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18 de março de 2018
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16:37

Marielle é a energia que vai levar negros e negras a fazer um Brasil novo, diz Frei David

Por
Luís Gomes
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Marielle é a energia que vai levar negros e negras a fazer um Brasil novo, diz Frei David
Marielle é a energia que vai levar negros e negras a fazer um Brasil novo, diz Frei David
Frei David durante sessão na Câmara dos Deputados, em março de 2016 | Foto: Gustavo Lima/Câmara dos Deputados

Luís Eduardo Gomes

O frei franciscano David Raimundo dos Santos esteve em Porto Alegre no último fim de semana. Diretor-executivo da ONG Educafro e uma das lideranças da frente de movimentos negros que luta pela política de cotas no Brasil, por três dias dormiu na ocupação que estudantes de movimentos negros realizavam no prédio da reitoria da UFRGS para reivindicar mudanças na política da universidade. Na segunda-feira (12), reuniu-se com o reitor Rui Vicente Oppermann e mediou o diálogo entre as partes, o que resultou em um acordo para a desocupação firmada na sexta-feira (16), em audiência de conciliação na Justiça Federal.

Ali, se alimentando, vivenciando o dia a dia e dormindo ao lado dos estudantes, viu a materialização de um sonho que tinha sobre a política de cotas, o surgimento de novas lideranças negras para o Brasil. “O meu coração está em festa”, disse.

Dois dias depois, na noite de quarta-feira (14), no entanto, receberia uma notícia que deixaria o seu coração machucado: a morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), executada a tiros dentro de seu carro no Rio de Janeiro. Marielle era um exemplo de sucesso para aquela juventude. Mulher negra que, não só graduou-se como se tornou mestra. Frei David conhecia Marielle. Conta que foi o movimento negro que organizou o pré-vestibular que ela cursou e conseguiu uma bolsa para ela estudar Ciências Socais na PUC-Rio. “Marielle era, é e será sempre o ideal de mulher negra que nós queremos ver nascer em cada esquina de todas as favelas do Brasil”, afirma o frei.

Por telefone, Frei David conversou com o Sul21 sobre o que o assassinato de Marielle representa para os movimentos negros, o período que passou na ocupação da UFRGS e a política de cotas no Brasil. Confira a íntegra da entrevista a seguir.

Sul21 – O senhor conheceu a vereadora Marielle Franco. Quem era Marielle?

Frei David: Marielle Franco tinha o perfil da mulher negra, pobre, mas cheia de sonhos. Ainda jovem, procurou o cursinho pré-vestibular comunitário para se preparar e entrar em uma grande universidade. Depois, com estratégia, conseguimos bolsa 100% para ela na PUC-Rio. Depois, por ser uma mulher muita capaz, muito inteligente, uma negra preparada para fazer a diferença, ela conseguiu ser aprovada no mestrado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Marielle era, é e será sempre o ideal de mulher negra que nós queremos ver nascer em cada esquina de todas as favelas do Brasil.

Sul21 – O que representa a morte dela para o movimento negro?

Frei David: Em princípio, nosso coração ficou machucado com a morte da Marielle. Agora, temos certeza que todo o sangue derramado por uma grande causa, a pessoa se torna um mártir. E todo mártir tem o poder energético universal de contagiar as pessoas para ampliar a luta das causas que esse mártir defendia. Jesus Cristo foi martirizado e a sua causa foi abraçada por grandes setores da humanidade. Luther King foi um mártir e a sua causa foi abraçada por grandes setores da humanidade. Portanto, o poder está enganado. Marielle não está morta, ela está ampliada em cada um de nós. Tenho certeza que toda a mulher negra, todo homem negro e todo branco honesto, cheio de ética no coração, vai abraçar a luta da Marielle, que é a luta contra a matança de jovens negros.

Sul21 – Marielle era muito atuante na luta contra a violência policial. É possível para o negro com atuação política não ter medo depois de um assassinato brutal como esse?

Frei David: O medo é próprio das pessoas fracas. Estamos construindo, gestando uma nova geração de negros e negras corajosos, que só têm medo de não lutar pelo bem do seu povo. Portanto, eu tenho certeza que Marielle é a energia que vai levar negros e negras a fazer um Brasil novo. E, principalmente, eu tenho certeza que toda essa dor da Marielle vai ecoar em nossas mãos através do voto na urna nas próximas eleições. Eu tenho certeza que muitas mulheres, muitas Marielles, vão assumir o cargo de deputada estadual, deputada federal e senadora. Vão nascer muitas Marielles no Brasil, negras, por causa da matança do sistema que não quer Marielles denunciando uma polícia, um Exército, um sistema prisional violentos, com foco na matança de jovens negros. Enquanto diminui o número de mortes de jovens brancos, cresce assustadoramente a morte de jovens negros. Enquanto diminui a morte de mulheres brancas no Brasil, cresce assustadoramente a morte de mulheres negras. A morte de Marielle não será em vão. Todos nós vamos abraçar a energia dela e lutar muito mais pela causa pela qual a sua vida foi ceifada. Os poderosos tiraram a sua vida, mas estão nascendo hoje muitas Marielles. Homens e mulheres, brancos e negros, que vão dizer que a luta contra a matança da juventude negra será a nossa principal causa.

Sul21 – Como fazer com que a morte e a luta dela não sejam esquecidas?

Frei David: Primeiro fato, hoje mesmo [a entrevista foi realizada na quinta-feira], a comunidade negra, através da Educafro, às 9h, mandou para dez procuradores da República um apelo para federalizar imediatamente esse crime. Para que a averiguação da morte de Marielle não seja de competência do Exército, porque não acreditamos na intervenção no Rio de Janeiro, que não seja da Polícia Civil, porque ela está toda corrompida pelo sistema, e a Polícia Militar do Rio de Janeiro é pior ainda. Seis horas depois do nosso pedido, a Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, já atendeu o nosso apelo e já federalizou o crime. É a primeira grande luta. A Marielle está ensinando a nós, comunidade negra organizada, a sermos rápidos e eficientes na busca dos nossos direitos. É esta a grande lição que Marielle deixa para todos os negros e negras organizados em coletivos, serem rápidos, estratégicos e eficientes, colocando o poder a serviço do povo negro. Portanto, agora, a PGR já chamou para si a averiguação desse crime, para que ele jamais fique sem punição. [Raquel Dodge determinou a abertura de um procedimento interno na PGR para analisar o caso. Se decidir que cabe a federalização, a procuradora-geral deverá encaminhar um pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tomará a decisão final].

Sul21 – Mudando de assunto. O senhor esteve em Porto Alegre recentemente para demonstrar apoio à ocupação da reitoria da UFRGS. Como o senhor avalia a luta dessa juventude negra?

Frei David: Uma das principais alegrias que tenho no meu coração é o despertar da juventude negra nos últimos anos. Nós investimos tanto na luta para que tivéssemos cotas nas universidades e estávamos tristes porque estavam surgindo poucas lideranças negras a partir dessa luta. Agora, eu já estou com o meu coração em festa. Ao passar três dias na ocupação, dormindo, vivenciando, me alimentando junto com os nossos irmãos ocupantes da reitoria da UFRGS, vivenciei e presenciei o nascimento de várias novas lideranças. Estou muito feliz e tenho certeza que a juventude negra não mais será omissa como se falava.

Frei David participou da atividades na reitoria ocupada e mediou o diálogo com o reitor | Foto: Reprodução Facebook/Balanta

Sul21 – Existe unanimidade no movimento negro sobre as comissões de averiguação de fraudes a cotas raciais e sobre o papel que elas devem exercer? 

Frei David: Se existisse unanimidade, eu ficaria triste. O bacana é ter visões diversificadas e debatermos para encontrar a melhor. Nós dizemos que temos diversas formas para averiguar quem não é negro, mas de uma coisa temos certeza, a forma seguindo os genes, a genotipia, é a mais equivocada, a mais desonesta e a mais sem lógica. E, graças a Deus, é unanimidade na comunidade negra que quem é negro não pode ser analisado pela genotipia. Nós defendemos a fenotipia. Pareceu negro, então você é negro. Quando a polícia entra no ônibus para fazer a batida, não olha e não pergunta quantos genes negros você tem. Não, a polícia não faz isso. Ela olha para você. Se você parece ser negro, é tirado do ônibus, levado para baixo, muitas vezes apanha injustamente, sem que nem peçam sua carteira.

Sul21 – O quanto ainda falta para que o Brasil realmente tenha uma política reparativa?

Frei David: Olha, infelizmente, na área de Medicina, estimamos que 75 de cada 100 vagas, no Brasil todo, foram ocupadas por brancos fraudadores. O Ministério da Educação tem que ser honesto e criar uma normativa instruindo as universidades para fazer bem feito o trabalho da comissão averiguadora, que não é tribunal racial, como o MEC falou. Dizer isso é falta de estudo. É como falou o Supremo Tribunal Federal, a comissão é para evitar fraudes. Então, MEC, acorde. Andifes [Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior no Brasil], saia dessa posição. Comissão não é tribunal racial, é instrumento para evitar fraudes, essa fraude que a Andifes e o MEC deixaram prosperar em todo o Brasil e que agora nós negros lutamos para acabar com essa baixaria. Se o MEC, se a Andifes não combaterem essa fraude, vamos abrir processo por improbidade administrativa contra os reitores e contra os conselhos universitários de cada universidade federal do Brasil.

Sul21 – Por que ainda vemos tanto enfrentamento na sociedade brasileira a políticas públicas voltadas para o negro?

Frei David: Realmente, no Brasil inteiro tem muito enfrentamento, tem muita oposição às políticas públicas voltadas para a comunidade negra. Por que isso? Porque o Brasil viveu 388 anos explorando a mão de obra do povo negro e agora a classe média não aceita ver sentadas na mesma sala de aula de Medicina pessoas negras. Não aceita ver sentadas na mesma sala de aula do Direito pessoas negras. Não aceita ver sentadas na mesma sala de aula da Engenharia pessoas negras. Só que já ganhamos esse jogo. Nos pertence. A cota não é uma bondade do reitor. Então, senhor reitor, se você não está combatendo as fraudes, você pode ser preso, junto com os fraudadores. É o Brasil novo que queremos, um Brasil ético, honesto, que faz as coisas como devem ser feitas. Política pública é o instrumento para garantir a igualdade entre negros e brancos.


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