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10 de abril de 2017
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16:00

O concerto (um pequeno conto político-musical-iconoclasta de Francisco Marshall)

Por
Sul 21
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Havia grande expectativa para aquele concerto. O pianista anunciava maravilhas, seria o mais novo dos melhores concertos: “Meu programa é o piano”, respondia, quando indagado sobre o repertório. A orquestra estava a postos, com a força de suas tropas e trompas prontas a retinir todas as notas; o público se acotovelava no teatro, muitos nem conseguiram entrar, mas o Maestro sim, entra e no momento certo assoma o palco e o púlpito, casaca nova, o veludo preto brilhando, saúda o público e bem aplaudido aguarda, respeitoso, a entrada do solista.

Ei-lo que entra e marcha para o piano. Senta-se na banqueta e a regula um pouco, estica os braços de Norte a Sul do teclado, pensa 2 segundos, olha pro maestro, anui o começo, e eis as primeiras notas, vindas dos baixos, logo dos cellos e das violas. A música cresce, com sopros, oboés e clarones. Ouve-se mesmo pequeno rufar do tímpano, e logo a flauta assopra lépida, pronta a entregar a melodia ao piano, que vai entrar em cena, quando…

…”partos que não geram crianças”, disse Sófocles para descrever o grau máximo da peste, na Tebas de Édipo. O nada, a ausência, falência. O pianista lança as mãos, mas não sai música. Nada, nenhum som. Olha pasmo, como todos, para o piano, e joga-se novamente, com as notas e o peso do corpo, mas o careca de black tie e muita pose só consegue arrancar ruídos daquela máquina linda. São sons de agruras, sem harmonias, parcelados e sem solução à vista. Não havia música. O público assiste pasmo, o maestro estoura os olhos fitando o músico, que tenta, mas não consegue produzir música. Caem os arcos, apartam-se bocas e bocais. Consternada, a harpa desce e arrefece o que sobrava na orquestra; todos olham para o solista, desolados. O pazzo então se ergue e pronuncia:

— O problema são as teclas. Não estão funcionando como quero, são coisa do passado. Precisamos de algo mais moderno. Vou vendê-las e está solucionado.

Todos estarrecidos, nem acreditam no que vêem, quando o solista, em desgoverno, estado de transe, inicia o desmonte da máquina, e se põe a remover as teclas, brancas e pretas, a encher mãos, umas 9 na primeira leva. Quer arrancar mais, destroçar o piano que não consegue tocar, quando o público grita, e o maestro argumenta, que estupidez é esta?

Sem pagar uma nota sequer aos que lhe serviam com todos os sentidos e com a atenção da espera de uma música nova, ele, sem nada entregar, cerca-se de capangas, pagos com CCs e outras vantagens, e logo uns 30 o defendem; havia até gente da orquestra, dizem, embora pareça inacreditável. São tempos bicudos, não há o que não haja. Alguns capangas conversam, negociam, servem cafezinho, enquanto outros mantém o cerco dizendo ao solista: – como o senhor é lindo!

Yves Marchand e Romain Meffre, The Ruins of Detroit – Ballroom, Lee Plaza Hotel, 2006

O público ia às ruas do teatro, corredores e galerias cheias, bandeiras e marchas, quando lá atrás, no camarote, seis porcos gordos, de fraque e cartola, começam a gritar e logo encontram muitos microfones amigos, a postos para ampliar o que dizem Fuinha, Ira, Ébrio, Rato, Gato e Sapo (sim, estas eram as primeiras letras de seus nomes): “O povo não deve rugir, temos uma pesquisa de opinião, 76% do povo apoia o pianista. Ele está tocando maravilhosamente”. É quando todos olham pro palco e ele já não está mais lá. “Foi ao Tumelero!’, grita o gozador, e entre risos irônicos, todos se perguntam “será realidade, ou pesadelo surrealista?”

“Privatiza o piano!”, ouve-se nos alto-falantes, e logo entra uma marcha de zumbis cantando o coro inicial de Carmina Burana, de Carl Orff, repetindo o bordão: “Pri-va-tizaaaaar!, Pri-va-tizaaaaar!” Parecia que esta era a única coisa a ser feita, tal a força da voz das caixas de som e zumbis com a mesma cantilena. Alimentam-se da humanidade, da arte, da memória cultural, e logo terão devorado a toda a orquestra, ao público, às partituras e até às cortinas do teatro, como o Ciclope devorando os companheiros de Odisseu, como coisas piores do cinema trash. Já não haveria concerto, no máximo uma cena a mais para aquele filme de Fellini.

50 anos depois, sentados entre ruínas, o presidente da Associação de Amigos do Piano Privatizado comenta com o homem do cafezinho:

— Mas foi bom aquele concerto, não?

.oOo.

Francisco Marshall, historiador e arqueólogo, professor da UFRGS.

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