Opinião
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19 de junho de 2024
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14:18

Pela vida de meninas e mulheres: não somos “teste” nem objeto de barganha política (por Ana Flávia Lucas d’Oliveira)

Ato contra o PL 1094 em Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Ato contra o PL 1094 em Porto Alegre. Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Ana Flávia Lucas d’Oliveira (*)

É com profunda tristeza e indignação que escrevo este texto. Como médica, feminista, professora e pesquisadora tenho experiência em atender e meninas e mulheres em situação de violência na atenção primária. É desta posição que vou detalhar minhas considerações sobre o PL 1904, que estabelece pena equivalente a homicídio aos abortos após as 22 semanas de gestação, incluindo aqueles que, pela Constituição Brasileira, não deveriam ser punidos – aqueles em caso de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia.

Este é mais um ataque aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, que acomete com maior força aquelas jovens, pretas, periféricas ou de alguma forma vulneráveis.

Vejamos com detalhes a crueldade pretendida para as mulheres.

Já é bem difícil conseguir um aborto nos casos previstos por lei nos serviços do SUS, que são os únicos serviços de saúde que fazem o procedimento no Brasil. O direito ao aborto em caso de estupro é estabelecido por lei desde 1940, mas o primeiro serviço a realizar o atendimento ao aborto legal foi o Hospital Jabaquara, em São Paulo, em 1989.

Apenas 3,6% das cidades brasileiras tem serviço que realize o procedimento, eles são concentrados nas grandes capitais e nem sempre esses locais e as situações nas quais o aborto é legal são divulgados amplamente1. A busca por um serviço de aborto legal foi definida como uma “rota crítica”, na qual a “desorganização psicossocial decorrente da violência foi agravada pela desinformação, pela precariedade das redes de atendimento e pela objeção de consciência dos profissionais”. 2

O caminho para as pessoas que sofrem uma violência sexual não é simples. A denúncia é penosa e a condenação dos agressores difícil, porque pela própria natureza do crime muitas vezes há poucas provas, ou nenhuma. As vítimas são estigmatizadas, suas vidas pregressas escrutinadas. A peregrinação de uma mulher, adolescente ou menina no sistema de justiça é traumático e a rede social a seu redor costuma estigmatizar e culpabilizar a vitima, com poucas exceções. Vergonha, medo, impunidade acompanham estes processos. É difícil estimar a taxa de punição, mas estima-se que apenas 1% dos estupradores é punida3.

No caso de meninas menores de 14 anos, uma grande parte das vítimas de estupro de vulneráveis, a violência é visibilizada muitas vezes tardiamente pelo diagnóstico de gravidez. Meninas ou adolescentes em situação de abuso sexual incestuosos (repetidos, no interior da família) por vezes engravidam antes de menstruar, ou estão confusas sobre o que aconteceu, ou não entendem os riscos do que acontece em termos de doenças e gravidez, ou tem muito medo de revelar as contínuas agressões por ameaças que sofrem dos estupradores, ou são culpabilizadas e desacreditadas pelas famílias quando contam o ocorrido.

Outras vítimas de estupro de vulneráveis, mulheres jovens ou adultas estupradas quando estão intoxicadas, porque dopadas pelo agressor no tristemente famoso “Boa noite Cinderela” ou porque beberam ou usaram drogas demais para poder consentir, também muitas vezes não sabem dos detalhes do estupro, são desacreditadas por serviços e famílias, culpabilizadas ou mesmo não sabem que têm direito ao procedimento legal neste caso, descobrindo por vezes tarde demais.

Mulheres violentadas psicológica, física e sexualmente por seus maridos ou companheiros e que engravidam por estupro marital (reportado por 10% das mulheres de São Paulo e 14% na zona da Mata de Pernambuco4) recebem respostas confusas dos serviços, e não são apoiadas pelos serviços de saúde no sentido de reconhecer a violência, escondida sob o hipócrita manto do “dever conjugal” e tampouco têm acesso a seus direitos, incluindo o aborto legal.

Mulheres em risco de vida pela gestação também peregrinam, e muitas vezes acabam morrendo antes de ter recebido a oferta ou a realização de um aborto legal.

Todo o mundo (mulheres, crianças, mães, trabalhadores da saúde) concorda que o procedimento deveria ser realizado da forma mais rápida possível, de preferência no primeiro trimestre da gestação (até 12 semanas). Quando do desejo da mulher, é um procedimento mais simples, extremamente seguro (mais seguro do que um parto) e melhor do ponto de vista emocional, social e econômico. Imagine você sofrer uma violência sexual, de alguém conhecido ou desconhecido, familiar ou não, e se descobrir grávida em decorrência desta violência. A violência em si já gera enorme trauma, uma gravidez amplia em muito o sofrimento e as consequências do crime sofrido, que podem perdurar para sempre e desviar o rumo de uma vida de forma triste e imprevisível. A maioria das mulheres ou meninas, confrontadas com esta situação, deseja terminar com este sofrimento o mais rapidamente possível.

Infelizmente muitas mulheres chegam aos serviços de apoio já no segundo trimestre da gestação e a maioria nem chega, tendo que lidar sozinhas com o trauma, a dor e a solidão de gerar e cuidar do filho de uma violência. Não será um projeto de lei que ameaça as vitimas de estupro com a pena de homicídio, pena que nem as mulheres que praticam infanticídio são imputadas, pela legislação brasileira, que estes procedimentos vão acabar. Vão apenas ser empurrados para a ilegalidade, prejudicando mais ainda a vida e a saúde das pessoas envolvidas. O que faz com que uma mulher ou menina seja obrigada a interromper a gravidez tardiamente é a inoperância do Estado, que deveria garantir o direito e ao invés disso muitas vezes o viola, revitimizando as vítimas mais uma vez.

Se desejamos que os abortos previstos por lei aconteçam antes das doze semanas, o que é um desejo legítimo e em consonância com a saúde pública e os direitos das meninas e mulheres, precisamos:

  1. Educação sexual de qualidade nas escolas, com discussão sobre desigualdade de gênero e étnica racial;

  2. Reconhecimento do direito das mulheres aos seus corpos e à sexualidade livre de constrangimentos e violência através de campanhas educativas e formação permanente em gênero, raça/etnia e direitos humanos dos servidores de saúde, educação, assistência social e sistema de justiça, conforme previsto pela Lei Maria da Penha.

  3. Maior visibilidade do problema, reconhecendo que a violência sexual acontece para as mulheres adultas, crianças ou adolescentes, majoritariamente por agressores familiares;

  4. Punição dentro do devido processo legal dos agressores sexuais e confiança na palavra das vítimas, que parecem muitas vezes ser vistas como culpadas pela violência que sofreram (como acontece no caso deste PL 1904);

  5. Educação continuada dos profissionais de saúde para oferecerem contracepção de emergência e encaminhamento a serviços de aborto legal a todos os casos que se enquadrem.

  6. Mais serviços de violência sexual por todo o país que façam o cuidado e a prevenção da gestação indesejada e das infecções sexualmente transmitidas em 72 horas após o estupro, além do aborto legal quando necessário.

Enquanto isso, denunciamos este projeto de lei que não tem nenhum compromisso com a vida e o cuidado, mas serve a um projeto de poder de um grupo que não tem a menor consideração por mulheres e crianças brasileiras, especialmente as mais pobres, pretas e vulneráveis. Usar um projeto de lei desta natureza como um “teste”, como foi afirmado, é um enorme desrespeito e crueldade. Clamamos por procedimentos dentro da lei e condizentes com a melhor qualidade de assistência em saúde, que inclui realizar o aborto tardio nas melhores condições possíveis, para não aumentar ainda mais o trauma das vítimas.

Notas:

1. https://oglobo.globo.com/saude/medicina/aborto-legal-apenas-36-das-cidades-tem-servico-no-brasil-25456622

2. Ruschel AE, Machado FV, Giugliani C, Knauth DR. Mulheres vítimas de violência sexual: rotas críticas na busca do direito ao aborto legal. Cad Saúde Pública [Internet]. 2022;38(10):e00105022. Available from: https://doi.org/10.1590/0102-311XPT105022

3. https://www.metropoles.com/materias-especiais/estupro-no-brasil-99-dos-crimes-ficam-impunes-no-pais

4. Schraiber LB, D’Oliveira AFPL, França-Junior I, Diniz S, Portella AP, Ludermir AB, et al.. Prevalência da violência contra a mulher por parceiro íntimo em regiões do Brasil. Rev Saúde Pública [Internet]. 2007Oct;41(5):797–807. Available from: https://doi.org/10.1590/S0034-89102007000500014

Artigo publicado originalmente na revista Teoria e Debate.

(*) Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira é médica sanitarista, professora de Medicina Preventiva da USP, pesquisadora e feminista. Tem mestrado e doutorado em Medicina Preventiva e extensa experiência com violência de gênero e atenção primária à saúde, tendo colaborado com universidades internacionais e com a OMS e OPS. Participa do NAPP Mulher da Fundação Perseu Abramo.

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