Opinião
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19 de junho de 2024
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09:37

Real 30 anos: o papel da URV como superindexador (por Flavio Fligenspan)

Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil
Foto: Marcelo Cassal Jr./Agência Brasil

Flavio Fligenspan (*)

No próximo dia 1º de julho completam-se 30 anos da moeda Real. A grande imprensa tem se adiantado à data, relembrando os debates da época e a discussão do modelo teórico que embasou o Plano. Comemora-se, justamente, o fato de termos a mesma moeda por três décadas e com inflação relativamente baixa, o que não foi comum na história econômica brasileira nos anos anteriores ao Real. Ocorre que, com o passar do tempo, a maioria da população não lembra alguns detalhes da implantação do Plano, e fica fácil exaltar falsas virtudes. Uma delas é sobre o papel da URV (Unidade Real de Valor), que não funcionou de acordo com o que o modelo teórico previa, por vários motivos. Quando da comemoração dos 20 anos do Real, escrevi neste mesmo espaço, em julho de 2014, uma coluna que lembrava da implantação da URV. Reproduzo, a seguir, trechos daquele texto, e acrescento um comentário no final.  

“A segunda etapa [do Plano] era a que atendia ao centro do modelo teórico mais do que discutido dez anos antes, em 1984, quando se debatia a chamada proposta Larida – combinação dos sobrenomes dos autores André Lara Resende e Pérsio Arida – que instituía o superindexador, naquela época ainda pensado em termos de ORTN. O que era o superindexador? Era a cereja do bolo, pois o modelo ‘entendia’ a indexação generalizada da economia brasileira como uma característica especial da nossa inflação crônica e elevada, e pretendia transformá-la de veneno em remédio.

Se a indexação era o elemento que explicava como os aumentos de preços do passado recente se transformavam em patamar mínimo de inflação para os períodos seguintes, não permitindo o recuo da inflação, a intenção de qualquer agente econômico era ter seus preços plenamente indexados, pois assim seria possível se proteger da inflação. Os salários, por exemplo, se indexados, seriam constantemente atualizados, sem precisar esperar seis meses para tentar recuperar o poder de compra perdido. Portanto, trabalhadores, assim como outros agentes, gostariam de ter seus preços marcados de acordo com um superindexador. Esta era a ideia, que em 1984 era naturalmente associada à ORTN, título público que havia sido adotado como bom representante da inflação. Alguns achavam que o dólar, ou a taxa de câmbio, também poderia representar este papel.

Assim, em 1994, quando da efetiva implantação do Real, a segunda etapa do Plano era justamente mostrar à sociedade a ideia do superindexador e convencê-la das vantagens de se marcar preços de acordo com ele. Os preços de quem aderisse ao superindexador seriam marcados em URV e teriam correção diária em cruzeiros reais, moeda oficial da época, de acordo com uma média de índices de inflação dos meses passados. Logo, salários marcados em URV, por exemplo, se recebidos no dia 1º do mês, corresponderiam a tantos cruzeiros reais e, se recebidos no quinto dia do mês, já equivaleriam a mais cruzeiros reais, refletindo a inflação de cinco dias. Isto passava a ideia de proteção contra a inflação.

Pois bem, se a URV era tão boa e representava a etapa genial do Plano, por que só os salários foram transformados em URV? E mais, por que o foram compulsoriamente? Por que setores como o comércio não fizeram questão de adotar a URV e obter suas vantagens? Imagine-se a redução de custos operacionais de marcar preços em URV e não precisar mais alterá-los quase diariamente como faziam os supermercados, por exemplo. É bom lembrar que na época ainda não se usava generalizadamente o código de barras e que os preços dos produtos eram marcados com etiquetadoras e digitados um por um na passagem pelos caixas.

No modelo original, quando muitos agentes econômicos tivessem entendido as vantagens do superindexador e aderido a ele, naturalmente a moeda velha seria rejeitada e a nova moeda nasceria sem surpresas e com confiança da população. A URV durou apenas quatro meses, de março a junho de 1994, e no dia 1º de julho nasceu a nova moeda, o real, configurando a terceira e definitiva etapa do Plano. A pressa se devia ao calendário eleitoral, pois Fernando Henrique, que se considerava o pai do real, era candidato presidencial nas eleições de outubro e precisava mostrar à população a nova moeda operando com inflação baixa para ganhar votos. No dia 1º de julho a URV, que valia 2.750 cruzeiros reais, se transformou em real. Não por acaso, o dólar valia os mesmos 2.750 reais naquele instante, logo um real passou a valer um dólar – por alguns momentos – e Fernando Henrique também usou esta taxa de câmbio na sua campanha, mostrando que finalmente o Brasil ‘tinha uma moeda forte’.

Então, por que os demais agentes não aderiram nem foram obrigados a aderir à URV? Porque logo entenderam que quem estivesse atrelado à URV e, portanto, com seus preços fixos nesta moeda virtual, estava sim protegido da inflação, mas da inflação passada e não da inflação presente. Se a inflação do mês [corrente] fosse maior do que a inflação passada, a tal proteção seria apenas parcial. Ou, dito de outra forma, quem estivesse com seus preços em URV não poderia fazer parte de nenhum processo de aceleração da inflação, o que era normal na época, já que a inflação sempre aumentava, nunca caía. E foi isto exatamente o que aconteceu, pois na virada de 1993 para 1994 a inflação pelo INPC ou pelo IPCA estava em torno de 37% ao mês e em junho de 1994, último mês da URV, entre 47% e 48% ao mês. O grupo de Alimentação e bebidas chegou a junho com 52% ao mês. [Assim, quem tivesse com seus preços marcados em URV estaria protegido de uma inflação de 37%, mas a inflação corrente já estava 10 pontos percentuais acima. E quem não marcou seus preços em URV estava livre para remarcá-los como desejasse].

Desta forma, o brilho da engenharia econômica foi no mínimo embaçado pela não adesão dos agentes em geral e por esconder mais uma ponta do processo de transferência de renda que a inflação alta proporcionava. A despeito disso, vi várias manifestações na imprensa nos últimos dias, lembrando a genialidade da URV. Pergunto: [genialidade do] modelo teórico sem [considerar] um processo de aceleração da inflação ou como efetivamente implantada em 1994?

Por fim, quem foi o verdadeiro superindexador da época? A taxa de câmbio foi quem cumpriu este papel, funcionando diariamente como referência de preços não compulsória para quem esteve livre para optar. E com variações mensais sempre superiores às da URV.”

Acrescento, agora, em junho de 2024, um comentário. Em 1984, quando da discussão da proposta Larida, um ponto de debate teórico sobre o modelo era quanto tempo deveria vigorar o superindexador. Em princípio, nem se tratava de um tempo físico específico, mas sim um intervalo suficiente para cumprir sua função, de conquistar a confiança da população, para se transformar a seguir na nova moeda. Este tempo seria o mínimo necessário para a sociedade entender o papel do superindexador e suas vantagens, e aderir a ele, paulatinamente, isto é, marcar seus preços de acordo com o superindexador. Porém, como comentei há dez anos aqui no Sul 21, a URV – o superindexador do Plano Real – durou apenas quatro meses, em função do calendário eleitoral. E nem deveria vigorar por mais tempo, pois quanto mais ela estivesse em vigor, mais tempo a população teria para perceber que a tal proteção proporcionada pelo superindexador – seu grande trunfo – era apenas parcial. Também teria tempo para entender porque só os salários foram convertidos ao superindexador, compulsoriamente, o que traria repercussões políticas e retiraria o brilho do mecanismo.

A propósito, em matéria recente do jornal Valor sobre o lançamento das memórias do Ministro da Fazenda da época do Plano, Rubens Ricupero, recupera-se um trecho do livro em que o autor comenta justamente sobre a duração prevista da URV e sua adoção pela sociedade: “Eduardo Jorge, assessor parlamentar de FHC desde o Senado, queria que fosse em um mês, prazo obviamente inexequível. No extremo oposto, Persio Arida e outros falavam em um ano, e ainda assim com relutância. Preferiam que a transição para a nova moeda se prolongasse o máximo possível para dar tempo à consolidação da URV e sua aceitação espontânea nos reajustes salariais”.

Aqui fica claro que a URV que teve vida curta em 1994 foi muito diferente do que o modelo teórico previa, tanto no que se refere ao seu tempo de duração, como no que concerne à sua “aceitação espontânea” pelos diversos agentes econômicos.  

(*) Professor Aposentado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da UFRGS

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