Revolução Russa -- 100 anos
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12 de maio de 2017
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13:53

XIII – Terra, Trabalho e Propriedade na Rússia revolucionária

Por
Sul 21
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Fernando Horta

Semeadura de batatas próxima ao rio Volga em 1910. Foto: Livraria do Congresso Americano.

Karl Marx defendia que o futuro da sociedade não poderia ser colocado nas mãos do campesinato. Seu argumento era de que por quase mil anos (durante a Idade Média) o campesinato teria sido expropriado de todas as formas possíveis pelos nobres e não teria conseguido criar condições para romper com esta violência. O fim do feudalismo teria somente acontecido quando do surgimento da burguesia, classe – neste momento – revolucionária. Se é verdade o processo de violência e expropriação do trabalho que sofreu o campesinato desde o século V até o XV d.C., os historiadores não estão tão de acordo sobre o fato de o campesinato não haver se rebelado. Parece inconteste que não houve uma grande revolução, mas atualmente não se dá ao camponês o papel inerte que Marx originalmente lhe atribuiu.

No caso específico da Rússia, entender o campesinato é retornar ao tempo do avô de Nicolau II, o czar Alexandre II que governou a Rússia de 1855 a 1881. Durante seu período, ocorreram uma série de mudanças de caráter liberal. Desde a introdução de novos códigos jurídicos, até reformas na economia, no exército e nas questões administrativas. Três reformas são importantes aqui: Alexandre II introduziu um sistema administrativo que dava maior poder à órgãos coletivos locais, fossem urbanos ou rurais. O czar também formalmente aboliu a servidão no campo e fez investimentos em infraestrutura, com vistas ao desenvolvimento econômico do país. Todo este movimento não veio sem desgaste, e o czar precisou lutar contra o recrudescimento da violência social. A igreja ortodoxa e a nobreza russa também se mostraram arredias. As reformas introduzidas diminuíam o controle dos estamentos altos sobre a riqueza produzida pelo trabalho das populações camponesas. Era preciso contrabalançar isto.

Estrada de Ferro de Murmansk com um carro de passeio privado em 1915. Foto: livraria do congresso norte americano

Alexandre II propôs um plano audacioso. Os nobres russos venderiam suas propriedades aos camponeses reorganizados em comunidades agrícolas chamadas “Mir”. Estas comunidades existiam desde o século XVIII, mas Alexandre agora as colocava na condição de fiadoras da dívida contraída pela venda da terra. Na prática, os nobres vendiam as terras e ficavam recebendo por 20 ou 30 anos o pagamento pelos camponeses emancipados. Em caso de não pagamento, o nobre poderia acionar o Mir e a comunidade era obrigada a pagar a dívida do eventual devedor. Isto provocou uma situação nova na Rússia do século XIX. A nobreza passou a se concentrar cada vez mais nas cidades da parte europeia e continuava a receber financeiramente os pagamentos do campo. Os camponeses, por sua vez, passaram à condição de “pequenos proprietários de terra”. Os pagamentos eram cobrados com tamanha violência que entre 1891-1892, ocorreram inúmeras desordens em função da fome no campo.

O resultado da política de Alexandre II é que em 1905 a família real era dona de 39% das terras da Rússia e, em segundo lugar, outros 35% das terras estavam com os camponeses; agora “pequenos proprietários”. Os nobres detinham apenas 13%, embora continuassem a receber valores do trabalho no campo. Tal situação promoveu o aumento da violência contra o regime, personificado nos Narodniks (grupos camponeses que se utilizavam de métodos políticos violentos como assassinatos e sequestros). A quantidade de capital revertida para as cidades promoveu uma incipiente industrialização, enquanto no campo a fome e a pobreza continuavam.

Venda direta de produtos agrícolas em mercados russos em Moscou no início de 1917. Foto: Anton Orlov

Os bolcheviques, ao levantarem o apoio dos camponeses através dos Soviets, não foram compreendidos. Os planos de destronar o czar e o seu regime eram comuns aos camponeses e proletários, mas após isto os bolcheviques planejavam a coletivização no campo e argumentavam que, mesmo na condição de “pequenos proprietários” os camponeses passavam fome. Com a revolução, portanto, suas vidas melhorariam. O problema é que parte destes camponeses objetivavam o fim do regime apenas para terem suas dívidas de terra canceladas. Para eles, a fome era resultado dos pagamentos e não de um “sistema opressor czarista”. O pragmatismo camponês levou-os a apoiar os bolcheviques, mas quando ficaram claros os planos de coletivização os interesses pareciam cindirem-se.

Sabedor da importância da unidade entre camponeses e proletários, Lênin, mesmo afastado do governo por motivos de saúde, preconizava um “entendimento” entre os dois grupos e evitou toda medida mais drástica contra a pequena propriedade no campo. As terras dos antigos czares deram origem a comunidades comunistas no campo que competiam com a manutenção da pequena propriedade privada. Tal situação não agradava ao governo soviético que via um poderoso efeito desestabilizador naqueles que detinham propriedades no campo. Além disto, muitos destes pequenos e médios proprietários tinham ficado contra os bolcheviques durante a Guerra Civil. Após a morte de Lênin, Stalin não via motivos em manter uma classe de pequenos proprietários que se “aburguesava” a cada dia. As coletivizações atingiram cerca de 30% das terras agriculturáveis na União Soviética e, em resposta a ela, muitos agricultores pararam de produzir. O resultado da incapacidade de produção no campo foi a fome e o desabastecimento de uma sociedade que crescia industrialmente. A grande crise que se seguiu foi acompanhada de diversos processos criminais contra os antigos proprietários de terra, colocados como “traidores do regime”.

Família de camponeses russos por volta de 1912. Atente para a superioridade de mulheres e homens mais velhos em função já dos esforços de guerra. (disponível em http://felbert.livejournal.com/1575976.html)

Neste pequeno microuniverso que foi a União Soviética dos anos 20 e 30, o vaticínio de Marx se confirmava: a implantação do regime comunista deveria ser total e universal. Qualquer resquício de manutenção de propriedade levaria à desestabilização de todo o sistema.

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Fernando Horta é professor, historiador, doutorando na UnB.


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