Opinião
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4 de junho de 2024
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07:00

Semear juntos: amor, indignação, palavra, olhar (Coluna da APPOA)

Por
Sul 21
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Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Desde os primeiros dias desse transbordante mês de maio, fomos invadidos por um excesso que nos defronta de forma radical com desamparo, medo, angústia, privações e indignações de diferentes ordens. De um lado, o estado de perplexidade e tristeza nos toma de assalto diante de tanta destruição; de outro lado, redes de solidariedade renovam nossas esperanças, ajudando a transpor o caos. 

Tudo de uma hora para outra ficou mais complexo. Ainda estamos revirados por esse aguaceiro que despencou sobre nós, deixando-nos envoltos nessa lama que insiste em mobilizar nossas angústias. Tentamos dar nome para aquilo que inundou milhares de vidas: tragédia, caos, colapso, calamidade, catástrofe. Entretanto, as palavras são insuficientes. Isso me faz lembrar da observação de Jacques Lacan no seminário O avesso da psicanálise: “o amor à verdade é o amor à fragilidade, é o amor ao que a verdade esconde, e que se chama castração”. Nossa fragilidade expôs a verdade das consequências que o negacionismo, a irresponsabilidade dos governantes e o descaso com o meio ambiente podem produzir. Por isso, o amor à vida implica reconhecer em que medida nossos atos buscam preservá-la ou se estão alinhados com políticas perversas de especulação, segregação e destruição da natureza.

As consequências psicológicas, econômicas, sociais terão seus desdobramentos em diferentes estágios, o que irá nos exigir tempo e determinação. Tempo para lidar com os efeitos traumáticos que atravessamos, determinação para reconstruir casas, pontes, estradas, escolas, vínculos e, o mais importante: reconstruir vidas. Nesse momento, ainda lidamos com os abalos do choque na singularidade do pensar, do sentir e do agir de cada um. Trata-se de um processo de luto que requer subjetivar múltiplas perdas: vidas, memórias, rotinas, animais de estimação, sono, bens materiais, etc. É impossível tanto nomear, quanto quantificar o que se perdeu, sobretudo, porque perdemos algumas referências simbólicas para pensar o hoje, o ontem e o amanhã. 

Apesar da guerra de narrativas e da busca de protagonismo daqueles que insistem em destituir o Estado de suas competências, elevando os empresários ao estatuto de heroísmo, prefiro acreditar que muitos deles estão realmente implicados em ajudar as pessoas. Por outro lado, não podemos esquecer que gestos de humanidade podem ser atos políticos. Portanto, agora a prioridade é ajudar as pessoas, mas, é também, o momento de politizar essa questão. Politizar com indignação, afinal, estamos falando de mortos, de desparecidos e de um Estado devastado. A indignação, além de legitima, pode ser uma defesa necessária, inclusive, para as pessoas não melancolizarem e ficarem submetidas as potências imprevisíveis do acontecimento, da indiferença e do descaso do outro. No entanto, não nos enganemos, a indignação com a força política necessária para marcar alguma diferença frente a tanta incompetência só será possível pelas vias subversivas das ações coletivas.  

Como observou José Falero, rapidamente, o governador, num de seus primeiros pronunciamentos logo após às inundações, disse para não politizar a tragédia no RS. Contudo, conforme mencionou o escritor, não se trata  de uma “simples” catástrofe natural, pois estamos lidando com as consequências de decisões políticas nefastas de destruição do meio ambiente. “A tragédia do RS ela é política por si mesma. Resulta de negacionismo climático em razão de lucro e se agrava no péssimo estabelecimento de prioridades para o investimento público”. 

Impotência, culpa e necessidade de reagir foram palavras que escutei com frequência na minha clínica nos últimos dias. As cobranças e os imperativos superegoicos se recrudescem na singularidade de cada sujeito. Enquanto psicanalista, aprendi a respeitar os tempos de cada um, o direito do outro ao recolhimento e à invisibilidade.

Muitos se sentem cobrados pela própria dificuldade de fazer algo para ajudar, ou até mesmo, por não postarem nada nas redes sociais acerca de suas disponibilidades para o voluntariado. No entanto, a inércia de alguns nem sempre pode ser interpretada como falta de empatia com o sofrimento alheio. É preciso lembrar daqueles que não conseguem reagir diante de situações dessa natureza porque precisam de um tempo de espera. 

Diante do choque, faz-se indispensável criar intervalos para se proteger desse excesso de real capaz de deixar tudo fora dos eixos. Sobretudo, quando somos surpreendidos por episódios de suspenção e, até mesmo, de despersonalização, deixando-nos desorientados. Logo, se muitas vezes agir na urgência é questão de vida ou de morte, cabe considerar que, para algumas pessoas, a função simbólica da espera se constitui como um espaço para reorganização psíquica e reconstituição dos laços. 

Resta lembrar aqueles que se autorizam a cobrar colegas, amigos e familiares por não estarem na linha de frente que isso não significa, necessariamente, falta de solidariedade. Há pessoas que sabem e podem agir na urgência assim como, outras só poderão contribuir da sua forma em outro tempo. A violência dessa enchente, além de deixar milhares de desabrigados e limitar deslocamentos, interroga de forma radical as nossas condições de mobilidade psíquica para lidar com isso. 

Antes de finalizar essa coluna, quero compartilhar com os leitores três testemunhos que renovaram as minhas esperanças, apesar da dureza dos últimos dias. Cada relato é um despertar para manter ativo o desejo pela vida e o respeito pelo outro, fazendo-me pensar na potência de uma palavra, num olhar que permite dormir e no valor daquilo que podemos semear juntos.  

A potência de uma palavra

Já era noite, um barco avista uma mãe que segurava seu bebê, sozinha, com a água acima da cintura, agarrada num pedaço de ferro. Ela estava paralisada com os olhos vidrados na embarcação que ia em sua direção para resgatá-los.  O foco de luz na escuridão iluminava o seu rosto. Alguém tomou a frente e disse: “pode passar o bebê”. Entretanto, ela continuou imóvel. Nesse momento, o socorrista acrescenta uma palavra a mais: “confia! Pode passar o bebê”. Logo após, vagarosamente, a mulher entregou o seu filho e ambos foram resgatados. 

Li nesse gesto que a palavra confiança pode ser fundamental para que todos nós possamos ser resgatados. Confiança para fazer a travessia, confiança no trabalho em rede, confiança no outro, confiança para não submergir na impotência, na angústia, no desamparo e na vertigem da dor.

O olhar que permite dormir

 Uma mãe com três crianças em um abrigo dizia estar há sete dias sem dormir. Precisava ficar de prontidão, em estado de alerta para cuidar das filhas. Quando o repórter perguntou para as meninas como elas estavam dormindo, todas responderam que dormiam bem. Fiquei pensando como seria possível aquela reposta, elas estavam num abrigo, inseguras, com milhares de desconhecidos e com muito barulho. Talvez, fora justamente o olhar cuidadoso dessa mãe o amparo necessário para que elas pudessem adormecer. Um olhar guardião, acolhedor de sonos que nos adverte para a importância de continuamos a sonhar. Por outro lado, não pude deixar de imaginar o quanto as palavras prontidão e alerta vão nos acompanhar por alguns anos.

Semear juntos 

Uma família teve a sua casa devastada no bairro Matias Velho, na cidade de Canoas. Durante a entrevista eles estavam num abrigo com aproximadamente 6.000 mil pessoas. Logo tomamos conhecimento de que o filho conseguiu escapar da enxurrada que inundou a casa. Ao se dar conta de que a irmã, o irmão e o pai não haviam conseguido, ele retorna e resgata um por um. Quando volta para resgatar o pai, a casa já estava totalmente coberta e ele se encontrava no telhado. Em função da forte correnteza, seu pai teria lhe dito: “salve-se, já passei dos setenta, já vivi muito, tu és jovem e tem a vida inteira pela frente”. O filho responde: “só saio daqui contigo, vamos nos salvar juntos”. 

Depois dessa entrevista, fui saber um pouco mais sobre essa família. Logo descobri que os pais são apreciadores de flores e possuem um apreço por semear. Semear é uma palavra valiosa para apostar no futuro, pois como alertou Walter Benjamim: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe”. Para finalizar, um trechinho de Semeadura, do estimado Vitor Ramil (em parceria com José Fogaça), uma lembrança muito presente nesses dias difíceis. 

Nós vamos semear, companheiro 
No coração 
Manhãs e frutos e sonhos 
Pr’um dia acabar com esta escuridão 
Nós vamos preparar, companheiro 
Sem ilusão 
Um novo tempo, em que a paz e a fartura 
Brotem das mãos

Texto parcialmente apresentado na roda de conversa Abrigo na palavra, promovida pela diretoria da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (interna aos membros da APPOA), compartilhada com os colegas Robson Pereira, Lucia Serrano Pereira e demais associados. Realizada no dia 16 de maio de 2024. Precisamos de abrigo na palavra do outro, bem como, podemos dar abrigo ao outro.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS, autor dos livros: Magnólias 57 (Appris, 2024); Lacan com Hamlet e alguns outros (Escuta, 2022); Ensaio sobre as pedofilias (Escuta, 2021); Perversões: o desejo do analista em questão (Appris, 2019)

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