polonesas ainda têm de enfrentar a violência de grupos nacionalistas de extrema-direita. Em mais de um protesto, esses grupos entraram em conflitos com manifestantes que protestavam pacificamente, principalmente após Jaroslaw Kaczynski, líder nacional do PiS e um dos políticos poloneses mais influentes, chamar apoiadores para defender o país “deste ataque público que está sendo feito para destruir a Polônia”. No dia 11 de novembro, dia da independência polonesa, nacionalistas fizeram uma marcha pelas ruas de Varsóvia, e chegaram a incendiar com fogos de artifício um apartamento que tinha em sua sacada uma bandeira do movimento Strajk Kobiet.

Hanna Umecka. Foto: Arquivo Pessoal

Hanna Umecka: ‘Espero uma mudança na mentalidade das pessoas’

As manifestantes polonesas que lideram os maiores protestos populares do país em mais de 30 anos não se deixam abalar pelas dificuldades impostas a elas e vão continuar lutando, pelos seus direitos e também por mudanças mais profundas no país. Além da revogação total da decisão que praticamente baniu o direito de aborto, são reivindicações da população que está indo às ruas protestar, também, uma reforma no sistema judiciário do país, a separação total entre a igreja e o estado polonês, o total respeito aos Direitos Humanos, incluindo os direitos das mulheres, da população LGBTQ+ e de imigrantes, e até as renúncias do presidente Andrzej Duda e do primeiro-ministro Mateusz Morawiecki. Para entendermos mais sobre a decisão que restringiu o direito de aborto na Polônia, os protestos que estão agitando as cidades polonesas e o ambiente político geral no país, conversamos com a advogada polonesa Hanna Umecka, que é especialista em Direitos Humanos e Direito Migratório, e também está participando das atuais manifestações na Polônia. “Espero sim a mudança do governo, mas espero ainda mais uma mudança na mentalidade das pessoas”. Confira a entrevista completa a seguir:

O que mudou de maneira geral na Polônia após o início do atual governo federal, em 2015?

Hanna Umecka: Desde quando o PiS assumiu o poder, muitas coisas mudaram. Primeiro foi a atmosfera geral no país, que ficou mais odiosa, principalmente com imigrantes e com a população LGBTQ+. O nível de discussão entre as pessoas ficou muito mais hostil, e as pessoas ficaram agressivas umas com as outras. O governo faz grande uso da televisão pública do país, para fazer autopropaganda e para espalhar seu discurso nacionalista e contra a União Europeia (EU), dizendo que a EU quer forçar o estudo de gênero nas escolas, além de outras coisas absurdas. Assim, uma ideologia de extrema-direita foi crescendo no país. Então, algumas leis começaram a ficar mais rígidas, primeiro para refugiados, depois com LGBTQs, e agora com as mulheres. O discurso agressivo do governo inflige medo nas pessoas de coisas que eles não deviam temer, e por causa das frustrações pessoais de cada um, acaba gerando ódio do que é diferente. Isso meio que dividiu o país em dois grupos, entre quem apoia e quem discorda desse discurso, e as relações entre esses dois grupos também ficou bem mais agressiva.

O governo também vem influenciando o sistema jurídico do país nos últimos anos?

Hanna Umecka: No sistema jurídico o governo fez várias mudanças. O governo nomeia juízes alinhados ideologicamente a eles em todas as instâncias, e até criou o Tribunal Disciplinar, com o intuito de vigiar a atuação de juízes e suas atividades políticas, minando ainda mais a sua liberdade. Além disso, a principal interferência do governo foi a indicação de vários juízes para o Tribunal Constitucional, responsável por regular o cumprimento da constituição no país, o mesmo que emitiu a decisão recente restringindo ainda mais o aborto, por exemplo, e muitas outras nesses últimos anos. Eles passam leis de um dia para o outro, sem abertura para discussões democráticas, e não respeitam a constituição. O Tribunal Constitucional faz o que quer que o governo diga para eles fazerem, pois o PiS indicou 13 dos 15 atuais juízes que formam o tribunal, acabando com a sua independência. A própria União Europeia já fez diversas críticas a essa influência do governo e do PiS na justiça da Polônia.

Porque essa decisão restringindo as leis de aborto no país gerou uma reação tão forte na população?

Hanna Umecka: A lei de aborto já era rígida na Polônia, uma das mais rígidas da Europa, sendo o aborto permitido apenas em três condições: em casos de estupro, quando a vida da mãe está em risco por causa da gravidez, ou por malformação do feto, possibilidade que o Tribunal Constitucional acabou de declarar inconstitucional. Agora o aborto ficou praticamente banido, porque a grande maioria dos abortos no país eram realizados por essa razão. A população não aceitou mais essa intromissão da corte na vida das pessoas, e que é realmente ridícula, porque em outros países da Europa, como França e Espanha, as mulheres podem fazer abortos sem dar justificativas a ninguém, e na Polônia estamos muito longe disso. Já ocorrem muitos abortos clandestinos, que são muito mais perigosos, e as mulheres mais ricas simplesmente viajam para fora do país e realizam o procedimento em outro lugar.

Então, essa decisão motivou as pessoas a ir para as ruas. Já havia todo o desgaste político que o PiS vinha sofrendo, e até parte das pessoas que votaram no PiS esse ano começaram a ir para as ruas também. Apesar de a Polônia ser um país bem católico, as pessoas no geral são bem liberais em relação ao aborto, porque no período comunista o aborto era liberado e as mulheres eram livres para fazer, e todo mundo se acostumou com isso. Por isso, agora, muita gente achou essa decisão demais. O tribunal ainda decidiu tentar passar essa decisão durante a pandemia, porque acharam que a população não se mobilizaria, mesmo enquanto eles que deveriam estar se focando em resolver o problema do coronavírus no país, e isso ajudou a revoltar as pessoas ainda mais.

O PiS não tem coragem de passar essa lei pelo governo, então eles usaram o Tribunal Constitucional para fazer o trabalho sujo, pois eles achavam que a população não se revoltaria contra uma decisão do tribunal, mesmo todo mundo sabendo que 13 dos 15 juízes foram indicados por eles. E aí as pessoas dessa nova geração, frustradas também com a situação do país, começaram a ir para as ruas para lutar pelos seus direitos, liderados pelas mulheres, e as pessoas da geração passada também se juntaram. Para muitas pessoas, essas manifestações estão sendo suas primeiras experiências nesse tipo de movimento. Isso foi uma grande mudança na Polônia, porque a geração que estava acostumada a ir para as ruas é a dos meus pais, com mais de 50 anos, mesmo a minha, com 30, ou as mais jovens, não iam em massa como estão indo agora, o que já mostra uma grande mudança.

Até onde você acha que esse movimento pode chegar? Que outras mudanças os protestos podem acarretar na política e na sociedade polonesa?

Hanna Umecka: Os protestos estavam ocorrendo uma vez por semana, nas segundas, até que tivemos a greve geral (no dia 28 de outubro) e a grande manifestação em Varsóvia (no dia 30 de outubro). Os protestos não são apenas em um lugar, mas estão espalhados por todo o país. Por causa da alta da pandemia, e após o anúncio da suspensão da decisão, as pessoas pararam de fazer grandes aglomerações, mas continuam se encontrando localmente em seus bairros. Os organizadores dos atos não estão satisfeitos, e querem a revogação total da lei, bem como o fim do governo atual, com a renúncia do primeiro-ministro e do presidente. Isso seria ideal, mas sinceramente não sei se pode chegar a tanto. Há também o desejo de separação da igreja e do estado, e maior independência dos tribunais do país. Vamos ver até onde o movimento vai crescer. O governo se assustou com o tamanho das manifestações, e agora querem dialogar com o movimento, mas ninguém está com vontade de ouvir eles, as pessoas não querem aceitar o endurecimento dessa lei que já é uma das mais rígidas na Europa. Eu gostaria que o governo atual renunciasse e que um governo que respeitasse os direitos humanos assumisse, e gostaria também que se cumprissem as outras pautas das manifestações: a revogação dessa decisão, o aborto livre, a separação da igreja e do estado, e o respeito aos Direitos Humanos de todos.

A Igreja Católica tem uma influência muito grande na política e na sociedade da Polônia?

Hanna Umecka: Sim, totalmente. A Igreja Católica na Polônia tem uma influência absurda em toda a sociedade, e na política também. Eles têm muito dinheiro, nós pagamos impostos que vão direto para lá, então eles recebem grande quantidade de dinheiro público. A Igreja Católica é um símbolo muito forte para os poloneses, pois sempre foi um refúgio histórico de nacionalismo e cultura própria para o povo durante os tempos de dominação alemã e russa. Por isso, até hoje ainda tem um significado muito forte para a sociedade, principalmente para as gerações mais antigas. Depois do fim do comunismo, a igreja aumentou muito a sua influência no governo, o que cresceu ainda mais a partir do governo do PiS, em 2015, que tem uma base de apoiadores muito conservadora. Os setores mais conservadores da igreja também pressionam para restringir cada vez mais o direito ao aborto, assim como fazem os políticos do partido do governo. Hoje, governo e igreja estão muito alinhados ideologicamente.

A população LGBTQ+ também vem sofrendo muitos ataques na Polônia, não?

Hanna Umecka: Sim, isso vem acontecendo e é simplesmente horrível. Desde 2019, começaram a surgir na Polônia “LGBTQs Free Zones”, com várias prefeituras reprimindo o que chamavam de “ideologia LGBT”. Então essas prefeituras começaram a proibir manifestações públicas de afeto, as paradas LGBTQs, e mais outras discriminações que remetem às leis alemãs contra judeus e homossexuais durante o nazismo. Nesse caso, a União Europeia reagiu, e algumas ações foram tomadas contra as regiões que introduziram leis assim. Definitivamente, a Polônia não é um lugar tranquilo para a população LGBTQ+ nesse momento. Eu tenho amigos que tiveram que deixar o país porque não suportavam mais a perseguição, e também porque querem adotar filhos, e viver sem se sentirem ameaçados o tempo todo. Isso hoje na Polônia infelizmente é impossível.

O que você deseja para o futuro do seu país?

Hanna Umecka: Eu espero sim a mudança do governo, e ainda mais, espero uma mudança na mentalidade das pessoas. Eu também já pensei em deixar o país, e poder viver em um lugar onde o governo respeita os Direitos Humanos. Mas eu já morei fora, e cada vez que eu via um retrocesso contra a população na Polônia, eu me sentia aflita e desejava voltar, tanto que voltei, e estou aqui até hoje, então não é simples. Eu desejo que a população abra os olhos, e não aceite mais não viver em paz. E que também respeite mais as opiniões e opções dos outros. Hoje mesmo quando cheguei em casa, eu vi que novamente tiraram o meu pôster do Strajk Kobiet da minha porta, e já é a segunda vez que alguém tira. Mas não tem problema, eu vou colocar de novo. Isso mostra bem como está a situação na Polônia, o conflito está à sua porta. Espero que isso mude o mais rápido possível.


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