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6 de junho de 2020
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11:59

‘Morre exu desgraçado’: angolano que perdeu amiga, foi baleado e preso relembra ação policial

Por
Sul 21
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O angolano que perdeu a amiga em ação policial não sabe quando poderá retornar para casa, em Goiás. Foto: Arquivo Pessoal

Renato Dornelles

No dia 17 de maio, um domingo, o angolano Gilberto Andrade de Casta Almeida, 26 anos, técnico em radiologia, e uma amiga, a costureira Dorildes Laurindo, 56 anos, moradora de Cachoeirinha, na Região Metropolitana de Porto Alegre, foram baleados por policiais militares em Gravataí, quando retornavam de um passeio ao litoral gaúcho. Almeida, além de ferido, foi acusado de ter atirado antes nos PMs e, por conta disso, ficou preso durante 12 dias. Dorildes, após 18 dias de hospitalização, morreu na quinta-feira (4).

O caso envolvendo os dois, com um já reconhecido erro dos policiais, desenrola-se em meio aos sucessivos protestos, em várias cidades dos Estados Unidos e por redes sociais em diferentes partes do mundo, pelo assassinato do norte-americano George Floyd, 46 anos, negro, por um policial, em uma rua de Minneapolis, cidade do Estado de Minnesota, no Centro-Oeste dos Estados Unidos, no dia 25.

Separados por dias oito dias e mais de 9 mil quilômetros, os dois casos têm a violência policial como um ingrediente em comum. Outra coincidência é que os dois países, Brasil e Estados Unidos, têm à frente de seus governos presidentes que defendem ações enérgicas por parte das polícias como forma de combater a criminalidade. Jair Bolsonaro e Donald Trump, respectivamente.

“A situação é muito complexa. A violência policial não é de agora, é histórica. Muito já se discutiu e já se tentou em termos de preparação de policiais, mas casos continuam acontecendo”, avalia o sociólogo Rodrigo Ghiringheli de Azevedo, especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública.

Outra semelhança entre os dois casos foi o fato de as vítimas terem sido acusadas de crimes antes ou durante as ações dos policiais. Nos Estados Unidos, um funcionário de uma lanchonete disse que Floyd havia usada uma nota falsa de US$ 20 para comprar cigarros. A polícia foi acionada e Floyd, que não estava armado, foi facilmente detido.

Gilberto tinha vindo ao RS para conhecer a a amiga Dorildes. Foto: Arquivo Pessoal

Dois dias depois, foi divulgado em vídeo que mostra Floyd deitado atrás de uma viatura com o pescoço pressionado pelo joelho de um policial branco. Na gravação, é possível ouvir o homem repetidas vezes implorar pela vida: “Não consigo respirar”. O apelo não sensibilizou o agente. A pressão durou nove minutos e Floyd acabou morrendo.

No Rio Grande do Sul, na madrugada do dia 17, o casal retornava da casa de um irmão de Dorildes, em Tramandaí, no Litoral Norte, quando o motorista por aplicativo Luiz Carlos Pail Junior, que os conduzia, ao avistar uma viatura, furou um sinal vermelho e seguiu em fuga de Cachoeirinha para Gravataí.

Nesta cidade, Pail Junior abandonou o Palio Weekend e tentou escapar a pé, mas foi capturado. De acordo com a ocorrência policial, ele estava foragido da Justiça pela acusação de tentativa de feminicídio. Almeida e Dorildes permaneceram junto ao carro. Da mesma forma que Floyd suplicou por não conseguir respirar, o técnico em radiologia alegou inocência e apelou para que os policiais não atirassem. Mas foi em vão. “Comecei a gritar que era inocente, estrangeiro, que não havia feito nada de errado, mas mesmo assim eles atiraram”, lembra Almeida.

A situação mais grave foi a da costureira. Ela foi alvejada por dois tiros e um deles atingiu a medula e perfurou o intestino, um rim e um pulmão. As lesões provocaram infecção generalizada e a morte, 18 dias depois. Com uma bala em um dos joelhos e outra na bacia, o técnico em radiologia recebeu atendimento médico e, no mesmo dia, foi levado à Delegacia de Pronto-Atendimento de Gravataí.

“No caso brasileiro, há uma certa anuência com a violência policial, o que acaba tornando os policiais mais violentos. Isso parte de um discurso que trata a polícia como sempre certa, sempre correta. Há um discurso populista que agrada uma sociedade amedrontada”, explica Azevedo.

O sociólogo lembra o projeto de lei defendido pelo governo brasileiro para regulamentar o chamado excludente de ilicitude, que é uma espécie de “salvaguarda jurídica” para policiais que matarem em serviço. Ainda na pré-campanha eleitoral, Bolsonaro levantou a bandeira, com o objetivo de prever que militares e integrantes de forças auxiliares de segurança pública, como as polícias, não sejam punidos ou tenham penas reduzidas em caso de homicídios em serviço.

Entre os crimes ocorridos em Gravataí e Minneapolis, no dia 18 de maio, outra ação policial desastrosa fez vítima inocente no Brasil. No Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, um adolescente de 14 anos foi baleado e morto durante uma operação da Polícia Federal, com apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (Core).

Parentes e amigos disseram que João Pedro Matos Pinto brincava com os primos quando o imóvel onde estavam foi invadido pelos policiais. Os agentes teriam atirado e atingido o adolescente na barriga. A versão policial é de que a vítima foi atingida durante um confronto com bandidos que teriam pulado o muro da casa.

Nos Estados Unidos, em um relatório, os legistas apontaram que Floyd “sofreu uma parada cardiopulmonar enquanto estava sendo contido”. O policial Derek Chauvin, que pressionou seu pescoço com o joelho, foi acusado formalmente por assassinato em terceiro grau e morte imprudente (quando a morte é causada de maneira não intencional, por um ato eminentemente perigoso). A pena para o crime é de até 25 anos de prisão. No dia 3, o procurador-geral de Minnesota decidiu processá-lo também por homicídio culposo, não anulando as acusações anteriores.

Apesar das acusações do procurador-geral, a repetição de casos e a descrença na condenação dos policiais têm motivado os protestos. Um levantamento do jornal Washington Post apontou que 1014 pessoas foram mortas a tiros por policiais no país, no ano passado, e a maioria das vítimas era negra. Um estudo da ONG Mapping Police Violence corrobora os apontamentos do periódico. A principal conclusão é de que, nos EUA, negros têm quase três vezes mais chances de serem mortos pela polícia do que brancos.

A descrença na condenação é baseada em antecedentes. Em muitos dos casos, familiares e amigos alegaram inocência das vítimas, mas as afirmações dos policiais envolvidos foi levada em conta. Uma dessas mortes foi a do estudante negro Trayvon Martin, 17 anos, pelo vigia voluntário George Zimmerman, em Sanford, Flórida, em 2013. A absolvição do acusado inspirou a criação do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam).

O elemento do racismo nos Estados Unidos é muito claro. Aqui no Brasil, muita gente resiste à ideia de racismo nas ações policiais. Mas um estudo da socióloga Jaqueline Sinhoretto, professora da Universidade Federal de São Carlos e pesquisadora principalmente nas áreas de violência, segurança pública, sistema de justiça, prisões, controle estatal do crime, mostra que os negros acabam tendo um tratamento diferenciado nas abordagens policiais

O fator racial não foi cogitado no caso de Gravataí. Até mesmo uma das vítimas descartou essa possibilidade: “A mulher que estava comigo é branca”, disse Almeida.

Gilberto ficou com um projétil alojado no joelho. Foto: Arquivo Pessoal

O técnico em radiologia mora em Anápolis, no Estado de Goiás, desde que chegou ao Brasil, há cerca de cinco anos. Almeida estava em férias no Rio Grande do Sul. Viajara para conhecer Dorildes, com quem trocava mensagens pela internet. Mas acabou conhecendo também os sistemas de saúde e penitenciário gaúchos, além da violência e da arbitrariedade de alguns policiais.

Em uma primeira versão, os policiais militares que participaram da ação — o sargento Marcelo Moreira Machado e os soldados Régis Souza de Moura e Sandro Laureano Fernandes —, alegaram que o motorista e Almeida haviam atirado em direção à viatura. Por isso, Almeida acabou autuado em flagrante. Após receber atendimento médico, mesmo tendo sido atingido por quatro tiros e ter ficado com duas balas alojadas, passou a noite em uma cela da delegacia, descrita por ele como “úmida e imunda”.

Na manhã seguinte, foi encaminhado à Penitenciária Estadual de Canoas, onde ficou por 12 dias. Foi libertado quando a versão dos policiais militares começou a ser desmontada. Em novo depoimento, os próprios PMs afirmaram não terem certeza de que o angolano estava armado. No carro havia apenas um revólver calibre 38 com três cápsulas deflagradas.

“Como houve uma autuação em flagrante, o prazo para a conclusão do inquérito foi de 10 dias. No dia 27, concluímos, baseado na oitiva dos policiais, que não houve reação e que, no mínimo, houve um excesso por parte dos policiais”, explica o delegado de Homicídios de Gravataí, Eduardo Amaral.

A conclusão foi de que “os policiais agiram em legítima defesa e, por erro de execução, atingiram terceiros”. Contudo, na peça de inquérito, o delegado considerou que “houve imprudência e que os fatos devem ser apurados pela Brigada Militar”. O comandante do 17º BPM, major Luís Felipe Neves Moreira, explica que as investigações estão sendo feitas pela Corregedoria da BM. “Eu não posso me manifestar, pois não tenho conhecimento. A Corregedoria avocou o inquérito e só depois de concluído é que irei ler”.

A conclusão do inquérito não agradou a advogada Ana Konrath Alves, que representa Almeida e a família de Dorildes. Ela acionou a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS, que remeteu o caso para a Corregedoria da BM. “Não foi um erro. Para nós, foi um homicídio e uma tentativa de homicídio. Eles (PMs) tinham consciência de que o procurado dirigia um veículo de aplicativo e que, com isso, poderia estar transportando passageiros”, disse a advogada.

Abalado com a violência sofrida, com os 12 dias que ficou na Penitenciária Estadual de Canoas (Pecan) e, principalmente, com a morte da amiga, Almeida está sendo amparado pela Associação dos Angolanos e Amigos no RS. De acordo com o presidente da entidade, Januário Gonçalves, além da estadia, está sendo disponibilizado atendimento psicológico para o técnico em radiologia. “Nós, da Associação, temos a obrigação e o dever de dar acolhida e tirar a má impressão, pois não são todos os policiais que são violentos. Ele estava no lugar errado e na hora errada. Foi uma sucessão de erros”, disse.

“Morre exu desgraçado”

Submetido a uma cirurgia para extração de uma das balas que haviam ficado alojadas em seu corpo durante a semana, Gilberto ainda não sabe quando poderá retornar a Anápolis. Por enquanto, ele tenta superar os traumas. Além da  morte da amiga, terá para sempre, como triste lembrança, outro projétil, que ficou em seu joelho esquerdo. No dia 9, ele presta depoimento à polícia.

Sul21: Tem uma previsão de quando poderá ir embora?

Gilberto: Por enquanto, ainda não. O médico ainda não me liberou para viajar. Estou com tala no joelho e de muletas. A bala que entrou no joelho não será tirada. O médico preferiu  não mexer para não correr risco de lesão na medula.

Sul21: Chegou a pensar que poderia morrer?

Gilberto: O motorista do carro saiu em velocidade e travou de repente. Ele saiu correndo. Nós saímos do carro tentando entender o que estava acontecendo. De um lado tinha uma ribanceira, aí nós fomos para o lado onde estavam os policiais. Eles nos viram e começaram a atirar. Eu caí com os tiros e comecei a implorar para eles que era estrangeiro, que era inocente e que não tinha feito nada de errado, mas não adiantou. Ele continuaram atirando. Eu vi minha amiga cair e ela disse: ‘vocês mataram uma inocente’. Foi a última coisa que ela disse.

Sul21: Eles chegaram a falar alguma coisa?

Gilberto: Depois que eu tava baleado eles diziam “tu vai sangrar até morrer. Morre capeta. Morre exu desgraçado”. Ainda me perguntaram se eu era haitiano. Eu disse que era angolano e um deles disse: “tu vai morrer”.

Sul21: O motorista do carro chegou a atirar na polícia?

Gilberto: Durante a perseguição, não. Depois ele saiu correndo, a gente ouviu vários disparos, mas não ficamos sabendo se ele atirou ou se os tiros foram só da polícia.

Sul21: Quando chegou aqui no Rio Grande do Sul?

Gilberto: Cheguei no dia 11.

Sul21: Então só pode conviver com a Dorildes do dia 11 ao dia 17?

Gilberto: Sim, conheci ela no dia 11 e no dia 17 aconteceu aquilo tudo.

Sul21: Tem família?

Gilberto: Tem uma irmã que mora comigo em Goiás. Minha mãe e outros parentes moram em Angola.

Sul21: E eles ficaram sabendo?

Gilberto: Com a minha irmã eu falei. A minha mãe, me disseram que ela desmaiou três vezes depois que ficou sabendo o que tinha acontecido.


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