Opinião
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10 de junho de 2024
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12:34

O feitiço do tempo: Guaíba rio ou lago? (por Zeca Oliveira)

Foto: Isabelle Rieger/Sul21
Foto: Isabelle Rieger/Sul21

Zeca Oliveira (*)

A imensa tragédia que se abateu sobre Porto Alegre encontrou nas redes sociais terreno fecundo para o ressurgimento de uma questão antiga e que, há muito, deveria ter sido definitivamente resolvida: seria o Guaíba um rio ou um lago? 

A perda da memória histórica da discussão original no “telefone sem fio” das redes sociais e a informação geralmente simplória dos formadores de opinião ávidos por likes, exige uma oportuna revisitação ao tema.

A questão foi debatida ou, seria melhor dizer, explorada intensamente a partir do final dos anos 90, com objetivos estritamente políticos e tinha um alvo bem definido: o Atlas Ambiental de Porto Alegre, obra elaborada por várias instituições no segundo governo da Administração Popular. 

Segundo a teoria da conspiração montada à época, por volta de 200 pesquisadores pertencentes ao Instituto de Pesquisas Espaciais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Prefeitura Municipal de Porto Alegre teriam atendido interesses da iniciativa privada quando da elaboração do Atlas Ambiental, ao endossarem a classificação do Guaíba como um lago, “favorecendo as construtoras”. Nesse sentido, uma obra de reconhecida excelência e premiada internacionalmente teria sido um mero subproduto de uma farsa montada para favorecer terceiros. Acredite quem quiser. 

Antes de mais nada, o Atlas Ambiental resgatou o conceito de lago. De fato, as denominações mais antigas, que datam do final do século XVIII e início do século XIX, referiam-se ao corpo d’água como Lago de Viamão ou Lago de Porto Alegre. Além disso, as principais inteligências que pesquisaram e escreveram sobre o ambiente natural do Rio Grande do Sul sempre o chamaram de lago, como Auguste Saint-Hilaire, Eudoro Berlink, Padre Rambo, Tupi Caldas e Érico Veríssimo. 

(É oportuno recapitular esta parte da história para demonstrar que o Guaíba nem sempre foi denominado de rio como muitos atribuem, tal como fosse uma designação emanada do senso popular histórico. Ao contrário, na literatura técnica, a definição de lago ocorre muito mais frequentemente do que a de rio).

Um subproduto importante da calúnia montada pelos teóricos da conspiração foi induzir uma falsa polarização, que ainda persiste, entre “riosistas preservacionistas” e “laguistas depredadores”. Essa polaridade foi subliminarmente criada para desqualificar a discussão científica do tema e fazer uso político das boas intenções do público leigo, em uma questão que deveria ser decidida à luz das evidências empíricas. Sublinhe-se que dividir as pessoas e semear confusão é péssimo para o ambientalismo e ótimo para aqueles que querem avançar nas margens do Guaíba. 

De fato, essa falsa e antiga discussão, agora requentada, era de caráter claramente oportunista pois sequer analisava a questão por completo. Considerar o Guaíba como sendo um rio pode levar a danos ambientais maiores do que defini-lo como um lago. 

Aos rios é fortemente associada a imagem de que possuem boa capacidade de dispersão de poluentes. Quanto aos lagos, são notórias as dificuldades na sua gestão hídrica. Reconhecer o Guaíba como um lago, portanto, significa levar muito mais a sério seus problemas ambientais no âmbito da administração pública e da cidadania, e não o contrário. 

O único aspecto legal controverso ambientalmente seria o da faixa de proteção do entorno do lago, que é menor em relação àquela prevista para as margens dos rios. Ora, se rios de margens preservadas fossem a regra por aqui e não fosse o Guaíba apenas o receptáculo do turbilhão de águas que se abateu sobre o Estado, com margens que não participaram ativamente na formação da torrente catastrófica, talvez esta discussão fosse pertinente.  De momento, ela retira o foco da inépcia da gestão municipal na prevenção e gerenciamento da crise e da absurda devastação ambiental promovida, de forma irresponsável, pelo afrouxamento dos instrumentos de gestão ambiental por parte do governo estadual. 

Teorias conspiratórias e irresponsabilidades ambientais à parte, a discussão sobre a classificação do Guaíba parece não ter fim, mesmo entre os especialistas. Esta interminável discussão tem um condicionante importante: o Guaíba foi um rio até recentemente, em termos geológicos. Durante o último período glacial, com o nível do mar mais baixo, um “paleo-delta do Jacuí” ocupava uma posição mais próxima do litoral. A posterior transgressão do mar sobre o continente ocasionou o recuo do delta até a sua posição atual, típica de um bayhead delta, deixando à jusante uma região alagada; área outrora ocupada pelo rio. 

Ora, se “ontem” o Guaíba era um rio e hoje ele é um lago, é natural que ele ainda preserve algumas características do rio que foi, enquanto incorpora características do lago que hoje ele é. É evidente, portanto, que o debate fundamentado em aspectos sedimentológicos, geomorfológicos e hidrológicos, que tem sido a tônica até aqui, não é apropriado para classificar este verdadeiro “ornitorrinco geológico” chamado Guaíba; jamais chegaremos a um consenso baseado nestes critérios. A solução para este problema exige utilizar uma teoria mais abrangente, de maior grau de universalidade.

Felizmente a Geologia dispõe hoje da moderna Estratigrafia de Sequências, teoria de caráter paradigmático, que esquadrinhou o comportamento dos deltas e dos rios durante as variações do nível do mar e em cujo arcabouço técnico reside o conceito de perfil de equilíbrio fluvial. Estes são os elementos fundamentais para situarmos a discussão da classificação do Guaíba onde ela deveria estar. 

A chave para a elucidação do problema encontra-se na localização do delta; com base nela é possível formular o axioma definitivo: jamais poderia ser classificado como rio um corpo d’água que está à jusante do delta do Jacuí pois deltas são locais de ancoragem dos perfis de equilíbrio dos rios. O domínio fluvial que abrange os rios que convergem para o Guaíba termina, por definição, no delta do Jacuí. Classificar o Guaíba como rio é uma aberração técnica que não pode ser justificada pelo cabresto da legislação ambiental já que aos legisladores é facultado, a qualquer tempo, formularem leis específicas para ele. 

Nesse contexto, é chegada a hora de virar definitivamente a página das discussões triviais e elaborar soluções técnicas, políticas, jurídicas e administrativas que possibilitem o correto manejo ambiental do Lago Guaíba. 

Ou amanhã será dia da marmota novamente? 

(*) Geólogo, pesquisador em Geologia do Petróleo na UNISINOS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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